10.4.10

Fumaça da Discórdia

O cigarro tem uma história controversa desde seu surgimento: de símbolo sagrado a de status, de causador de moléstias até usado nas chamadas terapias alternativas, eis a epopéia de um vício quase tão antigo quanto o gosto humano pelo produto gerado pela sua planta

Por James Andrade

Sander L. Gilman
Reprodução de um sacerdote maia fumando num templo em palenque, México. arte da era clássica Maia

No filme Avatar, em dada cena, logo no início, somos apresentados a uma cientista que acabava de sair de uma máquina e que, mal-humorada, reclamou para sua assistente com uma frase tipo: “O que está faltando aqui?”. Até aquele momento, é só uma cenaclichê, daquelas que a indústria cinematográfica norte-americana adora repetir à exaustão, porém o que chamou a atenção, e motivou este artigo, foi a resposta dada pela assistente: ela trouxe um cigarro para a doutora.

À primeira vista, um ato banal, corriqueiro, gratuito. Mas não é assim tão simples. Por trás destas “inocentes” cenas, uma batalha titânica, iniciada quase um século atrás, ainda se desenrola, recheada de revezes, sonegação de informações, ação inescrupulosa de iminentes cientistas e utilização de elementos de propaganda para a criação de hábitos e modificações de costumes. Uma luta antiga e aguerrida, opondo, de um lado uma indústria extremamente articulada e bem sucedida, que ostenta cifras impressionantes, de bilhões de dólares ano; e de outro o resto do mundo ou a parte dele que é consciente do problema pelo menos, em especial as organizações voltadas para a saúde.

As causadoras desta contenda são as muitas variedades de uma planta herbácea, de folhagem viscosa e flores tubulares: a nicotiana, e em especial sua variedade nicotiana tabacum, mais conhecida como Tabaco (ou Fumo).

História do Tabaco

Foi na ilha descoberta por Cristóvão Colombo (14511506) em 1498, batizada por ele de Tobago, que a Europa, na figura do navegador genovês, conheceu a planta a princípio chamada “erva de Tobago”, possível origem da palavra “tabaco”.

O Tabaco é originário do continente que hoje chamamos de americano; provavelmente da América Central, dali se expandindo por todo o continente, levado pelas ondas migratórias dos nativos, que a apreciavam por suas propriedades de provocar certa alteração nos sentidos.

MUITO ANTES DA CIÊNCIA SER CAPAZ DE ELABORAR UMA EXPLICAÇÃO SUCINTA SOBRE A AÇÃO DA NICOTINA NO CORPO, SEUS EFEITOS JÁ ERAM CONHECIDOS E VENERADOS.

A nicotiana tabacum (nome científico) contém, entre outras muitas, a substância nicotina, identificada em 1809. É um alcalóide capaz de produzir certo estímulo quando absorvido pelo organismo. Estudos atuais mostram que a nicotina atinge o cérebro em menos de nove segundos após a sua absorção pelos pulmões, provocando uma sutil alteração do humor. O tabaco é, portanto, um estimulante leve. Muito embora seu uso atual esteja relacionado ao relaxamento isto é um engano, como quase tudo relacionado com esta droga. A falsa sensação de calma é devido à diminuição da contração muscular normalmente presente no corpo (o tono muscular).

Na região que viria a ser o Brasil chegou trazido por índios tupisguaranis. Há relatos feitos por jesuítas datados de 1556 que fazem menção do uso de tabaco por tribos tupinambás. Na língua tupi é chamado de petume ou petun. A planta chegou a Portugal sendo levada do Brasil.

Muito antes da ciência ser capaz de elaborar uma explicação sucinta sobre a ação da nicotina no corpo, seus efeitos já eram conhecidos e venerados. A descoberta e o uso desta planta por seres humanos são muito antigos, podendo remontar facilmente a mais de mil anos antes de Cristo. Várias sociedades pré-colombianas faziam plantações de tabaco.

Nos primórdios de sua utilização há dois aspectos que, apesar de estarem intimamente ligados, podem ser avaliados em separado: o uso do tabaco relacionado a cerimônias de cunho místico-religioso e seu uso medicinal.

Pavel Pelech
Soldados alemães na II Guerra Mundial dão um tempo nas trincheiras para saborear um cigarro

Diferentemente de outras substâncias utilizadas de forma cerimonial, o tabaco, por si só, não é capaz de provocar alterações de percepção significativas, portanto não era usado como algo capaz de realizar a plena ligação com o sagrado. Sua função estava então voltada para os ritos preparatórios das cerimônias, primeiros passos rumo à comunhão com o desconhecido, que seria atingido com o uso de outros elementos.

