31.5.11

As Primeiras Figuras do Historiador na Grécia: historicidade e história

François Hartog

(Revista de História 141, 1999, p. 9-20)

Se a história, ou antes sua escrita, começa na Mesopotâmia, com a monarquia de Agade (2270-2083 aC), a primeira a unificar o país sob sua autoridade e a recorrer a escribas para escrever sua história[1]. Se o Livro do Antigo Israel, por inteiro tomado pela exigência da memória, se apresenta, fundamentalmente, como um livro de história[2]. O que dizer então dos Gregos? Alojados em seus apertados cantões nas orlas do Oriente, são apenas os “tardios”, eles que toda uma longa tradição retomada até nossos dias não deixou, entretanto, de constituir como os “primeiros”: a Grécia não foi o lugar de todos os começos? E Heródoto não é, pelos menos desde a designação ciceroniana, o pai da história?

Tardios, eles o são indiscutivelmente, eles que além do mais retomaram a escrita apenas tardia ou recentemente (no curso do século VIII aC), ao adaptar o alfabeto sírio-fenício. Em compensação, foi com eles, e precisamente com Heródoto, que surgiu o historiador como figura “subjetiva”. Sem estar diretamente vinculado a um poder político, sem ser comissionado por ele, desde a abertura, desde os primeiros termos mesmos, Heródoto põe-se a marcar, a recortar, a reivindicar a narração que dá início, pela inscrição de um nome próprio: o seu, no genitivo (“De Heródoto de Halicarnasso, eis a historiê...”). Como já o fizera, antes dele, Hecateu de Mileto, e como, depois de ambos, o fará Tucídides de Atenas; mas Hecateu assim como Tucídides valem-se ambos do nominativo. Ele é o autor do seu logos e é este logos que, diante de outros ou contra eles, vem estabelecer sua autoridade. Logo reivindicado, este novo lugar do saber está, ao mesmo tempo, inteiramente por construir[3]. Há aí uma nítida distância em relação às historiografias orientais. Os Gregos são menos os inventores da história que do historiador.

Este modo de afirmação e este dispositivo de produção de um discurso não estão restritos, é sabido, apenas à historiografia. Muito ao contrário, eles constituem a marca, propriamente a insígnia desta época da história intelectual grega (séculos VI/V aC), que viu entre os artistas, os filósofos da natureza, os médicos, a ascensão do “egotismo”[4]. Todavia, no caso da historiografia, esta afirmação virá acompanhada por uma certa fragilidade, na medida em que a história se tornar bem rapidamente um gênero, mas não uma disciplina: em nenhum momento ele ficará aos encargos de uma instituição (escola ou outra), que codificasse suas regras certificadoras e controlasse seus modos de legitimidade. E mais, figura nova no cenário do conhecimento, mas que não surgiu do nada, o historiador não tardará a inclinar-se diante do filósofo, que se tornará, desde o século IV aC, a referência maior e, por assim dizer, o padrão do intelectual: o modelo. O historiador criticará o filósofo, far-se-á passar por filósofo, ou, em réplica ao filósofo, empenhar-se-á por mostrar que a história é filosófica.

Por figura de historiador, designam-se os traços e os gestos inaugurais, as configurações epistemológicas, mas igualmente narrativas que irão tornar possível e dar sustentação à primeira narração histórica. É aos contornos desta figura que me dedico aqui.

Epopéia ou história.

Heródoto quis rivalizar com Homero, e, ao término das Histórias, resultou Heródoto. Esta fórmula, que já me ocorreu empregar, quer apenas sugerir que a força ou a audácia primeira do começar, Heródoto encontrou-a antes na epopéia. Empreender para as guerras entre Gregos e Bárbaros o que Homero fizera para a guerra de Tróia. Como a epopéia, a história, a de Heródoto, de Tucídides, a que, para nós, tornar-se-á justamente “a história”, coloca no ponto de partida o conflito, a contestação, a ruptura: o confronto dos Aqueus e dos Troianos, a querela entre Aquiles e Agamêmnon, as lutas dos Gregos contra os Bárbaros, a guerra entre Atenienses e Lacedemônios. A Ilíada canta o confronto, e abre-se pelo momento em que eclode a funesta disputa entre os dois heróis, a história elege narrar uma grande guerra e começa por fixar sua “origem” (determinação da aitia, a responsabilidade e a causa, para Heródoto ou da alethestate prophasis, a causa mais verídica, para Tucídides).

Inspirado pela Musa, o aedo “vê” pelos dois lados. Ele conhece e canta os feitos e os infortúnios de uns e de outros, bem sabendo que nada escapa aos desígnios de Zeus. Igualmente, o primeiro historiador, que é um homem do exílio (sabe-se que Heródoto teve que deixar Halicarnasso), atribui-se como tarefa repertoriar e narrar os grandes feitos quer de Bárbaros quer de Gregos. Também exilado, o AtenienseTucídides indica nun segundo prefácio ter podido “assisitir os fatos dos dois lados”[5].Esclareça-se que, do aedo ao historiador as “condições de trabalho”, no que se pode afirmar, deterioram-se, pois à escolha e à visão divinas (por vezes pagas com a cegueira dos olhos físicos) substitui-se o exílio como condição de possibilidade deste duplo olhar ou desta posição de entre-dois.

Da história à epopéia.

Se o caminho que leva da epopéia à história foi por longo tempo seguido (fosse para prender-se às continuidades ou, ao contrário, acentuar as rupturas)[6], não poderíamos, por um momento pelo menos, percorrê-lo ao inverso e enfocar a Odisséia, uma epopéia certamente, também como uma primeira história? Po posicionamento e por construção. Indo-se não de Homero a Heródoto, mas de Heródoto para Homero.

