28.4.10

Brasília, 50 anos: um sonho no centro do Brasil



A “interiorização” da capital federal é um projeto do século XIX que o presidente Juscelino Kubitschek executou a partir de idéias que remetem ao período da Independência do nosso país

por Alberto Luiz Schneider


O esqueleto da futura Esplanada dos Ministérios
A história normalmente começa antes do que parece. Brasília como ideia, projeto e sonho, nasceu antes de o presidente Juscelino Kubitschek tomar a decisão política de erguer a nova capital no meio do nada. Muitíssimo antes de os traços modernistas de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer serem esboçados, a cidade foi desejada e imaginada, desde os primórdios da Independência.

Ao contrário do que convencionalmente se imagina, JK não inventou Brasília – a cidade que em 2010 comemora 50 anos –, apenas a construiu, cumprindo um preceito constitucional que previa a transferência da capital do país para o centro geográfico do imenso território brasileiro.

A atual capital do país é a materialização de um velho projeto cuja idéia remonta a ninguém menos que José Bonifácio de Andrada e Silva (1763- 1838), o Patriarca da Independência. Em um panfleto chamado
Aditamento ao projeto de Constituição para fazê-lo aplicável ao Reino do Brasil, publicado em Lisboa, em 1822, Bonifácio propôs a construção de uma nova capital: “No centro do Brasil, entre as nascentes dos confluentes do Paraguai e Amazonas, fundar-se-á a capital desse Reino, com a denominação de Brasília”.

Após a efetivação da Independência, da qual fora um dos artífices, Bonifácio tornou-se presidente da primeira Assembleia Constituinte de nossa história, em 1823, na qual defendeu, entre outras ideias, a abolição do tráfico negreiro, a instrução pública, a fundação de uma universidade, uma reforma agrária e a construção “de uma nova capital do Império no interior do Brasil, em uma das vertentes do rio São Francisco, que poderá chamar-se Petrópole ou Brasília”.

O Patriarca da Independência, primeiro a propor a transferência da capital

Houve manifestações dessa natureza ainda antes das proposições de Bonifácio. Hipólito José da Costa (1774-1823) publicou, a partir de 1813, no Correio Braziliense – veículo de sua propriedade e considerado o primeiro jornal brasileiro, embora publicado em Londres –, vários artigos em que reivindicou “a interiorização da capital do Brasil, próxima às vertentes dos caudalosos rios que se dirigem para o norte, sul e nordeste”. Obviamente José Bonifácio conhecia as ideias de Hipólito, que, como ele, era um intelectual liberal e progressista para os padrões da época.

O tema voltou à baila por meio da pena do historiador e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), que ao longo de sua vida intelectual escreveu diversas vezes sobre o assunto. Em 1849, em uma carta ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, intitulada
Memorial orgânico, o historiador enumerou argumentos em favor de uma capital no interior do continente.

O texto mais importante de Varnhagen, porém, é
A questão da capital: marítima ou no interior?, publicado em 1877, quando era embaixador em Viena. Novamente, ele teceu as virtudes do projeto de erguer uma capital no centro do país. Narrou ainda sua viagem ao sertão de Goiás e apontou o local que lhe pareceu mais apropriado à construção da “futura capital da União Brasílica”, localizado no “triângulo formado pelas lagoas Formosa, Feia e Mestre d’Armas, das quais manam águas para o Amazonas, para o São Francisco e para o Prata”. O local é muito próximo de onde de fato Brasília viria a ser construída.

República

No contexto da Proclamação da República, a ideia de erguer uma capital no meio do Brasil reapareceu. O artigo terceiro da Constituição republicana de 1891, proposto pelo constituinte catarinense Lauro Müller, estabeleceu o seguinte: “Fica pertencente à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14 mil km2, que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital Federal”.
O presidente Floriano Peixoto, atendendo às suas inclinações nacionalistas, seguiu o postulado constitucional, criando a “Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil” – que durou de junho de 1892 a março de 1893 e foi liderada pelo astrônomo belga, radicado no Brasil, Louis Ferdinand Cruls.