Neste ponto o tabaco se confunde com outra planta, a fêmea da Cannabis Sativa, a maconha, de origem asiática, esta sim capaz de produzir certo grau de alucinação, estado primitivamente relacionado como sendo um contato direto com o sobrenatural. Sobre a origem destas duas plantas resta a polêmica sobre o momento em que ambas se encontraram no continente americano. Existe a tese de que a maconha foi trazida para a região onde hoje é o Chile e parte da Bolívia por espanhóis no século XVI; outros defendem que uma variedade da planta já existia no continente muito antes da chegada de Colombo.

Na medicina indígena as folhas do tabaco, e o sumo extraído delas, são utilizados para o tratamento de feridas e cortes. Geralmente mascadas ou amassadas até a obtenção de um emplasto; que pode ou não ser misturado a outras substâncias, como a urina. Colocado no ferimento elimina ou impede o aparecimento de vermes (o fato destas larvas se alimentarem de carne efetivamente morta, em decomposição, executando assim certa assepsia na ferida era ainda desconhecido). Outro uso, também em emplasto, é no combate do berne, a larva hematófaga da mosca díptera estrídea, que pode atacar tanto animais quanto humanos.

No senso comum, o tabaco age como cicatrizador e produto asséptico. A crença nestas qualidades pode estar por trás da forma como foi utilizado até o início do séc. XX, antes da forma atual, em cigarros, o tabaco era mascado. Certamente havia o consenso de que esta prática auxiliava na saúde bucal, acreditava-se que prevenia o aparecimento das inúmeras doenças capazes de provocar lacerações nos lábios e gengivas; à época, mascar fumo mantinha a boca limpa. Em muitos rincões do Brasil ainda é viva a crença que o fumo previne o tétano, doença infecciosa causada pelo clostridium tetani.

Estas são somente algumas das aplicações desta planta que durante séculos foi cercada por uma áurea quase divina, capaz de espantar desde mosquitos e cobras até maus espíritos; que aplacava a ira de seres sobrenaturais, tais como o curupira, o anão de cabelos de fogo e pés voltados para trás podia ser convencido a não atrapalhar as caçadas com ela; bem como era possível se ver livre das traquinagens do saci-pererê presenteando-o com tabaco.

A fumaça do tabaco, produzida pela queima das folhas secas, geralmente enroladas em palha de milho também seca ou socadas em tubos de junco (primórdios dos cachimbos, que no Brasil são os chamados “pitos”), era usada como elemento purificador, agindo na limpeza do corpo e do espírito, bem como do ambiente, função similar à do incenso. Assim sendo, seu uso certamente extrapolou a esfera estritamente religiosa, estando presente também em situações de caráter político e até mesmo social.

Em sendo este seu uso, podemos dizer que as qualidades medicinais da planta superaram suas propriedades místicas, escapando do controle geralmente exercido por aqueles que se apropriam da tarefa de intermediar (ou representar) os elementos místicos (pajés, xamãs, sacerdotes, entre outros). O tabaco surge como remédio e seus dotes curativos; respeitados até os nossos dias e certamente hiper-valorizadas à época; foram os primeiros fomentos da popularização do seu uso, levando à sua disseminação por todo o continente americano.

Também podemos atinar que por detrás do seu uso generalizado por praticamente todas as etnias indígenas americanas está o fato de a nicotina causar dependência, sendo classificada como uma das drogas mais viciantes que se conhece.

Na América Colonial

Acredita-se que quando os espanhóis desembarcaram no continente no séc. XV, o hábito de mascar tabaco era tão comum e intimamente ligado a noções de saúde e bem-estar entre os nativos como o é hoje em dia o hábito de mascar folhas de coca (o arbusto erythroxylum coca) para auxiliar a respiração nas regiões andinas. É certo que, devido ao seu uso purificador, a fumaça do tabaco esteve presente desde os contatos iniciais ocorridos entre nativos e europeus, naqueles que se deram de maneira pacífica, bem entendido.