Na abertura de seu belo livro, Mimesis, Erich Auerbach, exilado em Istambul, opôs o estilo homérico ao do Antigo Testamento. Comparando a narração do sacrifício de Isaac com a cena do reconhecimento de Ulisses por sua ama Euricléia, ele caracterizou o estilo de Homero como um estilo de “primeiro plano”, o qual apresenta “sempre o que está para ser narrado como um puro presente”, e “que pouco lugar deixa para o desenvolvimento histórico e humano”[7]. Diante das grandes figuras bíblicas, tão “bem carregadas de seu passado”, continuamente “sovadas”pela mão de Deus, os heróis homéricos, de destinos claramente fixados, “despertam a cada dia como se fosse o primeiro dia”[8]. Do lado de Homero, têm-se personagens bem à superfície e um material lendário, ao passo que do outro, a historicidade está presente a atravessar as vidas e a organizar as narrações. E a história, ela mesma, lá está, ou aflora[9].

Sem recusar esta tipologia “fundamental”da literatura ocidental, pode-se, entretanto, questioná-la. Observando de início que Ulisses, que é o mesmo do primeiro dia, não volta a ser, contudo, plenamente ele-mesmo a não ser após seus reencontros com Penélope. E ao longo de toda a Odisséia, ele é designado como aquele que, diferentemente de seus companheiros, não quer esquecer: nem o retorno nem Ítaca nem, fundamentalmente, que ele é um homem mortal: Tirésias fala-lhe seguramente do retorno, mas também da morte que advém. Ao passo que o espaço das narrações (junto a Alcino), aberto pelo encontro com os Lotófagos é um mundo do esquecimento onde se esquece e é-se esquecido[10]. Mas, sobretudo, pode-se partir desta evidência: a Odisséia vem depois da Ilíada[11]. NaIlíada, Tróis não foi tomada ainda, Aquiles está ainda vivo: estamos no antes, na expectativa. Assim que se abre a Odisséia estamos no depois, na memória do acontecimento e na lembrança dos lutos e dos sofrimentos suportados[12]. Dez anos depois deste acontecimento maior para os antigos, mas também entre os modernos. Tucídides ai verá o primeiro empreendimento pujante que os “Gregos” conduziram em comum, ao passo que, mais tarde, os Romanos aí encontrarão, pela fuga de Enéias, o ponto de partida de sua própria história: a rota do exílio transformando-se por fim em retorno à terra de origem.

Marco compartilhado, a seguir questionado, ou firmemente recusado, a guerra de Tróia permanece não menos, até hoje em dia, este acontecimento “axial”, em relação ao qual a Odisséia, que dela relata vários episódios, posiciona-se já como uma sua história. Demódoco, o aedo cego dos Feácios, começa a cantar a querela de Ulisses com Aquiles[13], depois, por pedido expresso de Ulisses, passa ao episódio do cavalo de pau, com a pilhagem e o incêndio da cidade[14]. Está-se, certamente, ainda no registro dos feitos heróicos (klea andron). Mas, se prestarmos atenção ao público do aedo e às suas reações (ou seja, às narrações dispostas no interior mesmo da narrativa), nota-se que a Odisséia abre um tempo em que o prazer (terpsis), normalmente esperado e visado pelo canto do aedo, é em várias ocasiões solapado, comprometido pela dor, pela aflição, pelo desgosto que ele suscita ou desperta em uma parte de seu auditório. Como se não pudesse mais aí haver prazer sem mescla, a não ser para a sociedade excepcional (utópica, por vezes dita) dos Feácios que, vivendo à parte, afastados dos homens comedores de pão, saboreiam sem cessar “os banquetes, a lira, as danças, os banhos quentes e os leitos, as vestes frequente trocadas...”[15]. Se os deuses teceram a morte de tantos homens sob os muros de Tróia, admite abertamente Alcino, “foi para (ina) fornecer cantos às pessoas do futuro”[16]: passa-se diretamente do falecimento à epopéia, da morte ao passado. Alcino é um esteta e um funcionalista: os homens devem morrer para que outros, mais tarde, possam gozar o prazer do canto. Para os Feácios, que, desde que deixaram a vizinhança problemática dos Ciclopes, ignoram a violência e a guerra, o prazer é idêntico em ouvir o aedo cantar os amores adúlteros de Ares com Afrodite, a querela de Aquiles com Ulisses ou o incêndio de Tróia.

Evidentemente as coisas não são assim para Ulisses. Se, ao escutar a maneira com que Hefesto se vinga dos amantes que dele caçoaram, experimenta um prazer totalmente semelho ao dos outros ouvintes[17], tudo muda quando se passa para a história recente. Ao passo que os Feácios se regozijam, Ulisses não consegue reter as lágrimas: ele chora à rememoração da querela, ele chora à narração do cavalo de pau que ele mesmo, entretanto, pedira[18]. Por isso, hospedeiro atencioso que gostaria que todos tivessem o mesmo prazer (homos terpometha pantes)[19], Alcino prontamente põe fim aos serviços do aedo.

Epopéia do retorno, mas retorno doloroso (lugros), a Odisséia é tomada pela ausência e construída em torno da memória. Penélope não suporta que Fêmio, o aedo de Ítaca, cante o retorno de Tróia e as desgraças dos Aqueus, ela que não para de estar de luto pela ausência de seu esposo: ele é dominada pelopothos, na obsessão de seu pensamento pelo desaparecido[20]. Assim, o que é recebido pelos outros como uma simples novidade no repertório do aedo, é para ele totalmente insuportável. Em suma, entre Penélope e os outros há uma distância e discordância de registro: ela permanece (ainda) no da ausência (pothos) e da dor pessoal, ao passo que os outros estão (já) a ouvirem estas histórias como pertencentes ao passado e respeitantes ao registro do kleos. Para eles, o “retorno” é tanto mais um bom tema de epopéia quanto caminha diretamente no sentido de seus interesses. Um Ulisses, homem do passado, portanto morto, vale mais que um Ulisses desaparecido.

