Até 1808, os brasileiros comiam com as mãos e viviam numa terra sem universidades, imprensa ou médicos. Com a chegada da corte ao Rio de Janeiro, a colônia começou a ficar com cara de país
por Reinaldo José Lopes
Naquela manhã quente, seu Barroso levantou cedinho. Próspero comerciante carioca, ele tinha de ir até o Valongo, na zona portuária, examinar mercadorias recém-chegadas. Mandou um escravo enrolar as esteiras onde havia dormido, enquanto outro colocava uma tábua em cima de dois cavaletes e trazia as gamelas com o almoço. Entre um bocejo e outro, Barroso mergulhava os dedos na papa de farinha e feijão-preto. Terminou de comer limpou as mãos na roupa de algodão e, antes de ir para a rua, deu uma chinelada na ratazana que tentava invadir sua casa.
O comerciante precisou aplicar um golpe de bengala para atravessar a esquina – um bando de urubus estava distraído demais para lhe dar passagem, banqueteando-se com um cachorro morto na véspera. Numa rua estreita, Barroso passou por seu barbeiro, o mulato Sebastião, e se deteve um instante. Suas hemorróidas estavam de matar. Seria o caso de pedir ao velho homem uma rápida aplicação de sanguessugas? Talvez uma outra hora. Mais alguns minutos e Barroso finalmente chegou ao Valongo, onde trocou uma bela quantidade de carne-seca e couro curtido por alguns negros trazidos da África.
Embora a cena descrita acima seja fictícia, ela traça um retrato fiel do que era o Brasil no começo do século 19. O pedaço mais lucrativo do império português também era um local tosco, desprovido de saneamento básico, educação superior, hospitais e até de moeda circulante (nosso Barroso não era um adepto do escambo à toa). A fuga do príncipe regente dom João e de todo o aparato estatal português para cá, entre o fim de 1807 e o começo de 1808, deu os primeiros passos para acabar com esse marasmo (o que colocaria a colônia, sem querer, no caminho da independência). E tudo graças a um certo Napoleão Bonaparte, que tinha decidido acabar com o sossego de Portugal e ocupar o pequeno país ibérico.
Deus-nos-acuda
Portugal tinha virado alvo de Napoleão por causa da sólida aliança do país com a Inglaterra. Enquanto expandia seus domínios pela Europa, o imperador da França enfrentava uma guerra prolongada com os britânicos e queria expulsá-los dos portos da Europa. Como Portugal era um dos poucos países ainda abertos à Marinha inglesa, Napoleão pressionava dom João a abandonar seus velhos aliados.
O indeciso príncipe regente adotou por meses sua tática favorita: enrolar. Mas a pressão britânica foi mais forte que a francesa, em especial porque a Inglaterra ameaçava ocupar o Brasil caso o monarca não concordasse com o plano de fugir para a colônia. Quando dom João finalmente aprovou a retirada estratégica, a situação logo virou um deus-nos-acuda. Os cerca de 40 navios carregavam um amontoado de cerca de 11500 pessoas. A frota, escoltada pelos britânicos, deixou Lisboa em 29 de novembro de 1807, quando o Exército francês já estava entrando na capital.
A comitiva aportou em Salvador em 22 de janeiro de 1808. Antes de rumar para o Rio de Janeiro, dom João ficou pouco mais de um mês na Bahia. Foi apenas o tempo estritamente necessário para se recuperar da travessia e emitir a famosa ordem de abertura dos portos brasileiros às “nações amigas” – leia-se Inglaterra –, acabando com o monopólio naval português por aqui. Era a primeira prestação devida aos britânicos por seu papel de cães de guarda do império lusitano. E a primeira mudança de peso a afetar uma colônia que estava, sob muitos aspectos, parada no tempo.
Tigres e bandoleiros
Os que estudam a situação brasileira em 1808 são quase unânimes: chamar a América portuguesa de “Brasil” seria quase força de expressão. A unidade estava longe de ser clara. “Os habitantes do Brasil se auto-identificavam como portugueses, sentimento que convivia com identidades particularistas, como ‘ser das minas’ ou ‘ser bahiense’”, diz Ana Rosa Cloclet da Silva, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Estima-se que o Brasil da época tivesse 3 milhões de habitantes – incluindo 1 milhão de escravos e 800 mil índios.