Em um primeiro momento, é improvável que o estrangeiro europeu tenha apreciado o ato de fumar (aspirar o fumo, a fumaça do tabaco), uma vez que, na queima, são liberados substâncias irritantes ao sistema respiratório que provocam, em fumantes iniciantes, contração dos brônquios e o estímulo das glândulas secretoras, causando engasgos, tosses e pigarrear, bem como lacrimação devido à irritação dos olhos pela fumaça. Nesse aspecto a nicotina se difere da grande maioria das drogas viciantes que, desde o primeiro contato, promovem sensações de prazer. Mesmo assim o produto foi levado para a Espanha por navegadores da esquadra de Colombo.

Julius Hannig
Reprodução em bronze, datada de 1900, em paris, de uma decoração de salão de festas

O tabaco chega à Europa em fins do século XV, trazido pelo navegador Don Rodrigo de Jeres, capitão de uma das naus da esquadra de Colombo, que o experimentou, provavelmente fumando um cachimbo rudimentar, em seu desembarque em San Salvador (ilha do Arquipélago das Bahamas).

Inicialmente a planta foi apresentada no velho mundo como algo meramente exótico, uma das muitas singularidades trazidas do Novo Mundo para o deleite de cortes ávidas por novidades. Por algum tempo foi cultivada como planta de jardim.

O franciscano francês André Thevet (15021590), que esteve na região que viria a ser a Baía da Guanabara em 1555; fazia parte da tripulação da nau comandada por Gaspard de Coligny (1519-1572), na expedição francesa chefiada por Nicolau Durand de Villegaignon (1510-1571); conheceu o tabaco através dos índios Tamoios. Ao voltar para Paris, levou algumas sementes.

Porém por volta de 1560 tudo mudou, neste ano o dicionarista francês Jean Nicot (1530-1600), à época um diplomata na corte portuguesa, com uma ferida na perna, já considerada como incurável, soube, por intermédio do humanista Damião de Góes (1502-1574), do seu uso medicinal e iniciou um tratamento. A chaga foi totalmente curada. Maravilhado com o resultado, e em acordo com o espírito investigativo de sua época, tornou-se um entusiasta no estudo das propriedades curativas do tabaco e um divulgador de suas qualidades. É do seu sobrenome que se originou a palavra nicotina. Um destes estudos envolvia o uso do tabaco triturado e transformado em um pó para cheirar, precursor do que foi batizado como rapé (do francês râpé).

O alardear destas “descobertas” foi como uma segunda apresentação do tabaco ao “velho mundo”, e desta vez sua popularidade só fez crescer, vindo a ser conhecido em todos os continentes.

Entre os médicos da época o impacto do uso do tabaco como droga farmacológica foi enorme, envolvendo praticamente toda a comunidade médica, algo que até então nunca tinha acontecido. A erva foi prescrita como sendo capaz de curar mais de 50 tipos enfermidades e inúmeros estudos foram realizados para se descobrir as maneiras mais apropriadas do seu consumo. Houve esforços no sentido de se incorporar o consumo do tabaco no cotidiano como forma de prevenção de doenças. Durante séculos o tabaco gozou da fama de ser benéfico à saúde.

Das muitas formas de consumo sugeridas neste período, que variavam de infusões e elixires até o uso como incenso, pouquíssimas caíram nas graças dos consumidores, mesmo porque foram relatadas algumas mortes causadas por envenenamento por tabaco.

Até o séc. XVII, os usos mais populares ainda eram os mesmos velhos hábitos indígenas de mascar e fumar cachimbos. Exceção feita na França, onde desde o séc. XVI o uso do rapé era muito comum; acreditava-se que mantinha limpas as vias respiratórias.

Sobre o uso do rapé vale ressaltar que sua popularização em muito se deveu à rainha de França, Catarina de Médicis (1519-1589), que creditava ao seu uso o controle de suas enxaquecas. Crença esta tão firme que o tabaco chegou a ser conhecido como “erva catarinária” ou “erva-da-rainha”.

Da França o rapé se espalhou por toda a Europa e dela para o mundo e no decorrer do séc. XVIII foi a forma mais comum de se consumir o tabaco.

