Liberdade
Durante a Revolução Francesa definiu-se melhor seu significado. Nasceu no singular, mas hoje preferimos falar em liberdades. Mudaram, portanto, os seus significados. Quais são os mais sedutores para os bisnetos da Revolução?
LIBERDADE
SALVATORE VECA
Na linguagem da Declaração do 26 de agosto de 1789, os homens nascem e permanecem livres e iguais nos direitos. A liberdade aparece na lista dos direitos naturais; a seu lado, propriedade, segurança, resistência à opressão. O homem nasce livre e em todo lugar está acorrentado, observara Jean-Jacques Rousseau, intérprete inquieto do "sentimento" moderno da política. A Declaração dos Direitos vem com o eco das teorias do contrato social e da epopéia da Independência das colônias norte-americanas e anuncia a promessa moderna da liberdade, como condição dos seres humanos em sociedade e como princípio que modela as instituições da vida coletiva.
A liberdade integra um núcleo de princípios de uma teoria da "cidadania" baseada nos valores da escolha individual. Concordo com Ralf Dahrendorf: a essência do projeto moderno é a idéia de instituições de liberdade, que possarn emancipar os súditos, transformando-os em cidadãos. Penso também como Jurgen Habermas: o projeto moderno não está acabado. Fica um problema preliminar: que significa literalmente "liberdade"? Liberdade é um termo vago, o que não vem a ser um fato tão estranho. Quase todos os termos importantes de nosso léxico político e moral possuem essa característica. O fato de serem vagos não os torna menos importantes para nós; no entanto, sugerem um pequeno exercício de definição e análise.
Definir os significados de "liberté" hoje em dia, 200 anos depois da Revolução Francesa e a 12 do fim do século que nos é contemporâneo, equivale a interrogar-se sobre as transformações do sentido da liberdade. O ponto é compreender que a liberdade, desde a origem, não indica algo homogêneo. A liberdade é um termo no singular, que vale como plural. A liberdade é essencialmente um catálogo: é a família, ou o sistema, das liberdades. A passagem do singular para o plural não é banal, mas carregada de efeitos significativos.
As transformações de sentido das liberdades estão relacionadas às tensões e aos conflitos entre as diferentes liberdades e ao valor que o sistema de liberdade pode ter para o cidadão e grupos diferentes dentro da mesma sociedade. Sugiro que as principais tradições dos juízos e crenças políticas geradas pelo "Projeto 1789", o liberalismo, o socialismo, a democracia, possam ser relidos como diferentes soluções dos conflitos e das tensões entre liberdade e seu valor para cidadãos e cidadãs.
Como sugeriu num magistral ensaio de 1958, Dois Conceitos de Liberdade, o filósofo Isaiah Berlin, há pelo menos uma primeira grande divisão entre as interpretações da liberdade, destinada a marcar as etapas das "liberdades que mudam". A primeira interpretação é aquela da liberdade "negativa", a liberdade dos modernos de Constant e J. S. Mill: ser livre quer dizer poder fazer ou ser aquilo que se escolhe sem interferências por parte de quem quer que seja, em primeiro lugar da autoridade política. Nossos direitos individuais a uma esfera de opções e escolhas definem nossa liberdade como não impedimento, como diz Norberto Bobbio. Eis a primeira interpretação, sobre a qual se coloca o acento da tradição liberal e sua mais recente retomada libertária.
Há tarnbém uma segunda interpretação que está no centro da tradição democrática: ela coincide com a idéia de liberdade como autonornia, como liberdade "positiva".
Aqui aparece o princípio de Rousseau.: a idéia de que, na qualidade de cidadãos, temos direito de participar e contribuir na escolha e nas decisões coletivas e, portanto, de participar e contribuir no exercício da autoridade que nos vincuia. É fácii perceber como nos dois casos opera uma teoria do valor da escolha individual. Diferentes são, porém, os campos em que ela se aplica.
Essa diversidade está na base da evidente tensão entre as duas liberdades: ela existiu para os modernos e continua a existir para nós, contemporâneos, traçando a linha divisória entre a área de nossa moralidade e de nossas escolhas privadas, e aquela da ética e das escolhas públicas.
As transformações das democracias pluralistas e os dilemas que temos à frente voltam a propor, sistematicamente, equilíbrios diferentes e recorrentes conflitos na movediça linha divisória. A liberdade "negativa" está próxima da idéia de nosso direito à diferença, à variedade das experiências de vida, A liberdade "positiva" está próxima da idéia de nossa maneira de sermos "iguais", da identidade na cidadania como membros da polis que compartilham um destino comum. O exercício dos dois tipos de liberdade e o dilema de suas combinações se baseiam, em todo caso, em um pressuposto: que cidadãos e cidadãs sejam pessoas emancipadas, capacitadas a escolhas autônomas.