Cerca de 60 mil pessoas viviam no Rio de Janeiro, contra 46 mil em Salvador e 20 mil em São Paulo. Embora os paulistas já tivessem parado de falar tupi – que, durante séculos, chegou a ser mais usado que o português em São Paulo –, eles ainda tinham muito de índio, dormindo em redes, vestindo imensos ponchos que hoje nos lembrariam os gaúchos e usando, para cortar a carne no almoço, a mesma faca que manejavam em duelos.
Os paulistas com jeitão de bandoleiros eram só uma faceta da vida urbana caótica que dom João encontraria no Brasil. As ruas das principais cidades só poderiam ser definidas como uma zorra total. Estreitas e mal iluminadas, eram lotadas de vendedores ambulantes cuja gritaria não deixava ninguém em paz, bichos (principalmente porcos e galinhas) e lixo. Sem falar nos urubus, que se esbaldavam com tanta fartura.
No entanto, em termos de, digamos, saneamento básico, nada superava o sistema dos “tigres”, os escravos que desempenhavam o papel de carregadores de esgoto e lixo em cidades como o Rio, Recife e Salvador. Eles colocavam barris cheios de dejetos nas costas e os levavam para o mar. Com o passar do tempo, as substâncias que caíam em seus ombros deixavam listras brancas na pele negra – daí o apelido felino. As praias mais glamurosas do Rio moderno provavelmente eram um fedor completo no começo do século 19.
Os “tigres” eram só mais um lembrete de que, no dia 8 de março, dom João e sua corte tinham desembarcado no maior mercado de escravos das Américas, o Rio de Janeiro, cidade onde um terço da população de 60 mil pessoas correspondia aos cativos.
No olho da rua
O primeiro problema que o príncipe precisou resolver na chegada foi onde enfiar 11500 membros sem-teto da elite portuguesa. Simples: dom João mandava pintar as iniciais P.R. (oficialmente “Príncipe Regente”, mas interpretadas como “Ponha-se na rua”) nas casas desejadas para sua nobre trupe. Os donos originais tinham que deixá-las livres para os novos moradores e, supostamente, deveriam ter sido recompensados com uma espécie de aluguel, mas isso acabou acontecendo com freqüência bem inferior à necessária.
Dom João trouxe para o centro do Rio um novo tipo de música: a dos explosivos, pondo abaixo morros e rochedos que, segundo os urbanistas portugueses, atrapalhavam a circulação do ar e das águas e tornavam a cidade propensa a enchentes. Na base da pólvora, a região foi ficando mais plana e ampla. Era preciso expandir a cidade: em 1808, o Rio tinha apenas 46 ruas e um punhado de becos e travessas. Segundo cálculos do viajante inglês John Luccock, cada residência carioca espremia, em média, 15 pessoas.
Apesar do “Ponha-se na rua”, a elite carioca se mostrou mais que disposta a sustentar a corte nem um pouco austera de dom João. O maior exemplo disso veio com a fundação do Banco do Brasil, que iniciou um lucrativo sistema de toma-lá-dá-cá entre o rei e seus súditos brasileiros. O banco seria sustentado inicialmente pelos investimentos dos cariocas, que podiam comprar ações da instituição. Quem fosse generoso podia ser recompensado com títulos de nobreza e, melhor ainda, com dividendos bem superiores ao rendimento real do banco. Isso porque, como conta o jornalista Laurentino Gomes em seu livro 1808, o Banco do Brasil se pôs a emitir papel-moeda sem lastro correspondente em ouro – receita ideal para que a instituição quebrasse, o que aconteceu anos após a Independência.
A colônia não tinha autonomia completa nem para julgar seus próprios crimes. “Antes de 1808, o Judiciário do Brasil era composto essencialmente pelos Tribunais da Relação, com sedes no Rio de Janeiro, na Bahia e no Maranhão, mas a última instância ficava em Lisboa”, conta Márcio Antônio Ribeiro, consultor histórico do projeto Bicentenário do Judiciário Independente no Brasil, organizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Uma das medidas tomadas pelo príncipe regente foi criar a Casa de Suplicação no Rio, transformando a nova capital na última instância de todos os casos julgados em seus domínios. A Casa de Suplicação, após uma série de metamorfoses institucionais, daria origem ao atual STF.