PARA PORTUGAL O TABACO FOI DE FUNDAMENTAL IMPORTÂNCIA, POIS FOI USADO PELA COMPANHIA GERAL DO COMÉRCIO DO BRASIL (1649) COMO MOEDA NA OBTENÇÃO DE ESCRAVOS AFRICANOS, BASE DA ECONOMIA COLONIAL PORTUGUESA

A rainha francesa foi informada das propriedades curativas do tabaco pelo incansável apregoador Jean Nicot. Sempre no intuito de disseminar a planta “milagrosa”, o francês enviou, em 1561, sementes de tabaco para o então Cardeal Próspero da Santa Croce, que as cultivou na região que viria a ser a Itália. No Vaticano chegou a ser chamada de “erva divina”, sendo largamente consumida. Porém o Papa Urbano VIII (1623-1644) proibiu o seu uso, sob pena de excomunhão. O motivo alegado para a bula interditória foi algo que Igreja sempre desprezou: o prazer.

Desde sua re-introdução na Europa o tabaco deixou de ser uma planta “curiosa” para se tornar um produto altamente rentável. Lavouras surgiram nas colônias e um lucrativo comércio se formou. Muito da sua relevância econômica se deveu ao fato de ser facilmente aceito como mercadoria de troca em transações comerciais.

A Espanha foi a primeira a comercializar o produto. A principio, alicerçada no Tratado de Tordesilhas e nos Pactos Coloniais, a Espanha defendeu a posse do monopólio do comércio do tabaco, o que não significou que outros também não negociassem o produto, em especial a Holanda e a Inglaterra, os ingleses obtinham o tabaco principalmente através do contrabando com a Costa-Rica.

Para Portugal o tabaco foi de fundamental importância, pois foi usado pela Companhia Geral do Comércio do Brasil (1649) como moeda na obtenção de escravos africanos, base da economia colonial portuguesa.

Já no século XVII o consumo de tabaco era considerável, tanto que motivou muitos monarcas a tomarem atitudes contra o seu comércio, destes podemos citar Jaime I (1566-1625), rei da Inglaterra, que em 1603 elaborou um documento condenando o consumo, um tratado que ficou conhecido como “A Counterblaste to Tabaco” (Um Contra-ataque ao Tabaco).

Porém, já que os males do hábito de fumar ainda eram desconhecidos, por trás destas atitudes estava tão somente o interesse em controlar o comércio do produto, inibindo o contrabando (aquele que não era feito pela própria coroa), tanto que em 1615 Jaime I torna a importação (legal) de tabaco um monopólio da coroa, pondo fim às polêmicas na Inglaterra.

A produção caseira, que também era grande, foi, em muitos lugares, combatida violentamente. Como as rígidas leis promulgadas na França em 1629. As restrições eram muitas e, na maioria dos casos envolviam pena de morte, com execuções sumárias dos infratores. Na esteira da proteção dos monopólios reais do comércio do tabaco surgiram dezenas de Companhias de Comércio, empreendimentos conjuntos de Estados e particulares, que se tornaram, a exemplo da holandesa Companhia das Índias Ocidentais, verdadeiras potências econômicas.

No século XIX

Na Espanha, desde o inicio, o costume dos índios da América espanhola, maias principalmente, de fumar as folhas do tabaco enroladas, o charuto, encontrou simpatizantes entre a nobreza, o que cercou o hábito de um certo status. Por ser muito caro, era para poucos.

Um dos entraves para a verdadeira massificação do uso do tabaco residia no fato dele ser um produto relativamente caro e protegido por rígidas leis de controle e monopólio. No séc. XVIII houve certo relaxamento das pesadas leis de proteção e o consumo do charuto se expandiu, caindo no gosto da nova classe enriquecida, a burguesia que, carente de uma identidade própria, buscava na reprodução de elementos de status da nobreza uma forma de auto-afirmação.

No séc. XIX o charuto se tornou muito consumido, rivalizando como rapé, e sempre relacionado com pessoas ricas. Até hoje a representação arquetípica de um abastado milionário é feita com um sujeito gordo fumando um charuto.

Logo de inicio percebemos que o hábito de fumar não se explica por si só. Não é um ato que traz prazer, não de imediato, ao contrário, causa desconforto (algo discutido no livro Cigarros São Sublimes, de Richard Klein).

Então porque o fumante continua a fumar? A explicação só pode estar em algo que extrapola o próprio ato. No caso da adoção do hábito de fumar charuto pela burguesia estão presentes a maioria dos elementos exteriores ao ato que o justificam psicologicamente. Há a crença nas propriedades curativas do tabaco e na ação purificadora de sua fumaça. Mas também está presente uma busca de identificação pela similaridade visual. Para o burguês, fumar charuto, ou seja, compartilhar dos hábitos da nobreza, o elevaria ao mesmo nível do nobre.