Igualmente, Menelau, que após anos de errância retomou seu reino e sua mulher, não encontra mais prazer em reinar: tomado como Penélope por um incoercível pothos, ele chora, dizendo-o a Telêmaco, por todos aqueles que morreram diante de Tróia e, particularmente, por Ulisses, cuja memória, esteja a ceiar ou a dormir, não para de frequentá-lo[21]. Será preciso a intervenção de Helena para aliviar a angústia que oprime então os convivas do banquete e serenar seus choros. Ela começa por verter no vinho uma droga que, suprimindo dor, cólera, lembrança de infortúnios, é um verdadeiro “antiluto” (nepenthes), depois, convidando a todos a que se deixem levar pelos prazeres da mesa e pelo prazer (terpsis) das histórias, ela mesma narra, como o faria um aedo, um episódio da gesta de Ulisses. Menelau dá prosseguimento, com um outro episódio, depois Telêmaco, que breve lembra a tristeza da sorte de Ulisses, pede para ir dormir[22]. A noite foi salva. A droga de Helena realiza o caminho que Penélope não pode percorrer: ela instaura a distância e dispõe os convivas em estado de escutarem a evocação dos feitos de Ulisses como se eles não fossem os ouvintes de Helena, mas os do próprio Homero.

Num instante e por um momento, o pharmakon transforma “a ausência”em “passado”. O desaparecido torna-se um morto, ou o morto um “bom”morto, sem que seja necessário passar por essas etapas, normalmente necessárias, que são os funerais e o canto épico, cuja complementaridade Jean-Pierre Vernant demonstrou. Enquanto instituições elaboradas para aculturar a morte, os funerais marcam, com efeito, “a passagem da rememoração patética do pothos a uma memorização mais distante e objetiva, uma memória institucionalizada conforme o código social de uma cultura heróica”. Ao passo que o canto épico vem coroar o processo, ao transformar “um indivíduo que perdeu a vida na figura de um morto cuja presença enquanto morto é definitivamente inscrita na memória do grupo[23].

Na grande sala do palácio de Menelau, os convivas, graças ao artifício de Helena, “esquecem” sua dor e podem saborear o prazer sem mescla que se espera do canto do aedo[24]. Como os Feácios, que porém não necessitam qualquer droga para tanto. Na opinião de Alcino, Ulisses conta tão bela e sabiamente quanto um aedo[25]. Que eles ouçam Ulisses contar suas próprias errâncias infelizes, na primeira pessoa ou Demódoco cantar o saque de Tróia e celebrar Ulisses, na terceira pessoa, eles do mesmo modo se encantam[26]. Ao passo que evidentemente não é assim para Ulisses.

Na cena que põe frente a frente o aedo inspirado e o herói que escuta a narrativa de suas próprias ações, Hannah Arendt via o início, poeticamente falando pelo menos, da categoria de história. “O que fora puro acontecimento virava agora história”. Assistimos, com efeito, à primeira narração do acontecimento. Com esta singularidade: a presença de Ulisses lá e aqui permite atestar que “isso”realmente ocorreu. Delineia-se ali uma configuração até agora inédita, uma “anomalia”, pois na epopéia a veracidade da palavra do aedo dependia inteiramente da autoridade da Musa, inspiradora e avalizadora ao mesmo tempo. Indo ainda mais longe, Hannah Arendt via esta cena como “paradigmática” para a história e para a poesia, pois a “reconciliação com a realidade, a catharsis que, segundo Aristóteles, era a essência da tragédia e, segundo Hegel, o fim último da história, produz-se graças às lágrimas da lembrança[27].

Pode-se acompanhar Hannah Arendt neste atalho, que nos leva de Homero a Hegel pela via da catharsis? Trata-se do “primeiro” relato histórico? Por que? Para nós, talvez sim, mas à maneira de uma cena primitiva. Para Demódoco, certamente não: ele realiza o aedo, como era normal. Para os Feácios, também não. Eles ouvem seu aedo, como habitual: sua vida nos confins os coloca de imediato ou já na posição dessas pessoas do futuro evocadas por Alcino. Então, para estas autênticas “gentes do futuro” que são os destinatários da Odisséia? Como percebiam eles esta “anomalia”, se a percebiam, e se assim fosse, que sentido lhes atribuiam? Mas seria preciso primeiro responder a questão de saber quem eram os destinatários do poema.

Antes mesmo de enfocar o efeito produzido pela acumulação das instâncias narrativas, aquele a quem a questão se coloca de início é Ulisses, pois ele é também o único que sabe por experiência que esta história é ao mesmo tempo sua história e é história. Ora, como reage ele? Ele chora. Mas ele realiza também um certo número de gestos e pronuncia algumas palavras. A Demódoco que já cantou por duas vezes, ele manda pelo arauto uma posta de carne selecionada, modo evidente de honrá-lo, e de através dele celebrar a função mesma do aedo. A Odisséia, diferentemente da Ilíada, aprecia por em cena o personagem do aedo e o desempenho épico.