Quase medieval
A verdade é que criar um banco e um tribunal ou abrir os portos era até a parte fácil do trabalho de dom João. Difícil mesmo seria cumprir o objetivo declarado de tornar o país “digno” da corte recém-chegada. O primeiro baque deve ter sido a diferença brutal de vestuário entre os fugitivos e os nativos. De um lado estavam as perucas empoadas, os sapatos de salto alto e os casacões bordados que Portugal copiara da corte francesa. De outro, os chinelos de dedo, calças leves e jaquetas de chita dos homens do Rio de Janeiro. Já as cariocas usavam rosários, camisas simples, saias curtas e mais chinelos.
Não demorou para que os brasileiros se pusessem a imitar o estilo da corte – até escravos libertos adotaram cartolas, bengalas e casacas. Mas estava na cara que esse tipo de vestuário não funcionaria direito num país tropical. Um diplomata da Prússia relatou o desastre de uma recepção de gala: “Às 8 horas, ombros e costas das damas, que trajavam vestidos decotados da moda, já tinham sido tão picados por mosquitos que, de tão vermelhos, assemelhavam-se a soldados após apanharem de chicote”.
Em vários aspectos do cotidiano, até mesmo os brasileiros mais ricos levavam uma vida quase medieval em 1808 (com a exceção do costume de tomar banhos regulares, impensável para os portugueses). Quem vivia por aqui em geral não sabia o que era usar talheres à mesa. Enquanto os homens utilizavam facas de cabo prateado para cortar carne – num almoço formal, cada convidado tinha de trazer a sua de casa –, mulheres e crianças mergulhavam as mãos na papa de comida.
O menu não era muito variado, incluindo em geral carne-seca, toucinho, feijão-preto, farinha de milho e, para beber, água. Vez por outra, as famílias comiam à mesa, embora o mais comum fosse fazer as refeições no chão, sentados em esteiras, com o prato no colo, enquanto ratazanas passavam correndo pelo aposento – se você queria saber se duas pessoas sentadas lado a lado eram íntimas, era só prestar atenção se uma delas enfiava a mão no prato da outra e pegava um pedaço do rango.
Cultura de fachada
As boas maneiras precárias na hora do jantar eram apenas sintomas da completa falta de refinamento no Brasil pré-1808. Sem nenhuma faculdade por aqui, qualquer estudante mais ambicioso precisava ir para uma instituição européia, como Coimbra, em Portugal (que formou 527 brasileiros entre 1772 e 1800). O ensino mais básico dependia das ordens religiosas, de seminários ou, bem mais raramente, de professores leigos isolados nas cidades e vilas, pagos pela coroa. Dom João deu os primeiros passos para mudar isso já em 1808, ao fundar uma escola de Medicina em Salvador e outra no Rio de Janeiro.
Essa revolução no ensino foi também o começo do fim da única vantagem da medicina brasileira: a praticidade. Quem queria resolver problemas de saúde podia aproveitar para fazer barba, cabelo e bigode. Isso porque, sem médicos formados, quem ocupava seu lugar eram os barbeiros. Munidos de instrumentos como serrotes e de remédios como óleos e cascas de árvore, cabia a eles desafiar as moléstias comuns na colônia, como sarna, bicho-de-pé, verminose, hemorróida e hepatite. Os tratamentos, rudimentares, quase sempre incluíam a sangria: eram feitos cortes na pele do paciente para que o sangue escorresse por algum tempo, na esperança de que a doença “saísse” desse jeito. Com o mesmo objetivo, era comum o uso de sanguessugas para chupar fluidos corporais.
Somava-se à falta de educação formal o controle rígido da circulação de obras escritas estrangeiras e a proibição de imprimir jornais, revistas ou livros por aqui. O primeiro jornal dedicado à comunidade brasileira, o Correio Braziliense, começou a ser impresso... em Londres, pelo jornalista gaúcho Hipólito José da Costa, em 1808. Nasceu timidamente independente, até que dom João resolveu oferecer a Costa uma pensão governamental que manteve o jornalista fiel ao domínio português até a Independência. A essa altura, o príncipe já tinha fundado seu próprio jornal oficial, a Gazeta do Rio de Janeiro. Também mandou trazer para cá os livros da Biblioteca Real, que tinham ficado para trás no cais de Lisboa e seriam o embrião da Biblioteca Nacional.