São estes elementos que fazem com que o primeiro obstáculo para o hábito de fumar, o de ser desagradável, sejam superados. A princípio, o individuo (no caso o burguês) se esforça para fumar, crente nas muitas vantagens que o hábito trará, sejam elas vantagens palpáveis (os supostos benefícios medicinais para o corpo) ou imateriais (a emulação da realeza) ou ainda de cunho místico-religiosos (a purificação da fumaça). Superados os primeiros obstáculos, o próprio produto, a nicotina, se encarrega de agrilhoar o indivíduo ao hábito de fumar, tornando-o um vício.

No decorrer do séc. XIX todos estes elementos se misturaram e contribuíram para que uma nova forma de se consumir o tabaco fosse criada: surgiu então o cigarro.

Em paralelo ao processo de massificação do consumo temos também no séc. XIX o rompimento do consenso de que o tabaco era uma “erva milagrosa” e totalmente benéfica para a saúde. Vários estudos foram publicados (no Brasil há publicações que datam de 1863) relacionando o tabaco a várias doenças, porém o teor das denúncias, via de regra, se concentrava em palavras como “abuso”, “uso descomedido” e “intoxicação” pelo produto. É desta época o termo “tabagismo” (do francês tabagisme) que, literalmente, significa abuso ou intoxicação por tabaco.


Peter Isolato
Garota persa fuma nesta pintura do século 17

No século XX

O cigarro, na forma como o conhecemos, o das folhas secas trituradas enrolados em um suporte, podendo ser papel ou palha, surgiu como um subproduto do charuto. Tanto que a origem da palavra “cigarro” é espanhola, e tem o mesmo significado de “charuto” (do inglês cheroot) que é do tabaco preparado para fumar.

O mais aceito é que o cigarro surge, num primeiro momento, entre os marinheiros dos navios que faziam o transporte do produto das Américas para a Europa, que re-aproveitavam os restos que ficavam no chão do compartimento de cargas. Para aumentar o volume os restos eram triturados misturados com outras plantas. Dos portos a nova modalidade de consumo se espalhou por toda a Península Ibérica e, levada pela soldadesca durante as Guerras Napoleônicas, alcançou toda a Europa. Porém não era bem visto, sendo considerado um hábito típico da ralé. Principalmente por ser comum o uso de bitucas e pontas de charutos usados para se fazer cigarros. Algo que, de início, prejudicou sua popularização. Mesmo gozando de má reputação o consumo de cigarros se firmou, e desde 1840 é possível encontrar descrições de pessoas fumando cigarros.

A procura levou ao surgimento de pequenas fábricas manufatureiras, produzindo cigarros enrolados à mão, um por um. Um processo lento e caro. Um exímio enrolador conseguia produzir de 3 a 4 cigarros por minuto em média. Apesar de mais barato que o charuto, o cigarro ainda era caro.

O gargalo do custo de produção foi superado em 1880, ano em que o americano James Albert Bonsack (1859-1924) criou uma máquina que era capaz de enrolar 120.000 cigarros a cada dez horas, 200 por minuto (a patente é de 1881). Uma inovação que aumentou sobremaneira a produção, elevando a oferta ao mesmo tempo em que fez cair o preço.

Por ser menor, de simples manuseio, de fácil transporte e, principalmente, mais barato, o cigarro se tornou uma inovação de elevado potencial mercadológico.

O primeiro passo para a popularização efetiva do cigarro estava dada. O excesso de oferta, que a principio é benéfico ao negócio, logo se mostra um problema se não há um aumento da demanda. Em poucos anos o mercado se viu saturado. Produzia-se muito e o consumo, apesar de ter aumentado, não acompanhava a oferta. O mercado de consumo de tabaco era imenso, só que a fatia ocupada pelo cigarro era mínima.

Um esforço para a mudança deste quadro foi dado durante a I Guerra Mundial (19141918). Maços de cigarros foram distribuídos gratuitamente entre os soldados, o que, a exemplo do já havia acontecido antes, nas Guerras Napoleônicas, serviu para disseminação mundial do produto, criando-se novos mercados consumidores. A ação teve certa repercussão, mas que enfrentava no mesmo panorama identificado anteriormente. O tabaco já era conhecido no mundo, o cigarro era só mais uma modalidade de uso, cuja adoção esbarrou em hábitos já arraigados nos consumidores.

Até o inicio do século XX a grande maioria dos consumidores ainda tinham por hábito mascar o tabaco, seguido pelo rapé, pelo cachimbo e o charuto. O cigarro ocupava o último lugar.