Depois, ele prossegue: “Demódoco entre todos os mortais te cumprimento!/ A Musa, filha de Zeus, te instruiu, ou Apolo”. Com esta lembrança do laço estreito que une o poeta à Musa, está-se ainda no elogio de convenção, esperado: o aedo é um vidente. Mas o que se segue é mais surpreendente: “Tu cantas com muita arte (lien kata kosmon) a sorte dos Gregos,/ tudo que eles fizeram, foram objeto e sofreram os Argivos,/ como (hos) alguem que estivesse presente (pareon), ou pelo menos que o ouvisse de um outro (akousas)[28]. Muda-se, com efeito, de registro: o vidente é também um “observador”, mais exatamente sua descrição é tão precisa, “demais” precisa mesmo, que Ulisses é tentado a acreditar que ele efetivamente viu o que ele canta, bem sabendo pertinentemente que não foi nada assim. Demódoco, aedo e cego, não é de modo algum uma testemunha. Ulisses é a testemunha.

Sim, todo ouvinte da epopéia, e Ulisses em primeiro lugar, bem sabe que a onisciência ou a onivisão da Musa funda-se na presença: no fato de lá estar. “E agora, dizei-me, Musas, habitantes do Olimpo”, solicita o poeta à abertuta do grande catálogo das naus, “pois vós sois, vós, deusas: em tudo presentes (pareste), vós sabeis tudo (iste panta); nós ouvimos apenas o rumor (kleos), nós, e não sabemos (idmen) nada, dizei-me quem eram os condutores, os chefes dos Dânaos...”[29]. E o aedo, sob o efeito da inspiração, vê como a Musa, como se ele tivesse estado presente. Então, por que este desvio de Ulisses pela visão humana, com esta valorização, antecipadamente historiadora, da autópsia e esta distinção, ainda mais historiadora, entre o olho e o ouvido[30]?

A narração de Demódoco é bem exata (lien kata kosmon), parece dizer Ulisses, para não ter resultado de uma visão direta das coisas. Para ele, o agente e a testemunha, esta capacidade de tudo dizer até em detalhe, sem perdas e sem sobras é a marca segura da verdade do canto[31]. De fato, para a Musa ver, saber e dizer caminham paralelamente. O wie es eigentlich gewesen é seu habitual! Assim o pressupõe o dispositivo da palavra épica. Mas, para Ulisses, por uma curiosa reviravolta, é a visão humana que é promovida, pelo menos por ocasião destes tres versos, a padrão pelo qual se mede a justeza da visão divina. Tem-se, então, a justaposição de um Demódoco “aedo” com um Demódoco “historiador”, , mesmo que este último compareça ali apenas o tempo de “autentificar” o outro, o aedo. A última palavra fica evidentemente com a Musa. Mas a ocorrência mesma desta mudança de registro, por breve que seja, ou desta quase que duplicação de Demódoco em “aedo” e em “historiador” nem assim é menos, poéticamente falando (no sentido de uma poética dos saberes), importante. Conta, com efeito, o fato mesmo de sua formulação por Ulisses. Ela apõe uma marca como um relâmpago lançado sobre uma outra configuração de saber possível, como a designação de um lugar que não tem ainda nome, como a pura amostra da operação historiográfica vindoura com Heródoto. Ela não a torna nem necessária nem mesmo provável, mas simplesmente possível.

Aos propósitos de Ulisses, às suas falsas questões, Demódoco evidentemente não responde, e ninguem esperava que ele o fizesse. Ele é o aedo, em sua função de aedo. Seu canto alegra os Feácios. Mas Ulisses, ele, chora[32]. Seriam “lágrimas de lembranças”? À evocação dos infortúnios dos Aqueus é ele tomado, come Penélope ou Menelau, pelo pothos? A esta obra do luto ainda não cumprida? É, aliás, bem o sentido da questão de Alcino, o qual, tendo notado suas lágrimas, pergunta se ele perdeu algum parente ou alguem próximo sob os muros de Tróia[33]. Ulisses não responderá.

Mas antes mesmo da pergunta de Alcino sobre a razão de sua lágrimas, uma surpreendente comparação, marca direta da intervenção do poeta, sublinhara já sua extranheza e sua importância. “Como uma mulher chora seu esposo abraçando-o,/ que tombara diante de sua cidade e de seu povo/ defendendo-a e a seus filhos do dia fatal,/ e, vendo o moribundo em convulsão, debruçada sobre ele, emite gritos agudos; mas, por trás, lanceiros alvejam-lhe as costas e os ombros,/ levam-na cativa a sofrer penas e dores/ e suas faces murcham pela mais lamentável angústia;/ igualmente Ulisses tinha lágrimas de tristeza nos cílios[34].

Que ele chore, seja, mas por que como uma mulher? Por quem estas lágrimas de piedade? A mulher que, dizimada pelo luto, chora seu esposo desaparecido, é Penélope. A que viu seu esposo morrer diante de sua cidade e dde seu povo, antes de conhecer o jugo da escravidão, é Andrômaca[35]. Ainda esta comparação, por seu poder de evocação, de resumo, ou de universalização (a dor de Ulisses valeria pela de todas as vítimas da guerra) participa desta “arte da alusão”, característica do funcionamento do texto odisséico[36]. Ele contribui em dar-lhe uma profundidade de campo, que vem, novamente, relativizar as noções estilísticas de Auerbach.

Ulisses a chorar está, parece-me, de luto ele mesmo: ele chora por ele mesmo. Desde o início de suas errâncias no espaço in-humano que se abriu ao cabo Maléia, ele é um desaparecido: nem morto nem vivo, ele perdeu até seu nome[37]. Ele é como uma esposa que, no dia em que seu marido morre, não tem mais nada, não é nada. A parte heróica, “masculina” dele mesmo, à qual se vincula a glória, ficou, por assim dizer, nas praias troianas. Ora, eis que, desembarcado junto a estes barqueiros que são os Feácios, estes intermediários dos confins, ele se ouve celebrado pela boca de Demódoco, por seu nome de glória: o “marido” une-se à “esposa”. Em breve, ele mesmo, poderá por sua própria narração realizar a união das duas partes de sua existência, a troiana e a errante.

