por Maria Celeste Consolin Dezotti |
| Nova Pinacoteca, Munique | | Para os homens do mundo greco-romano, as ondas gigantescas eram castigos enviados pelo deus dos mares | | A palavra tsunami se popularizou após o maremoto que assolou a Ásia em 2004 e voltou às manchetes dos jornais em 2011, depois da tragédia que se abateu sobre o Japão em março deste ano. O fenômeno que o termo nomeia, no entanto, é muito antigo. Há mais de 2 mil anos, textos de autores gregos como Tucídides e Heráclides do Ponto já descreviam ondas gigantescas que devastaram diferentes pontos do litoral da Grécia nos séculos V e IV a.C.
O país fica em cima de uma área de encontro de placas tectônicas. A maior parte de seu território está situada sobre a Placa do Mar Egeu, mas essa porção de terra é rodeada pelas placas Eurasiana, Africana e Anatólica. Por isso os terremotos já eram um elemento presente no cotidiano dos antigos gregos.
Para esse povo, os abalos sísmicos ocorriam quando o deus Poseidon remexia o fundo do mar com seu tridente. Por isso, a população do país não deixava de agradar o deus, sacrificando-lhe touros, dedicando-lhe festas e santuários e cunhando em moedas o seu rosto. De lá para cá a reação a esses fenômenos não mudou tanto assim. Se nos falta o politeísmo para atribuirmos aos deuses certas responsabilidades, sobra-nos imaginação para personificar a natureza como uma mãe severa, pronta a castigar filhos que lhe faltam com o devido respeito.
O mais antigo tsunami de que se tem notícia foi registrado pelo historiador grego Tucídides no Livro III de sua História da Guerra do Peloponeso. Segundo ele, no verão de 426 a.C., o exército espartano pôs-se em marcha para invadir Atenas. Ao chegar ao istmo de Corinto, porém, os guerreiros foram surpreendidos por terremotos que os fizeram desistir da campanha.
De acordo com Tucídides, ao mesmo tempo que a terra tremia naquela parte da Grécia, a costa leste do país era atingida por abalos seguidos de tsunamis que devastaram pontos do litoral do continente e da ilha de Eubeia. No parágrafo 89, o autor apresenta uma viva descrição do ocorrido: “E nesse período de terremotos contínuos, o mar em Oróbias, na Eubeia, recuou de onde então era praia e em seguida veio de volta em forma de volumosa onda, desabando sobre parte da cidade. Um tanto da água infiltrou-se no solo, mas outro tanto formou alagamento e agora é mar onde antes era terra. E dizimou quantos não conseguiram adiantar-se em correr para regiões elevadas. E na região de Atalanta, ilha situada junto ao litoral dos Lócrios Opúntios, ocorreu uma inundação bem parecida, que derrubou parte da fortaleza dos atenienses e destroçou um de dois barcos que estavam em seco. Também em Pepareto houve certo refluxo de ondas em elevação, mas não causou inundações; já o terremoto fez ruir parte da muralha, o pritaneu e outros edifícios, mas poucos”. De acordo com cálculos feitos por sismólogos modernos, os tremores atingiram 7,1 graus na escala Richter.
Todos os locais mencionados por Tucídides – o istmo de Corinto, Oróbias (atual Rovia), as ilhas Atalanta (atual Talandonisi) e Pepareto (atual Scópelos) – situam-se na borda norte da microplaca do mar Egeu, em condições geológicas muito parecidas com as do arquipélago japonês. O relato do autor grego descreve detalhes que se repetiram na recente catástrofe que atingiu o país asiático, como a formação de uma onda volumosa que adentra com força o litoral, destroçando tudo o que encontra pela frente.
A descrição de Tucídides deixa entrever também o desespero da população correndo em busca de regiões altas para escapar da morte. E, assim como no recente caso japonês, em 426 a.C. o número de mortos só não foi maior porque o cataclismo – permanece no grego moderno a palavra antiga kataklysmós com o sentido de “inundação” – aconteceu durante o dia.
Cinquenta e três anos mais tarde, porém, os moradores de Hélice não tiveram a mesma sorte. Localizada no litoral da região de Acaia, no golfo de Corinto, a cidade foi arrasada por um tsunami que a atingiu durante uma noite de inverno em 373 a.C. Detalhe: Hélice ficava a 2,5 km de distância da costa. Os sismólogos modernos calculam que o tremor que deu origem à onda gigante chegou a 8,0 graus na escala Richter.
A catástrofe foi tão aterradora que ficou gravada na memória do povo grego. Séculos depois, a tragédia ainda era mencionada por autores gregos do século I a.C., como Diodoro da Sicília e Estrabão, e continuou a ser lembrada até o século III da era cristã.
| (C) David Guttenfelder / AP Photo / Glow Images | | A cidade de Onagawa após a passagem do tsunami que destruiu parte do Japão em março. O relato de Trucídides revela detalhes que se repetiram no país asiático | | No Livro VIII de sua Geografia, Estrabão repete o relato do filósofo Heráclides do Ponto, discípulo de Platão e contemporâneo dessa tragédia: “Heráclides afirma que essa calamidade aconteceu em seu tempo, à noite. Embora a cidade estivesse a doze estádios de distância do mar, esse intervalo todo e também a cidade ficaram submersos”. É possível deduzir o número de vítimas de uma frase de Estrabão: “Dois mil homens enviados pelos aqueus não deram conta de resgatar os cadáveres”.