Dom João se esforçou para dar ao Brasil pelo menos uma fachada de vida cultural. Apaixonado por música sacra, o soberano importou até um grupo de castrati, eunucos italianos famosos por sua habilidade como cantores líricos. O Rio ganhou o Teatro São João, com espaço para mil espectadores e 112 camarotes. O problema era a falta de modos do público: não era raro que os artistas levassem pedradas bem no meio das apresentações.
Outra importação artística famosa foi a da Missão Francesa, composta por pintores, escultores e músicos e trazida em 1816 (após a derrota de Napoleão) com o propósito de criar uma academia de Belas-Artes por aqui. Esse objetivo não foi cumprido. Em compensação, os franceses souberam puxar habilmente o saco da família real, organizando eventos suntuosos para comemorar o casamento de dom Pedro ou a coroação de dom João VI após a morte de sua mãe. Os franceses usavam madeira e tapumes para criar réplicas meia-boca de pirâmides, obeliscos e templos gregos, tudo generosamente decorado com flores tropicais, folhas de palmeira e lampiões coloridos.
Rebaixamento jamais
Durante anos, a presença de dom João serviu para unir a elite da colônia em torno do projeto de reconstruir o poderio português, agora na América. “Verificou-se, de fato, um surto de patriotismo imperial”, escreve o historiador Luiz Carlos Villalta, da Universidade Federal de Minas Gerais, no livro 1789-1808 – O Império Luso-Brasileiro e os Brasis.
A corte fez de tudo para transformar o Rio num palco adequado para seu esplendor. O comércio prosperava e os cariocas nunca tinham se sentido tão europeus. Produtos industriais ingleses inundaram o mercado brasileiro – até patins de gelo vieram parar aqui, logo virando maçanetas improvisadas, entre outras aplicações insuspeitas. Cabeleireiros franceses, cozinheiros italianos e até os primeiros imigrantes não-portugueses – um grupo de suíços que fundou a cidade fluminense de Nova Friburgo – trouxeram um sabor internacional aos domínios de dom João.
Havia, no entanto, um senão nesse idílio tropical: ele se chamava Portugal. O país foi reconquistado com a ajuda de tropas britânicas, mas acabou devastado pela guerra e arruinado pela perda da posição de metrópole. Some-se a isso o fortalecimento das idéias liberais no país, e o quadro estava montado para exigências sobre a criação de um governo constitucional, que limitasse os poderes de dom João VI e o chamasse de volta para Lisboa. Foi o que reivindicou a Revolução do Porto, em 1820.
No ano seguinte, após mais um de seus típicos episódios de enrolação, dom João VI embarcou a contragosto para seu país natal. Logo ficou claro que as intenções dos revolucionários portugueses incluíam um retorno do Brasil à velha situação subordinada. No entanto, quase tudo tinha mudado desde 1808. A colônia agora tinha um centro claro, o Rio de Janeiro, que não aceitaria facilmente o rebaixamento de cidade imperial a cafundó colonial. E os habitantes daqui – governados pelo príncipe Pedro, de cabeça quente e inclinações liberais –, estavam começando a pegar gosto pela idéia de ter seu próprio país.
Idéias antigas
A vinda da corte para a América já era cogitada desde o século 18
Se a monarquia portuguesa não fosse uma das mais desorganizadas e conservadoras da Europa, a transferência da corte para o Brasil poderia ter acontecido bem antes, sem a necessidade do empurrãozinho napoleônico. “Era uma idéia cogitada desde pelo menos o século 17”, diz Francisca Nogueira Azevedo, professora de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O projeto começou a ser formulado logo depois da restauração de Portugal como reino independente, em 1640. O país tinha passado os 60 anos anteriores sob o domínio da Espanha, e nada garantia que o vizinho maior e mais poderoso não tentasse refazer a união assim que houvesse a oportunidade. Mas, se Portugal era vulnerável, seria muito difícil para um inimigo europeu invadir e ocupar as enormes extensões de terra do Brasil. No começo do século 18, o diplomata Luís da Cunha analisou a situação de relativa fragilidade de Portugal na Europa e escreveu ao rei dom João V uma carta quase profética. “Considerei que S.M. (Sua Majestade) se achava na idade de ver potentíssimo e bem povoado aquele imenso continente do Brasil; e nele tomasse o título de imperador do Ocidente”, propôs Cunha ao rei. “Na minha opinião, o lugar mais próprio de sua residência seria a cidade do Rio de Janeiro”, acrescentou. Tais idéias não parecem ter sido levadas a sério, mas nem por isso foram esquecidas. Segundo Francisca Azevedo, o projeto renasceu com força considerável nos primeiros anos do século 19. “O principal defensor do projeto passou a ser dom Rodrigo de Sousa Coutinho”, afirma Francisca. Num relatório de 1803, Coutinho, então chefe do Tesouro Real, dizia a dom João: “Portugal não é a melhor parte da monarquia, nem a mais essencial. Depois de devastado por uma longa e sanguinolenta guerra, ainda resta ao seu Soberano, e aos seus povos, irem criar um poderoso império no Brasil”.