Mas h’’a uma contrapartida, um preço a ser pago. Ulisses encontra-se na penosa posição de ter de ouvir a narração de seus feitos, na terceira pessoa: como se ele estivesse ausente, como se ele estivesse morto. Ele se ve a ocupar o lugar que é o do morto[38]. A epopéia, e a história depois dela e como ela, pressupõem a morte, ou antes a tecem com suas palavras. Como uma mortalha que, recobrindo o rosto dos mortos, deles faz justamente mortos. No momento mesmo em que Ulisses acredita finalmente retomar seu passado glorioso, ele realiza, em meio aos Feácios e através das palavras mesmas de Demódoco, a experiência da morte. Está ele morto, está ele vivo? Ele ouve o que um vivo, normalmente, não poderia ouvir. Esta última experiência é, num sentido, mais radical que a da descida à morada de Hades, no curso da qual ele avançou até os limites da fronteira que separa os vivos dos mortos, mas permanecendo sem ambiguidade na margem dos vivos. Chorar-se-ia a menos[39]. Por aí também, esta cena é emblemática, aí ainda à maneira de uma cena primitiva: nela se revelam instantâneo, no jogo do quiproquo, as condições de possibilidade (ou de impossibilidade) de uma narração que toma por encargo a ausência.

Do ponto de vista de Ulisses, este curto momento de entre-dois, em que ele não é mais Ulisses e ainda não é Ulisses, não traduz mesmo a descoberta dolorosa da não-coincidência de si consigo mesmo? Uma descoberta que não dispõe ainda de termos para ser dita, mas que Homero torna visível pelas lágrimas. Nesta distância experimentada entre alteridade e identidade vem se alojar o quê, senão a experiência do tempo? A diferença temporal de si consigo. O encontro com a historicidade ou a historialidade.

A epopéia separa passado e presente, por simples justaposição. Assim que o aedo começa a cantar, opera-se a cisão: os klea andron transformam-se em altos feitos dos homens de outrora, e os mortos tornam-se os homens do passado. A Odisséia queria poder justapor, ela também, mas, tendo escolhido cantar o retorno, depara-se incapaz de fazê-lo. Como Ulisses, ela realiza a experiência do tempo e descobre a historicidade. Ainda, talvez, ela se situa entre dois regimes da palavra: a palavra épica à qual queria ainda crer, e uma outra, por agora ausente, mas que tentará considerar o tempo mesmo? Ela não pode mais simplesmente “justapor” e ela não sabe ainda “cronologizar”. A fascinação exercida pela Odisséia não surge ela também do fato de que ela é uma epopéia nostálgica, a de um retorno impossível e desejado em direção à epopéia (em direção da Ilíada)?

A Odisséia, que é, a muitos respeitos, uma epopéia que se considera a si mesma, não viria duvidar dela mesma, e a por em questão esta troca operada pelo aedo entre a morte e a glória? Certamente Ulisses, como todo herói que se respeita, teria preferido perecer gloriosamente em Tróia do que conhecer uma morte lamentável no mar, que o submergiria na multidão dos “sem nome”. E Penélope, como mulher de herói que se respeita, não diz diferentemente: “Agora as Hárpias o levaram sem glória (akleios),/ ele partiu obscuro, ignorado...[40].

Mas, quando, tendo descido ao Hades, Ulisses, a fim de consultar Tirésias, faz surgir o cortejo das sombras dos mortos, não desvenda ele, igualmente, o reverso da decoração da morte heróica? Em particular, em seu encontro com a sombra de Aquiles, herói épico caso o tenha sido. Ulisses acha ser apropriado lembrar a excelência passada, mas também sublinhar a preeminência presente de Aquiles, que “reina” agora entre os mortos. Ele atrai contra si então esta famosa réplica: “Não busques abrandar-me a morte, ó nobre Ulisses!/ Preferiria estar no campo doméstico de um camponês, mesmo que sem patrimônio e quase sem recursos,/ a reinar aqui entre estas sombras consumadas[41]. Não seria confessar que o contrato épico - a vida contra a glória imortal - é uma troca desigual? ANekuya nos faz passar do outro lado do espelho da epopéia.

Com as enigmáticas Sereias, confrontadas após a expedição ao Hades, viria talvez o espelho a se quebrar? Pois, estas “Musas de Lá-de-Baixo”, ou “reversos” de Musas vêm minar, ou arruinar a economia do kleos[42]. Elas prometem o prazer (terpsamenos) a quem delas se aproxima e o saber que elas detém é em todos os pontos semelho ao das Musas, as quais, sempre presentes, sabem tudo. “Nós sabemos (idmen) com efeito, dizem elas a Ulisses, tudo o que nos plainos de Tróia/ os Gregos e os Troianos sofreram por decisão dos deuses,/ nós sabemos tudo o que advém sobre a terra fecunda”[43]. Mas, o viajante imprudente que se deixasse capturar pelo seu doce canto, preveniu Circe, perde tudo: o retorno e a glória. Desaparecido para sempre, suas carnes apodrecem e seus ossos lavam-se à praia. Em lugar e vez do kleos, encontra apenas o esquecimento.

O que implica isto, mais precisamente, em relação ao dispositivo épico? Na epopéia, o prazer do ouvinte é “pago” pela morte de outros. E Alcino, sustentando que os outros morrem para o prazer dos homens vindouros, apenas leva esta lógica a seu extremo. Mas, para que o dispositivo funcione, há uma condição, que toca no âmago mesmo do processo épico: é preciso que “os outros” transformem-se em homens de outrora, que se cave a distância entre passado e futuro. É por isso que a Odisséia, que é uma epopéia do retorno, ou seja da ausência, mas não da morte, é talvez uma epopéia “manca” ou, pelo menos, uma epopéia que se interroga a si mesma.