Com isso, toca-se no problema do valor que as liberdades têm para cada um. A tradição soc1alista focalizou não somente a extensão dos direitos de cidadania, acentuando a incorporação de grandes massas de população excluídas, mas também sublinhou que o valor da liberdade pode ser solapado pelas desigualdades na capacidade de usar as liberdades. Aqui a liberdade já não se apresenta como "possibilidade" e campo de opções (na arena pública ou privada), mas como "capacidade". Somos efetivamente livres enquanto temos, como homens e mulheres, a capacidade fundamental de controlar as nossas vidas. Como é fácil ver, estamos estabelecendo a ligação com o segundo dos "imortais princípios": a igualdade. Liberdade negativa, liberdade positiva e liberdade como capacidade são peças do mosaico das liberdades. Elas fazem parte daquilo que Dahrendorf chamou o grande projeto dos últimos dois séculos a generalização da dignidade de cidadãos.
Acredito que uma prospectiva de valores políticos que se baseie sobre igual dignidade dos cidadãos tenha de levar a sério o pluralismo dos valores e, cm nosso caso, a variedade dos sentidos, dos usos c do valor da liberdade. Isso quer dizer ser consciente do fato de que a tensão e a colisão entre as liberdades, na contemporaneidade (e, esperamos, no futuro), não são acidentes de percurso ou efeitos perversos com respeito à "verdadeira" liberdade, mas se constituem em um elemento irrecorrível do projeto moderno. Conviver com o pluralismo c continuar pensando em uma sociedade melhor não são atividades incompatíveis, embora tornem a vida e a teoria um pouco mais complicadas.
Essa é, porém, a garantia de uma utopia política racional de fim de século, que respeite os seres humanos assim como são, com toda a complexidade de suas motivações e de suas aspirações, sem exigir homens e mulheres novos. As liberdades, de mais a mais, atingem as "nossas" vidas e não aquelas de nossos contestadores "transformados", graças à vara de condão dos filósofos políticos (relativamente inócuos) ou o que é pior, e certamente mais
sério, pelo exercício do domínio de elites despóticas e tirânicas, sejam das políticas, religiosas, econômicas, tecnológicas ou militares. A propósito, parece-me que, para os netos de 1789, ainda haja muito para ser feito.
Salvatore Veca, filósofo, professor da Universidade de Milão, autor de vários livros, prepara-se para lançar Una Filosofia Pubblica (Ed. Feltrinelli)
Durante a Revolução Francesa definiu-se melhor seu significado. Nasceu no singular, mas hoje preferimos falar em liberdades. Mudaram, portanto, os seus significados. Quais são os mais sedutores para os bisnetos da Revolução?
LIBERDADE
SALVATORE VECA
Na linguagem da Declaração do 26 de agosto de 1789, os homens nascem e permanecem livres e iguais nos direitos. A liberdade aparece na lista dos direitos naturais; a seu lado, propriedade, segurança, resistência à opressão. O homem nasce livre e em todo lugar está acorrentado, observara Jean-Jacques Rousseau, intérprete inquieto do "sentimento" moderno da política. A Declaração dos Direitos vem com o eco das teorias do contrato social e da epopéia da Independência das colônias norte-americanas e anuncia a promessa moderna da liberdade, como condição dos seres humanos em sociedade e como princípio que modela as instituições da vida coletiva.
A liberdade integra um núcleo de princípios de uma teoria da "cidadania" baseada nos valores da escolha individual. Concordo com Ralf Dahrendorf: a essência do projeto moderno é a idéia de instituições de liberdade, que possarn emancipar os súditos, transformando-os em cidadãos. Penso também como Jurgen Habermas: o projeto moderno não está acabado. Fica um problema preliminar: que significa literalmente "liberdade"? Liberdade é um termo vago, o que não vem a ser um fato tão estranho. Quase todos os termos importantes de nosso léxico político e moral possuem essa característica. O fato de serem vagos não os torna menos importantes para nós; no entanto, sugerem um pequeno exercício de definição e análise.
Definir os significados de "liberté" hoje em dia, 200 anos depois da Revolução Francesa e a 12 do fim do século que nos é contemporâneo, equivale a interrogar-se sobre as transformações do sentido da liberdade. O ponto é compreender que a liberdade, desde a origem, não indica algo homogêneo. A liberdade é um termo no singular, que vale como plural. A liberdade é essencialmente um catálogo: é a família, ou o sistema, das liberdades. A passagem do singular para o plural não é banal, mas carregada de efeitos significativos.
As transformações de sentido das liberdades estão relacionadas às tensões e aos conflitos entre as diferentes liberdades e ao valor que o sistema de liberdade pode ter para o cidadão e grupos diferentes dentro da mesma sociedade. Sugiro que as principais tradições dos juízos e crenças políticas geradas pelo "Projeto 1789", o liberalismo, o socialismo, a democracia, possam ser relidos como diferentes soluções dos conflitos e das tensões entre liberdade e seu valor para cidadãos e cidadãs.