O olhar de fora
A transformação dos costumes segundo os estrangeiros
Os testemunhos mais informativos e divertidos sobre a cara em mutação do Brasil a partir de 1808 provavelmente são os dos viajantes estrangeiros, que só a partir dessa data puderam visitar o país em quantidade significativa. Até 1815, quem se destaca são os britânicos, como o comerciante John Luccock e o oficial da Marinha James Tuckey. Luccock, por exemplo, relata: “Os ingleses se assenhoraram da Alfândega, regulam tudo, e os funcionários são instruídos a prestar atenção especial às recomendações do cônsul britânico”. Já Tuckey comenta os modos (ou a falta deles) das damas cariocas: “As mulheres brasileiras têm, entre outros, o péssimo hábito de escarrar em público”. Após a derrota de Napoleão, uma enxurrada de franceses aportou por aqui, entre os quais uma missão de artistas convocada pelo próprio dom João VI. Um deles foi o pintor Jean-Baptiste Debret, que comentou a paixão dos brasileiros pela cultura da França, que se estendeu até depois da Independência. “O habitante do Brasil tem se mostrado tão entusiástico apreciador da elegância e da moda francesa que, por ocasião da minha partida, em fins de 1831, a rua Vivienne de Paris (atual rua do Ouvidor), no Rio de Janeiro, era quase inteiramente constituída de lojas francesas de todo tipo”. Debret também notou que o nível educacional das damas cariocas estava, ainda bem, em franca evolução. “Os meios de ensino multiplicaram-se de tal maneira que não é raro encontrar-se uma senhora capaz de manter uma correspondência em várias línguas e apreciar a leitura”, comentou o artista.
Saiba mais
Livros
1808, Laurentino Gomes, Planeta, 2007
Sem firulas ou excesso de detalhes, traça um panorama completo do Brasil antes e depois de dom João.
Império à Deriva, Patrick Wilcken, Objetiva, 2004
Expõe as origens da idéia de transferir a corte para o Brasil e os bastidores do papel britânico na vinda da família real.
1789-1808 – O Império Luso-Brasileiro e os Brasis, Luiz Carlos Villalta, Companhia das Letras, 2000
Ajuda a entender a quase inexistência de uma identidade entre as várias regiões do país antes de 1808.Post-Scriptum
O ano em que o Brasil foi inventado
O que seria de nós se a família real não tivesse vindo para cá?
Laurentino Gomes
O Brasil foi descoberto em 1500, mas inventado como país em 1808. Nenhum outro período da história brasileira testemunhou mudanças tão profundas, decisivas e aceleradas quanto os 13 anos em que a corte portuguesa permaneceu no Rio de Janeiro. Num espaço de apenas uma década e meia, o Brasil deixou de ser uma colônia proibida, atrasada e ignorante para se tornar um país independente. Portanto, o que se comemora em 2008 não são apenas os 200 anos da chegada da corte ao Rio de Janeiro. O próprio Brasil está fazendo aniversário.
Uma forma de avaliar a herança de dom João VI na história brasileira é abordar a questão pelo avesso: como seria hoje o país se a corte não tivesse fugido para o Rio? Apesar da relutância em fazer conjecturas sobre o passado, todos os historiadores concordam que, na hipótese mais provável, o Brasil simplesmente não existiria na sua forma atual. A Independência e a República teriam vindo mais cedo, mas a antiga colônia portuguesa se fragmentaria em um retalho de pequenos países, parecido com seus vizinhos da América espanhola, sem nenhuma afinidade entre si além do idioma.