Com o canto das Sereias, trata-se ainda do prazer do ouvinte, mas tudo se passa como se fosse ele mesmo que devesse pagar esse preço, com sua própria morte: não sendo um “homem do futuro”, não há outra solução que tornar-se um “homem do passado”, portanto desaparecer. Tão logo Ulisses se aproxime de sua ilha, as Sereias o chamam por seu nome glorioso: elas sabem quem ele é. Mais ainda, elas usam uma forma elogiosa - “Vem cá, Ulisses tão gabado, nobre glória (mega kudos)”[44]-, que vem a ser exatamente a retomada da empregue, em uma ocasião da Ilíada, por Agamêmnon dirigindo-se a Ulisses. Mais uma vez aIlíada surge na Odisséia, enquanto que Ulisses, ele, encontra-se voltado para seu passado, ou atraído para o repouso do kleos. Mas unir-se a este passado, ceder a esta atração seria ausentar-se de si mesmo para sempre: sem mais poder fazer unirem-se as duas partes ou lados dele mesmo. Imortais e isoladas em sua ilha, as Sereias não dispõem de outros ouvintes que suas vítimas: jamais, diferentemente do aedo inspirado, elas cantam para “os homens vindouros”. Pelo seu canto, elas “enterram” não os mortos, mas os vivos que elas tornam desaparecidos. Elas estão lá, em um presente imóvel, incapazes de inspirar jamais um canto de rememoração[45].

Da epopéia à história.

Por este caminho, bem balizado, podemos alargar o passo. Com Heródoto, a história não pensa romper completamente com a economia do kleos, que fixava o estatuto e a função da palavra épica. Como se o historiador esperasse retomar, prolongar o canto do aedo e vir a ocupar seu lugar ou um lugar análogo em um mundo, que politica e socialmente mudou. Como se ele quisesse ser historiador e permanecer Demódoco, ou ser um Demódoco historiador, de quem aOdisséia tivesse por um instante produzido a impossível figura. Entretanto, desde a primeira frase das Histórias, que é qause de feitura épica, várias fraturas estão a atuar[46].

Proclamando de imediato sua preocupação com a memória, Heródoto entende que as marcas e os traços da atividade dos homens, os “monumentos” que eles produziram, não acabam, não se apagam - como uma pintura que, com o tempo, desvanecesse (exitela)-, ou não vêm a ser privadas de “kleos” (aklea)[47]. Pois o grande diluidor é logo designado, é o tempo. É ele o inevitável e primeiro adversário. A economia do kleos produzia o passado, imediatamente, quase sem o saber. Pelo simples fato de ser cantado, o herói mudava-se em homem de outrora. Mesmo que a Odisséia, descobrindo a dificuldade desta passagem, a exprimisse pelo tema mesmo do retorno: a “nostalgia” como experiência do tempo, da não coincidência de si consigo, da historicidade.

O historiador, ele, diminuiu as garantias do aedo. Ele não promete mais a glória para sempre, não é mais nem mesmo interogada a validade dos termos da troca (a vida contra a glória), ele gostaria apenas de lutar contra o desvanecimento dos traços, impedir, antes atrasar o esquecimento deste erga (ações, palavras, monumentos) que nenhuma palavra de autoridade não toma mais o encargo. No deslise da positividade do kleos para o simples adjetivo privativo a-klea marcam-se ao mesmo tempo a referência e o recurso à palavra épica e a ruptura em relação a ela.

Ao passo que o aedo tunha naturalmente por repertório “a gesta dos heróis e dos deuses”, o historiador se atribui como único domínio de competência “o que adveio pela obra dos homens” (genomena ex anthropon), em um tempo que é, ele também, circunscrito como “tempo dos homens”[48]. O tempo dos deuses ou o dos heróis são “passados” que certamente ocorreram, mas eles escapam ao saber do historiador que considera a partir do seu presente. Os deuses não estão de modo ausentes, menos ainda foram recusados, mas as modalidades de sua presença e as marcas de sua intervenção são outras que as da epopéia.

A Odisséia era a descoberta dolorosa de uma historicidade, que ela não dispunha ainda dos meios de nomear nem de apreender. Não podendo mais se satisfazer com a cisão passado-presente, tal como a representava o aedo, entanto que qualquer aedo se pusesse a cantar, ela não sabia, entretanto, como produzí-la de outro modo. A cisão estava diretamente ligada ao presente de cada desempenho, reiterável, intemporal em suma. De imediato pego no tempo e às voltas com ele, o historiador separa, ele também, passado e presente, mas ele o faz a partir de seu próprio presente, a partir de seu nome próprio que ele lança ao começar e que lhe permite estabelecer a distância entre “agora”ou “no meu tempo” e “antes”, “outrora”. Este lugar da palavra uma vez segmentado, ele pode a seguir avançar sua narração e designar, em função do saber que é o seu, por exemplo, quem tomou a primeira iniciativa de atos ofensivos para com os Gregos. No caso Creso, o rei da Lídia[49].