Na primeira metade do século, buscando solucionar o impasse, entrou em cena um elemento indissociável da moderna Indústria Tabagista: a Propaganda. O objetivo era simples: a mudança de hábitos. As ferramentas utilizadas? Todas as possíveis. De shows musicais até desfiles de moda, passando por eventos culturais e, claro, esportivos. Com um destaque todo especial para a Indústria do Cinema.

Apesar do tabaco já estar disseminado por todo o mundo e de o cigarro ter suas origens na Europa seu formato, como o conhecemos, é uma inovação norte-americana, pois foi nas películas produzidas em Hollywood que assistimos extasiados, e praticamente sem perceber, uma titânica luta travada pelo mercado do tabaco, que acabou por suplantar antigos hábitos de consumo por outros propostos à partir de ações e atitudes a principio desprovidas de intenção que não aquelas explicitas nos roteiros das produções hollywoodianas.

Aliás, Hollywood é uma marca de cigarros famosa no Brasil, que tinha o “ao sucesso” como bordão publicitário.

Apresentado de forma glamorosa, o cigarro buscou apagar suas origens marginais e se apresentou ao grande público como um hábito requintado, apreciado pela nova classe que surgia: a dos atores de cinema. Uma classe que, ao extrapolar os substratos sociais até então conhecidos, provocou severas mudanças no imaginário da sociedade.

No decorrer dos anos assistimos o cigarro figurar nas mãos dos mocinhos (geralmente bonitos) ao passo que o fumo de mascar foi parar na boca dos vilões (mexicanos gordos). Mascar fumo passou a ser nojento, fumar cigarros era mais “higiênico”, efetuando-se desta forma uma mudança no modo com que as pessoas encaravam o antigo hábito. O cachimbo ocupou as mãos dos velhos ou dos “chatos” (o intelectual). O rapé continuou com os “afetados franceses”, apesar de eles serem grandes consumidores de cigarros desde 1855. O charuto, salvo raríssimas exceções, aparecia nos gordos dedos dos ricos inescrupulosos.

Para quem assistia a estes filmes e não queria ser nojento; nem velho; nem chato; nem afetado e muito menos inescrupuloso, mas que buscava uma similaridade com seu astro de cinema preferido só restava uma opção: fumar cigarros.

Quando o cigarro foi proibido para menores, tornou-se um símbolo de virilidade, sempre nas mãos dos jovens “rebeldes”, que, por fumarem, se passavam por adultos, que “desafiavam” as regras dos “velhos”.

Serviu também para as mulheres se tornarem “independentes” dos sufocantes e opressores tabus sociais.

Uma independência possível de se alcançar, desde que se insistisse, tal como a cena clássica onde um jovem mais velho (tipo James Dean) passava um cigarro para que um garoto fumasse. Ele engasgava e tossia. Com um sorriso de superioridade o jovem, com tapinhas nas costas do outro, dizia algo como: “A primeira vez é sempre assim, depois melhora”.

Tabaco na propaganda

As campanhas publicitárias criadas para a promoção do cigarro estão entre as mais elaboradas da história da propaganda. No Brasil estas campanhas influenciaram gerações inteiras. algumas são até bem recentes, e já estavam na linha de “propagandas indiretas”, aquelas que não falavam diretamente do produto. Na época do nosso ídolo maior do automobilismo, ayrton senna, a maioria das escuderias eram patrocinadas por marcas de cigarro. sua primeira vitória, no Gp de portugal de 1985, a mais marcante de sua carreira, foi com um carro da escuderia lótus, todo preto, lindamente decorado com a marca John Player Special (JPS) da empresa britânica imperial tobacco.

Outras campanhas, mais antigas, eram mais diretas, tal como a da marca Vila rica, da americana RJR (R.J. Reynolds Tobacco), que tinha como garoto-propaganda o tri-campeão mundial de futebol da Copa de 1970, Gérson. O bordão “Gosto de levar vantagem em tudo, certo?”, transformado em “Lei de Gérson”, ilustrava, e valorizava, uma mazela da identidade nacional, a de que o brasileiro possuía uma “malandragem safa”, o famoso “jeitinho brasileiro”, uma chaga ética que sempre nos difamou como povo. De todas, a campanha mais emblemática foi, sem dúvida, a criada pela agencia Leo Burnett para a marca Marlboro, da norte-americana Phillip Morris (Altria Group inc). Iniciada em 1954, a campanha foi veiculada em todo o mundo até 1999 e tinha como bordão “terra de Marlboro, onde os homens se reúnem”.