A partir dos trabalhos da comissão, formada por médicos, botânicos, astrônomos, geólogos, estavam dadas as condições para que “Brasília” aparecesse no
Pequeno atlas do Brasil, de 1922. Assim, 35 anos antes do início das obras, a futura capital do Brasil apareceu no mapa, no interior de Goiás, praticamente no lugar em que seria construída.

A antiga ideia, como não poderia deixar de ser, ressurgiu na Constituição de 1934, embora o projeto não tenha avançado, em razão da turbulência daqueles anos difíceis. No entanto, voltou a figurar no artigo quarto das disposições transitórias da Constituição de 1946. Getúlio Vargas, então presidente eleito, criou por decreto, em 1953, a “Comissão de Localização”, presidida pelo general José Pessoa, cujos trabalhos transcorreram ao longo de 1954.

Em dezembro de 1955 – ainda sob a presidência temporária de Nereu Ramos e poucas semanas antes da posse do presidente eleito JK –, foi baixado o decreto no 38.261, constituindo a “Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal”. Já sob a presidência de JK, em 19 de setembro de 1956 foi lançado o concurso nacional do Plano Piloto de Brasília.

Depois de várias especulações – cogitou-se a hipótese de erguer Brasília no Triângulo Mineiro –, a opção recaiu sobre o “Quadrilátero Cruls”, já proposto em 1893, cuja localização coincide com o local onde Lúcio Costa e Oscar Niemeyer finalmente projetaram a cidade.

Marcha para o Oeste
A expedição do marechal Rondon, parte do esforço de ocupação do interior do país.

Quando JK tomou posse, o país havia assistido a alguns esforços de ocupação do interior do território nacional. Ainda no começo do século XX, o marechal Cândido Rondon desbravou o oeste brasileiro, levando a cabo a tarefa de implantar telégrafos que ligassem os estados de Mato Grosso, Amazonas e Acre ao restante do país. Entre 1907 e 1917, a expedição estendeu 2, 2 mil km de linhas telegráficas.

A conquista do Brasil continuou na década de 1940. Getúlio Vargas criou a “Marcha para o Oeste”, a fim de incentivar a ocupação do centro-oeste. A Expedição Roncador-Xingu foi planejada para conquistar e desbravar o coração do país. Iniciada em 1943 e liderada pelos irmãos Villas-Bôas, a comitiva adentrou o Brasil central, chegando até a Amazônia, travando contato com diversas etnias indígenas ainda desconhecidas.

Naquele momento – início da década de 1940 –, a grande maioria dos 43 milhões de brasileiros se concentrava no litoral ou próxima dele. A construção de Brasília fez parte de um movimento histórico cujo objetivo maior foi ocupar o vasto território nacional.

Até meados do século XX, o Brasil ainda era, metaforicamente, um “arquipélago”, pois nem sequer havia estradas que conectassem as diferentes regiões do país. A Belém-Brasília, iniciada só nos anos 1950, praticamente junto com as obras da nova capital, foi a primeira rodovia digna desse nome entre a Amazônia e o restante do país.
JK chega à capital em 2 de fevereiro de 1960, vindo do Rio de Janeiro em uma Romiseta, carro totalmente fabricado no Brasil.

A construção da cidade, portanto, deveria contribuir para a interiorização da população brasileira, facilitando a integração física do território nacional. Era o Brasil empenhado em ocupar o Brasil, dando vazão às antigas formulações de José Bonifácio de Andrada e Silva e Francisco Adolfo de Varnhagen em pleno século XIX.

Brasília, Brasil

Brasília encerra ideias importantes, como integrar e modernizar o país e construir uma nação a partir de um projeto, e não ao deus-dará. Mas também simboliza a corrupção (que marcou sua construção), os negócios escusos entre empreiteiras e o Estado e a existência do poder central longe da maioria dos brasileiros e da pressão das ruas.

A capital, contudo, também revela uma “vontade de nação”. A cidade é portadora de um projeto de país, de uma ideia de grandeza. Niemeyer a vestiu com linhas modernas. E, ainda que os prédios de traços alongados e curvos carreguem imperfeições, dificultem a vida e pareçam artificiais, a cidade encerra ideais de beleza, inclusão e convivência.

Ambígua, torta, bela e longe da maioria dos brasileiros, Brasília é brasileiríssima.

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