Ulisses “as cidades de muitos homens e conheceu seu pensamento” e suportou muitas dores. O historiador, igualmente, viaja, por seus pés (bom pé, bom olho), mas também por a través das narrações dos outros. E ele sabe, ainda, que não basta o ver hoje ou o ter visto ontem as cidades dos homens, pois o tempo que é desvanecimento é também mudança. “Prosseguirei na sequência de minha narração, anuncia Heródoto, percorrendo igualmente (homoios) as grandes cidades dos homens e as pequenas; pois, aquelas que outrora eram grandes, a maioria tornou-se pequenas; e as que eram grandes na minha época foram pequenas outrora; sabendo que a prosperidade humana não permanece jamais fixa no mesmo ponto, comporei igualmente a memória de umas e de outras.”[50]. Há aqui como que uma lei da história, a meio caminho entre a profecia e o prognóstico, extraída por um Heródoto que conheceu, entre as guerras Medas e a guerra do Peloponeso, um período de transformações acelerado. A distância entre o passado e o presente mede-se e apreende-se entretanto no jogo da oposição grande/pequeno, retomando a figura simples (e segura, porque geradora de inteligibilidade) da revirada ou da inversão. Frente a esta realidade, a tarefa do historiador é a de não ser injusto nem a respeito do passado nem a respeito do presente, sabendo respeitar esta exigência de igual tratamento.

Heródoto, observemos ainda, não escre aquelas que “são” grandes na minha época, mas aquelas que “eram” grandes. Por que este por no passado seu presente? Não é, em se considerando já ele mesmo no passado, o modo de se dirigir aos “homens vindouros”, que deverão, eles mesmos, defenderem-se contra o esquecimento de que nada, jamais, permanece no mesmo lugar? O futuro não está absolutamente fixado, mas ele jamais é completamente inédito. Ou mesmo este imperfeito (epistolar, foi dito), comparecendo no prólogo que apresenta e recapitula o empreendimento (e redigida por último, como todo prefácio digno desse nome?), poderia ser já a expressão de um olhar retrospectivo lançado sobre o caminho percorrido. Ele viria então marcar o desbaste de um passado no interior mesmo da posição do presente. A não-coincidência consigo tornou-se uma experiência ordinária e o tempo introduziu a defasagem entre os mortos e as coisas: ou excesso ou falta de uns em relação aos outros. Daí a exigência de discorrer homoios.

De Demódoco a Heródoto a passagem não era nem imediata nem obrigatória, mas simplesmente possível. Na sua contraposição a Ulisses, a figura de Demódoco deixa assim perceber, por um instante, uma outra, a qual aconteceu, bem mais tarde, que Heródoto viesse a atribuir um nome e uma palavra próprias: a figura do historiador, com a operação historiográfica que acompanha seu nascimento[51]. Mas entre a palavra épica e o discurso historiador, a Odisséia, que cantava a impossibilidade da epopéia, narrava a descoberta fascinante e dolorosa da historicidade.

François Hartog.

École des hautes Études en Sciences Sociales

Bibliografia:

Arendt, H, La crise de la culture, trad. Gallimard, Paris.

Auerbach, E., 1968, Mimesis. La répresantation de la réalité dans la littérature occidentale, trad. Gallimard, Paris.

Certeau, M. de, L’écriture de l’histoire, Gallimard, Paris.

Darbo-Pechanski, C., 1987, Ed. Du Seuil, Paris.

Hartog, F. - 1991, Le Miroir d’Hérodote, niouvelle édition révue et augmentée, Gallimard, Paris.

J. Brunschwig G. Lloyd, 1997, ed. Dictionnaire des savoirs grecs, Flammarion, Paris.

Lloyd, G., 1987, The Revolutions of Wisdon, Berkeley.

Nagy, G., 1990, Pindar’s Home The Lyric possession of na epic past, John Hopkins.

Nagy, G., 1993, Le meilleur des Achéens. Trad. Seuil, Paris.

Pucci, P., 1979, The Songs of the Sirens, Arethusa, 12.

Pucci, P., 1987, Odusseus Polutropos, Cornell Uviersity Press.

Sauge, A 1992, De l’’ Epopée à l’Histoire, Francfort s.M.

Segal, Ch. - 1983, Kleos and its ironies in the Odyssey, L’Antiquité Classique, 52.

Vernant, J.-P., 1989, L’Individu, la mort, l’amour, Gallimard, Paris.

Vernant,J.-P.,1990, Figures, Idoles, Masques, Julliard, Paris.

Vidal-Naquet, P.,1981, Le Chasseur Noir, Mspero, Paris.

Walsh,G.B.,1984, The Varieties of Enchantment, The University of North Carolina Press.

Yerushalmi, J.,1984, Zakhor, Histoire Juive Mémoire JuiveLa Découverte, Paris.



[1] Jean-Jacques Glassner, Chroniques mésopotamiennes, Les Belles Lettres, Paris, 1993, p. 20-22. Pode-se-ia igualmente evocar o Extremo-Oriente e os primeiros Anais chineses: assim os Anais do país de Lu (722-481), os mais antigos subsistentes.

[2] J.Y. Yerushalmi, 1984.

[3] F. Hartog, “Le vieil Hérodote”, 1991.

[4] G.R. Lloyd, 1987, p. 58-70.

[5] Tucídides, V.26.

[6] Por último, G. Nagy, 1990.

[7] E. Auerbach, 1968, p. 20, 33.

[8] Ibid. p. 21.

[9] Ibid. p. 28: “Um leitor com alguma experiência facilmente faz a separação, na maioria dos casos, entre a história e a lenda”.

[10] F. Hartog, Mémoire d’Ulysse, Récits sur la frontière en grèce ancienne, 1996.

[11] Já por longo tempo os especialista de Homero empenharam-se em medir em dispor em número de anos o intervalo que separa a composição dos dois poemas: um século, meio-século? No tratado Sobre o Sublime, IX, 12, a Odisséia é apresentada como o poema da velhice de Homero (a Ilíada sendo o da juventude), em que ele restitui a seus heróis suas lágrimas, como se fosse uma dívida a muito contarída; ela é um epílogo da Ilíada, essa narração que vem depois, assim como a narração histórica.