É preciso levar em conta que, 200 anos atrás, o Brasil não existia. Pelo menos, não como é hoje: um país integrado, de fronteiras definidas e habitantes que se identificam como brasileiros, torcem pela mesma seleção de futebol, usam os mesmos documentos, freqüentam escolas de currículo unificado e comercializam produtos e serviços entre si.
Às vésperas da chegada da corte ao Rio de Janeiro, o Brasil era apenas uma grande fazenda extrativista de Portugal, sem noção alguma de identidade nacional. As diferentes províncias eram mais ou menos autônomas, sem comércio ou qualquer outra forma de relacionamento, que tinham como ponto de referência apenas o governo português, sediado em Lisboa, do outro lado do Atlântico. “Cada capitania tinha seu governante, sua pequena milícia e seu pequeno tesouro; a comunicação entre elas era precária, sendo que geralmente uma ignorava a existência da outra”, assinalou o naturalista francês Auguste Saint-Hilaire, que percorreu o país entre 1816 e 1822.
Mantida por três séculos isolada no atraso e na ignorância, a colônia era composta por ilhas escassamente habitadas e cultivadas, distantes e estranhas entre si. Nem mesmo a expressão “brasileiro” era reconhecida como sendo a designação das pessoas que nasciam no Brasil. Panfletos e artigos publicados no começo do século 19 discutiam se a denominação correta seria brasileiro, brasiliense ou brasiliano. O jornalista Hipólito José da Costa, dono do jornal Correio Braziliense, publicado em Londres, achava que as pessoas naturais do Brasil deveriam se chamar brasilienses. Na sua opinião, brasileiro era o português ou o estrangeiro que lá se estabelecera. Brasiliano, o indígena.
MÃOS à OBRA
Tudo mudaria com a chegada do príncipe regente. Em 1808, passados os atropelos da viagem, era hora de colocar mãos à obra. Dom João não perdeu tempo. Caberia a ele e seu ministério criar um país a partir do nada. Foram inúmeras as decisões administrativas que o príncipe regente tomou. As novidades começaram a aparecer num ritmo alucinante e teriam grande impacto no futuro do país. Na escala em Salvador, a medida principal foi a abertura dos portos. Na chegada ao Rio de Janeiro, foi a concessão de liberdade de comércio e indústria manufatureira no Brasil. A decisão, anunciada no dia 1º de abril de 1808, revogava um alvará de 1785, que proibia a fabricação de qualquer produto na colônia. Combinada com a abertura dos portos, representava na prática o fim o sistema colonial.
Livres das proibições, inúmeras indústrias começaram a despontar no território brasileiro. A primeira fábrica de ferro foi criada em 1811, na cidade de Congonhas do Campo, pelo então governador de Minas Gerais, dom Francisco de Assis Mascarenhas, o conde da Palma. Em outras regiões foram erguidos moinhos de trigo e fábricas de barcos, pólvora, cordas e tecidos.
A abertura de novas estradas, autorizada por dom João ainda na escala em Salvador, ajudou a romper o isolamento que até então vigorava entre as províncias. Sua construção estava oficialmente proibida por lei desde 1733, com a desculpa de combater o contrabando de ouro e pedras preciosas. As regiões mais distantes foram exploradas e mapeadas. O Pará e o Maranhão ganharam uma nova carta hidrográfica. Goiás, a sua primeira companhia de navegação. Expedições percorreram os rios tributários do Amazonas até as nascentes e estabeleceram a comunicação fluvial entre o Mato Grosso e São Paulo. A navegação a vapor foi inaugurada em 1818 por Felisberto Caldeira Brant, futuro marquês de Barbacena e primeiro embaixador do Brasil em Londres depois da Independência.
A Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal publicado em território nacional, começou a circular no dia 10 de setembro de 1808, impresso em máquinas trazidas da Inglaterra. Com uma ressalva: só imprimia notícias favoráveis ao governo.
O MAPA DA MINA
A maior de todas as conquistas de dom João VI, no entanto, foi mesmo a preservação da integridade territorial brasileira. Dois séculos atrás, a unidade política e territorial do Brasil era muito frágil. Sem a mudança da corte portuguesa, os conflitos regionais teriam se aprofundado, a tal ponto que a separação entre as províncias seria quase inevitável. “Essas colônias estariam de fato perdidas para a metrópole se dom João não migrasse para o Brasil”, afirmou em suas memórias o almirante sir Sidney Smith, comandante da esquadra que levou a corte para o Rio.