O fato de a onda gigantesca ter atingido a cidade durante a noite era o que mais estarrecia os antigos. Os comentários de Diodoro da Sicília, no Livro XV de sua História, são um exemplo disso: “A hora do fato ampliou a extensão do desastre, pois o terremoto não ocorreu durante o dia, o que possibilitaria aos homens em perigo se socorrerem mutuamente. Ao contrário, a calamidade ocorreu à noite! Enquanto as casas desmoronavam devido à intensidade do abalo e viravam escombros, as pessoas, dado o inesperado e o inusitado daquela situação crítica, não eram capazes de reagir e buscar salvação. Foi então que a grande maioria morreu, presa entre as ruínas das casas. E, ao raiar do dia, alguns que tentavam sair de suas casas, achando que estavam livres do perigo, deram de cara com um desastre maior e mais surpreendente: o mar, que se elevou demais, repuxou em forma de onda gigante e todos foram atingidos pela inundação, perecendo junto com os familiares”.
A tragédia marcou de tal forma a história do mundo helênico que, mais de 500 anos após o acontecimento, o geógrafo grego Pausânias ainda se referia a ela em sua Descrição da Grécia, espécie de guia turístico do século II d.C. No Livro VII, ele menciona o lugar onde outrora ficava Hélice e seu santuário do deus Poseidon, rememorando o cataclismo que os submergiu.
Os autores antigos, no entanto, não se contentaram em descrever as catástrofes. Eles buscaram também explicações para elas. Tucídides formulou uma teoria baseada nas ciências naturais. “A meu ver, a causa desse tipo de fenômeno é que o ponto onde o terremoto ocorre com mais intensidade faz o mar refluir e em seguida retornar abruptamente com mais violência, causando a inundação. E sem terremoto não me parece possível ocorrer esse tipo de coisa”, afirma ele, encerrando o relato do fenômeno. A inter-relação que Tucídides notou entre o terremoto e o tsunami e a tese de que a força da onda depende da intensidade do tremor são formulações válidas ainda hoje.
No Livro VIII de sua Geografia, Estrabão repete o relato do filósofo Heráclides do Ponto, discípulo de Platão e contemporâneo dessa tragédia: “Heráclides afirma que essa calamidade aconteceu em seu tempo, à noite. Embora a cidade estivesse a doze estádios de distância do mar, esse intervalo todo e também a cidade ficaram submersos”. É possível deduzir o número de vítimas de uma frase de Estrabão: “Dois mil homens enviados pelos aqueus não deram conta de resgatar os cadáveres”.
O fato de a onda gigantesca ter atingido a cidade durante a noite era o que mais estarrecia os antigos. Os comentários de Diodoro da Sicília, no Livro XV de sua História, são um exemplo disso: “A hora do fato ampliou a extensão do desastre, pois o terremoto não ocorreu durante o dia, o que possibilitaria aos homens em perigo se socorrerem mutuamente. Ao contrário, a calamidade ocorreu à noite! Enquanto as casas desmoronavam devido à intensidade do abalo e viravam escombros, as pessoas, dado o inesperado e o inusitado daquela situação crítica, não eram capazes de reagir e buscar salvação. Foi então que a grande maioria morreu, presa entre as ruínas das casas. E, ao raiar do dia, alguns que tentavam sair de suas casas, achando que estavam livres do perigo, deram de cara com um desastre maior e mais surpreendente: o mar, que se elevou demais, repuxou em forma de onda gigante e todos foram atingidos pela inundação, perecendo junto com os familiares”.
A tragédia marcou de tal forma a história do mundo helênico que, mais de 500 anos após o acontecimento, o geógrafo grego Pausânias ainda se referia a ela em sua Descrição da Grécia, espécie de guia turístico do século II d.C. No Livro VII, ele menciona o lugar onde outrora ficava Hélice e seu santuário do deus Poseidon, rememorando o cataclismo que os submergiu.
Os autores antigos, no entanto, não se contentaram em descrever as catástrofes. Eles buscaram também explicações para elas. Tucídides formulou uma teoria baseada nas ciências naturais. “A meu ver, a causa desse tipo de fenômeno é que o ponto onde o terremoto ocorre com mais intensidade faz o mar refluir e em seguida retornar abruptamente com mais violência, causando a inundação. E sem terremoto não me parece possível ocorrer esse tipo de coisa”, afirma ele, encerrando o relato do fenômeno. A inter-relação que Tucídides notou entre o terremoto e o tsunami e a tese de que a força da onda depende da intensidade do tremor são formulações válidas ainda hoje.
Erika Onodera | | Pontos do litoral grego atingidos por tsunamis: 1- Istimo de Corinto / 2- Atenas / 3- Lócrios Opúntios / 4- Oróbias, na ilha Eubeia / 5- Ilha Pepareto / 6- Hélice, no golfo de Corinto | |
Para provar sua tese, Eliano relata um fato extraordinário que teria prenunciado o cataclismo de Hélice: “Cinco dias antes da destruição de Hélice, ratos, doninhas, cobras, lacraias, besouros e animais de igual porte, quantos havia no lugar, puseram-se a fugir em massa pelo caminho que leva a Cerínea”.
Esse curioso fenômeno de percepção animal relatado por Eliano encontra paralelo no tsunami que atingiu a Ásia em 2004. Jornais e revistas da época noticiaram que os animais do Parque Nacional de Yala, no Sri Lanka, escaparam ilesos. Para os ambientalistas do parque, “os bichos devem ter detectado a proximidade das ondas e fugido para locais mais elevados”. Do mesmo modo, os animaizinhos de Hélice também fugiram em sentido contrário ao mar, rumo a Cerínea, cidade do interior.
Fonte: | |
|
|