Como sugeriu num magistral ensaio de 1958, Dois Conceitos de Liberdade, o filósofo Isaiah Berlin, há pelo menos uma primeira grande divisão entre as interpretações da liberdade, destinada a marcar as etapas das "liberdades que mudam". A primeira interpretação é aquela da liberdade "negativa", a liberdade dos modernos de Constant e J. S. Mill: ser livre quer dizer poder fazer ou ser aquilo que se escolhe sem interferências por parte de quem quer que seja, em primeiro lugar da autoridade política. Nossos direitos individuais a uma esfera de opções e escolhas definem nossa liberdade como não impedimento, como diz Norberto Bobbio. Eis a primeira interpretação, sobre a qual se coloca o acento da tradição liberal e sua mais recente retomada libertária.
Há tarnbém uma segunda interpretação que está no centro da tradição democrática: ela coincide com a idéia de liberdade como autonornia, como liberdade "positiva".
Aqui aparece o princípio de Rousseau.: a idéia de que, na qualidade de cidadãos, temos direito de participar e contribuir na escolha e nas decisões coletivas e, portanto, de participar e contribuir no exercício da autoridade que nos vincuia. É fácii perceber como nos dois casos opera uma teoria do valor da escolha individual. Diferentes são, porém, os campos em que ela se aplica.
Essa diversidade está na base da evidente tensão entre as duas liberdades: ela existiu para os modernos e continua a existir para nós, contemporâneos, traçando a linha divisória entre a área de nossa moralidade e de nossas escolhas privadas, e aquela da ética e das escolhas públicas.
As transformações das democracias pluralistas e os dilemas que temos à frente voltam a propor, sistematicamente, equilíbrios diferentes e recorrentes conflitos na movediça linha divisória. A liberdade "negativa" está próxima da idéia de nosso direito à diferença, à variedade das experiências de vida, A liberdade "positiva" está próxima da idéia de nossa maneira de sermos "iguais", da identidade na cidadania como membros da polis que compartilham um destino comum. O exercício dos dois tipos de liberdade e o dilema de suas combinações se baseiam, em todo caso, em um pressuposto: que cidadãos e cidadãs sejam pessoas emancipadas, capacitadas a escolhas autônomas.
Com isso, toca-se no problema do valor que as liberdades têm para cada um. A tradição soc1alista focalizou não somente a extensão dos direitos de cidadania, acentuando a incorporação de grandes massas de população excluídas, mas também sublinhou que o valor da liberdade pode ser solapado pelas desigualdades na capacidade de usar as liberdades. Aqui a liberdade já não se apresenta como "possibilidade" e campo de opções (na arena pública ou privada), mas como "capacidade". Somos efetivamente livres enquanto temos, como homens e mulheres, a capacidade fundamental de controlar as nossas vidas. Como é fácil ver, estamos estabelecendo a ligação com o segundo dos "imortais princípios": a igualdade. Liberdade negativa, liberdade positiva e liberdade como capacidade são peças do mosaico das liberdades. Elas fazem parte daquilo que Dahrendorf chamou o grande projeto dos últimos dois séculos a generalização da dignidade de cidadãos.
Acredito que uma prospectiva de valores políticos que se baseie sobre igual dignidade dos cidadãos tenha de levar a sério o pluralismo dos valores e, cm nosso caso, a variedade dos sentidos, dos usos c do valor da liberdade. Isso quer dizer ser consciente do fato de que a tensão e a colisão entre as liberdades, na contemporaneidade (e, esperamos, no futuro), não são acidentes de percurso ou efeitos perversos com respeito à "verdadeira" liberdade, mas se constituem em um elemento irrecorrível do projeto moderno. Conviver com o pluralismo c continuar pensando em uma sociedade melhor não são atividades incompatíveis, embora tornem a vida e a teoria um pouco mais complicadas.
Essa é, porém, a garantia de uma utopia política racional de fim de século, que respeite os seres humanos assim como são, com toda a complexidade de suas motivações e de suas aspirações, sem exigir homens e mulheres novos. As liberdades, de mais a mais, atingem as "nossas" vidas e não aquelas de nossos contestadores "transformados", graças à vara de condão dos filósofos políticos (relativamente inócuos) ou o que é pior, e certamente mais
sério, pelo exercício do domínio de elites despóticas e tirânicas, sejam das políticas, religiosas, econômicas, tecnológicas ou militares. A propósito, parece-me que, para os netos de 1789, ainda haja muito para ser feito.
Salvatore Veca, filósofo, professor da Universidade de Milão, autor de vários livros, prepara-se para lançar Una Filosofia Pubblica (Ed. Feltrinelli)