Os anúncios mostravam personagens criados pelo publicitário americano John landry, tipos arquetípicos dos cowboys norte-americanos, os marlboro men, homens de ostentosa virilidade interagindo em meio a robustos cavalos e paisagens agrestes. No fim, fumavam, prazerosamente, um cigarro. No inicio dos anos 90, dois dos modelos que encarnaram o marlboro man, Wayne Mclaren (1940-1992) e David Mclean (1922- 1995), morreram de câncer causado pelo cigarro. Para eles, a “Terra de Marlboro” foi o cemitério.

Décadade 1960


TABACO
Foi considerado uma planta miraculosa, apontada por médicos como um “remédio para todos os males”, é hoje classifi cado como a terceira causa de morte evitável no mundo.

No fim dos anos 1950 o longo casamento entre tabaco e medicina, que já vinha abalado, se desfez totalmente. Com provas contundentes, a comunidade médica fez afirmações que sacudiram a indústria tabagista. tais como: “A nicotina é uma droga e causa dependência no consumidor” e “Cigarro provoca câncer no pulmão”.

Estudos demonstraram que o usuário da nicotina desenvolve tolerância a ela, fazendo com que aumente o consumo da substância para obter os mesmos efeitos iniciais. a interrupção do uso causa síndrome de abstinência, com vários efeitos tanto físicos (como diminuição da freqüência cardíaca) quanto psicológicos (irritabilidade e depressão, entre outras).

Na década de 1960 foram concluídas pesquisas que comprovam a relação existente entre o hábito de fumar e o aparecimento de câncer pulmonar. Desde então se descobriu o usuário de tabaco está mais propenso a muitas outras doenças, tais como pneumonia e enfarte miocárdio (a lista é imensa).

Hoje se sabe que a fumaça do cigarro possui mais de 4.000 substâncias tóxicas, desta constatação criou-se a figura do “fumante passivo”. o individuo que não fuma, mas que, ao estar exposto à fumaça do cigarro, sofre dos mesmos males do fumante. a descoberta desta figura jurídica foi de extrema importância para que leis antifumo fossem aprovadas em muitos paises, sendo o Brasil (pós 1985) um expoente na condenação ao hábito de fumar.

Em 2005 o Brasil, juntamente com outros 192 países, assinou o tratado internacional chamado Convenção-Quadro para o Controle do tabaco. a lei estadual antifumo sancionada no estado de são paulo, proibindo fumar em ambientes fechados (lei 13.541 de 07 de maio de 2009), segue orientações deste acordo.

Atualmente a nicotina é considerada droga pela oMs (organização Mundial de saúde) e o tabagismo é classificado no Código internacional de Doenças (CiD-10) como: “grupo dos transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substâncias psicoativas”.

A indústria tabagista não concorda com a classificação e se mantêm reticentes em aceitar as provas científicas e reconhecer o mal causado pelo produto que comercializam.

As armas nacionais

também conhecidas como Brasão Nacional, fazem parte dos símbolos Nacionais (Bandeira Nacional, armas Nacionais, selo Nacional e Hino nacional) e tem como data de criação 19 de novembro de 1889 (a mesma da Bandeira Nacional). Foi elaborado a pedido do Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), o artista encarregado foi o engenheiro alemão arthur sauer. repleto de simbolismos, tais como estrelas representando estados e uma espada marcando a queda da Monarquia, o selo é ladeado por dois ramos. À esquerda um ramo de café e à direita um ramo florido de tabaco.

A presença das plantas ressalta a importância de ambas para a economia brasileira na época em que o brasão foi concebido. o cultivo do tabaco sempre foi, desde o descobrimento, uma importante fonte de renda para o país, tanto que mereceu figurar no Brasão Nacional. Na esteira das leis antifumo há projetos de lei para que se faça a substituição do ramo de tabaco por outra planta. a presença do ramo florido no brasão é, segundo os defensores da mudança, incompatível com uma nação comprometida com o combate ao tabagismo. infelizmente a planta sugerida para a mudança é um talo de cana-de-açúcar.

JAMES ANDRADE pesquisador de história antiga e medieval. É autor do livro Getsêmani, a Verdade oculta (Giz editorial, 2008).


Fonte:Filosofia