Uma prova dessa fragilidade foi a própria delegação brasileira enviada a Portugal para participar das votações das Cortes entre 1821 e 1822. Embora o Brasil tivesse direito a 65 deputados, só 46 comparecem às sessões em Lisboa, o que os deixava em ínfima minoria diante da representação portuguesa, composta por 100 delegados. Apesar da inferioridade numérica, os brasileiros se dividiram nas votações. Os delegados das províncias do Pará, Maranhão, Piauí e Bahia se mantiveram fiéis à coroa portuguesa e votaram sistematicamente contra os interesses brasileiros das demais regiões. Em nova demonstração de falta de consenso, em 1822 essas províncias do Norte e Nordeste não aderiram à Independência. Dom Pedro I teve de recorrer à força militar para convencê-las a romper os laços com o governo português.
Com base nessas divergências regionais, o historiador americano Roderick J. Barman, autor do livro Brazil – The Forging of a Nation (“Brasil – o forjar de uma nação”, inédito em português), levanta algumas hipóteses sobre qual teria sido o destino dos territórios portugueses na América sem a mudança da corte para o Rio de Janeiro. Barman acredita que o Brasil poderia ter se desintegrado em três diferentes países. É fácil imaginar as conseqüências dessa separação:
- Esse Brasil dividido em pedaços autônomos nem de longe teria o poder e a influência que o país exerce hoje sobre a América Latina. Na ausência de um Brasil grande e integrado, o papel provavelmente caberia à Argentina, que seria, então, o maior país do continente;
- Brasília, a capital federal plantada no cerrado por Juscelino Kubitschek em 1961 para estimular e simbolizar a integração nacional, nunca teria existido. O esforço de integração teria dado lugar à rivalidade e à disputa regional;
- Na escola, quando abrissem seus livros de Geografia, as crianças gaúchas aprenderiam que a floresta Amazônica era um santuário ecológico de um país distante, situado ao norte, na fronteira com a Colômbia, a Venezuela e o Peru;
- As diferenças regionais teriam se acentuado. É possível que, a esta altura, as regiões mais ricas desse mosaico geográfico estariam discutindo medidas de controle da emigração dos vizinhos mais pobres, como fazem hoje os americanos em relação aos mexicanos;
- Nordestinos seriam impedidos de migrar para São Paulo. Em contrapartida, ao viajar de férias para as paradisíacas praias da Bahia ou do Ceará, os paulistas teriam de providenciar passaportes e, eventualmente, pedir visto de entrada;
- O comércio e o intercâmbio entre as diversas regiões seriam muito menores e mais complicados. Ao vender seus produtos para Goiás, Mato Grosso ou Tocantins, os cariocas, paulistas e paranaenses teriam de pagar tarifas de importação – e vice-versa.
O PAI DA CRIANÇA
À luz da realidade do Brasil atual, tudo isso parece mero devaneio. Ainda assim, não se deve subestimar a importância de dom João VI na construção da identidade dos brasileiros de hoje. Por essa razão, o balanço que a maioria dos estudiosos brasileiros faz da transferência da corte para o Rio de Janeiro tende a ser positivo, apesar de todas as fraquezas pessoais do rei. Graças a ele, o Brasil se manteve como o país de dimensões continentais, que hoje é o maior herdeiro da língua e da cultura portuguesas. Para o historiador Oliveira Lima, dom João VI foi “o verdadeiro fundador da nacionalidade brasileira”, por duas razões principais: assegurou a integridade territorial e deu início à classe dirigente que se responsabilizaria pela construção do novo país.
Ironicamente, esse legado não seria desfrutado por dom João ou pela metrópole portuguesa. “Ele próprio regressava menos rei do que chegou”, disse Oliveira Lima, ao tratar do retorno do rei a Lisboa, em 1821. “Deixava contudo o Brasil maior do que o encontrara.” Em outras palavras, ao mudar o Brasil, dom João VI o perdeu para sempre. O resultado foi a Independência, em 1822.
Laurentino Gomes, jornalista, é autor do livro 1808. A obra está na lista das mais vendidas nas livrarias desde que foi lançada na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, em setembro.
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