[12] É verdade que a Ilíada, que se encerra com os funerias de Heitor (desde o instante em que a restituição do cadáver torna possível o ritual), abre-se igualmente pela dimensão da lembrança. E Aquiles, ele-mesmo, tomado pelo pothos, declarou que sempre ele se lembraria de Heitor, mesmo no Hades (XXII, 387-90).

[13] Odisséia, 8, 75-82. Sobre esta querela, apenas aqui conhecida, e sobre sua relação com a Querela, a de Agamêmnon com Aquiles, veja-se G. Nagy, 1979, p. 42-58, 1993...

[14] Odisséia, 8, 492-498.

[15] Ibid. 8, 248-9.

[16] Ibid. 8, 580.

[17] Ibid. 8, 369.

[18] Ibid. 8, 83-95, 521-534.

[19] Ibid. 8, 542.

[20] Ibid. 1, 341-344: Sobre Penélope pesa um luto inesquecível (penthos alaston), tomada pela angústia da ausência (potheo), ela se lembra sempre (memnemene aiei) do herói cuja glória toma a Hélade e a Argólida. Sobre o pothos, os funerais e a epopéia, veja-se J.-P. Vernant, 1990, p. 41-50.

[21] Odisséia, 4, 93, 105-112.

[22] Ibid 4, 220-295.

[23] “J.-P. Vernant, 1990, p. 50.

[24] É bem terpsis que se espera do aedo e é para isto que se o faz vir de longe, Odisséia, 17, 385, 518-521. Sobre o esquecimento propiciado pelo canto épico, veja-se Hesíodo,Teogonia (98-103): “Um homem porta luto em seu coração...? Que um cantor, servo das Musas, celebre os altos feitos dos homens de outrora ou os deuses venturosos, habitantes do Olimpo: logo, ele esquece seus desgostos, de suas aflições ele não se lembra mais”.

[25] Odisséia, 11, 367-369: “Por ti as palavras são belas, mas em ti os pensamentos são nobres;/ tu nos contaste com tanta arte quanto um aedo/ os teus tristes infortúnios e os de todos os aqueus”.

[26] Odisséia, 11, 333-334.

[27] “H. Arendt, 1972, p. 63.

[28] Ödisséia, 8, 487-491 (trad. Ph. Jaccottet levemente modificada).

[29] Ilíada, 2, 484-487.

[30] C. Darbo-Peschanski, 1987, p. 84-88; F. Hartog, 1991, p. 271-282.

[31] Igualmente, para o episódio do cavalo de pau, o signo da verdade será a capacidade de Demódoco de cantar extensamente (katalegein) e em detalhe (kata moiran), com Ulisses então proclamando que ele deve seu canto ao favor de um deus (8, 496-499). Sobre kata kosmon, vejam-se as observações de G.B. Walsh, 1984, p. 8-9, que não sigo no seu todo.

[32] Odisséia, 8,84-92, 521-522.

[33] Ibid 8,581-586. Alcino fala de sua aflição (achos, 8,541), achos é também o que sente a esposa que acaba de ver seu marido morrer (8, 530), e é igualmente o que Menelau diz suportar (achos alaston, 4,108). Registro do luto e do pothos.

[34] Ïbid. 8,523-531.

[35] G. Nagy, 1993, p. 101, observa que a semelhança com Heitor é impressionante e que a situação, tal como resulta da comparação é surpreendentemente paralela à de Andrômaca ao final da Iliou Persis (conforme o sumário de Proclo). Veja-se também P. Pucci, 1987, p.222-223.

[36] P. Pucci, 1987, p.236-245.

[37] F. Hartog, “Des lieux et des hommes”, posfácio à Odisséia, tradução de Ph. Jaccottet, La Découverte, Paris, 1989, p.426-427.

[38] M. de Certeau, 1975, p.117-120.

[39] É além do mais imediatamente após esta experiência crucial que ele poderá encetar a narração de suas errâncias, começando pela proclamação e reivindicação de seu nome (9,11-20): “Eu sou Ulisses...”.

[40] Ödisséia, 1, 241-242.

[41] Ïbid. 11, 488-491.

[42] J.-P. Vernant, 1989, p. 145-146; ver também P. Pucci, 1979, p. 121-132; Ch. Segal 1983, p.38-43.

[43] Odisséia, 12,189-191.

[44] Ibid. 12,184, ver Ilíada, 9,673, Pucci, 1979, p. 126-128.

[45] Ch. Segal, 1983, p.43 salienta que as Sereias falam a linguagem do saber, mas que jamais a dimensão da lembrança e da memória caracterize seu canto.

[46] F. Hartog, 1991, p.III-VIII.

[47] Heródoto, I.1.

[48] Ibid. III,122: “Polícrates foi o primeiro dos gregos, a nosso conhecimento (ton hemois idmen), que ambicionou o império dos mares, - deixo de lado Minos de Cnossos e todos que antes dele, se os houve, reinaram sobre o mar,- o primeiro, digo, do tempo que se denomina o tempo dos homens”, ver P. Vidal-Naquet, p.81-83.

[49] F. Hartog, “Myth into logos: Cresus”case or the Historian at work”, em vias de publicação.

[50] Heródoto, I,5, (sublinhado meu, trad. Legrand um pouco modificada).

[51] Sobre esta operação, ou antes esta dupla operação expressa pelos verbos historein e semainein, veja-se, além de “Le vieil Hérodote” já citado, F. Hartog, artigo “Hérodote”, 1997, p. 702-708; ª Sauge, 1992, G. Nagy, 1990, p.250-273.

Fonte: http://www.fflch.usp.br/dh/heros/antigosmodernos/seculoxix