O tráfico internacional de drogas cresceu espetacularmente durante os anos 80, até atingir, atualmente, uma cifra anual superior a US$ 500 bilhões. Esta cifra supera os proventos do comércio internacional de petróleo; o narcotráfico é o segundo item do comércio mundial, só sendo superado pelo tráfico de armamento. Estes são índices objetivos da decomposição das relações de produção imperantes: o mercado mundial, expressão mais elevada da produção capitalista, está dominado, primeiro, por um comércio da destruição e, segundo, por um tráfico declaradamente ilegal.
Na base do fenômeno encontra-se a explosão do consumo e a popularização da droga, especialmente nos países capitalistas desenvolvidos, que é outro sintoma da decomposição. O tráfico de drogas foi sempre um negócio capitalista, por ser organizado como uma empresa, estimulada pelo lucro. Na medida em que a sua mercadoria é a autodestruição da pessoa, o consumo expressa a desmoralização de setores inteiros da sociedade. Os setores mais afetados são precisamente os mais golpeados pela falta de perspectivas: a juventude condenada ao desemprego crônico e à falta de esperanças e, no outro exemplo, os filhos das classes abastadas que sentem a decomposição social e moral. O primeiro episódio de consumo massivo de drogas aconteceu durante a mais impopular das guerras protagonizada pela "sociedade opulenta": a Guerra do Vietnã. Durante o período dos conflitos, 40% dos soldados norte-americanos consumiam heroína e 80% maconha. Apenas 8% deles continuaram a consumir drogas uma vez de volta, "em casa".
Para se ter uma idéia da pressão que o narcotráfico exerce sobre as economias dos países atrasados, um exemplo basta. Em 28 de setembro de 1989, foi feita em Los Angeles a maior apreensão de cocaína já realizada: 21,4 toneladas, cujo preço de venda ao público atingiria US$ 6 bilhões, uma cifra superior ao PNB de 100 (cem) Estados soberanos. A grande transformação das economias monoprodutoras em narcoprodutoras (e o grande salto do consumo nos EUA e na Europa) se produziu durante os anos 80, quando os preços das matérias-primas despencaram no mercado mundial: açúcar (-64%), café (-30%), algodão (-32%), trigo (-17%). A crise econômica mundial exerceu uma pressão formidável em favor da narco-reciclagem das economias agrárias, o que redundou num aumento excepcional da oferta de narcóticos nos países industriais e no mundo todo. Apenas nos últimos anos, o tráfico mundial cresceu 400%. As apreensões de carregamentos se multiplicaram por noventa nos últimos quinze anos, ainda assim afetando apenas entre 10 e 20% do comércio mundial.
Histórico
O tráfico internacional de drogas, em alta escala, começou a desenvolver-se a partir de meados da década de 1970, tendo tido o seu boom na década de 1980. Esse desenvolvimento está estreitamente ligado à crise econômica mundial. O narcotráfico determina as economias dos países produtores de coca, cujos principais produtos de exportação têm sofrido sucessivas quedas em seus preços (ainda que a maior parte dos lucros não fique nesses países) e, ao mesmo tempo, favorece principalmente o sistema financeiro mundial. O dinheiro oriundo da droga corresponde à lógica do sistema financeiro, que é eminentemente especulativo. Este necessita, cada vez mais, de capital "livre" para girar, e o tráfico de drogas promove o "aparecimento mágico" desse capital que se acumula muito rápido e se move velozmente.
Atualmente, o narcotráfico é um dos negócios mais lucrativos do mundo. Sua rentabilidade se aproxima dos 3.000%. Os custos de produção somam 0,5% e os de transporte gastos com a distribuição (incluindo subornos) 3% em relação ao preço final de venda. De acordo com dados recentes, o quilo de cocaína custa US$ 2.000 na Colômbia, US$ 25.000 nos EUA e US$ 40.000 na Europa.
A América Latina participa do narcotráfico na qualidade de maior produtora mundial de cocaína, e um de seus países, a Colômbia, detém o controle da maior parte do tráfico internacional (a pequena parte restante é dividida entre a máfia siciliana e a Yakuza japonesa). A cocaína gera "dependência" não apenas em indivíduos, mas também em grupos econômicos e até mesmo nas economias de alguns países, como por exemplo nos bancos da Flórida, em algumas ilhas do Caribe ou nos principais países produtores — Peru, Bolívia e Colômbia, para citar apenas os casos de maior destaque. Com relação aos três últimos, os dados são impressionantes. Na Bolívia, os lucros com o narcotráfico chegam a US$ 1,5 bilhão contra US$ 2,5 bilhões das exportações legais. Na Colômbia, o narcotráfico gera de US$ 2 a 4 bilhões, enquanto as exportações oficiais geram US$ 5,25 bilhões. Nestes países, a corrupção é generalizada. Os narcotraficantes controlam o governo, as forças armadas, o corpo diplomático e até as unidades encarregadas do combate ao tráfico. Não há setor da sociedade que não tenha ligações com os traficantes e até mesmo a Igreja recebe contribuições destes.
No Peru e na Bolívia, parte da produção de coca é legal e destina-se ao consumo tradicional (mastigação das folhas para combater os efeitos da altitude), à indústria (chás e medicamentos) e à exportação (o Peru exporta 700 toneladas de folhas de coca por ano para a Coca-cola).
O Peru é o maior produtor mundial de coca. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 100 mil camponeses peruanos cultivam 300 mil hectares de coca. Apenas 5% dessa produção é utilizada para fins legais. Com o resto, o tráfico abastece 60% do mercado mundial. Esses camponeses são massacrados, alternadamente, pela guerrilha, pela máfia e pelas tropas de repressão ao tráfico.
Dependência econômica
Na Bolívia, a dependência em relação ao narcotráfico chega ao extremo. Os traficantes detêm o controle das principais empresas, a corrupção atinge níveis inacreditáveis e, de acordo com a CEPAL, a população desempregada passou de 19% da população ativa em 1985 para 35% no ano seguinte. De cada três bolivianos, um lucra com os derivados do narcotráfico. Há estimativas, que coincidem com os dados da CEPAL, segundo as quais 65% da economia do país pertencem ao setor informal.
A Colômbia especializou-se em transformar a pasta base produzida por Peru e Bolívia em cocaína e exportá-la para o resto do mundo. Dois grandes cartéis (Cali e Medellin) controlam a maior parte do narcotráfico no país. Entretanto, existem centenas de pequenos traficantes, muitos dos quais roubam a droga dos grandes cartéis. O país está, por completo, nas mãos dos narcotraficantes. O Congresso e a polícia nacionais disputam o primeiro lugar em grau de corrupção, a até mesmo as campanhas presidenciais são patrocinadas com dinheiro da droga. Cada novo governo colombiano se esforça para repatriar os lucros obtidos com o tráfico internacional de cocaína. Dos cerca de US$ 16 bilhões anuais obtidos pelos narcotraficantes, apenas entre US$ 2 e 4 bilhões voltam ao país.
A expansão desta atividade na América Latina significou a degradação de países inteiros ao simples papel de apêndice do narcotráfico. A coca já representa 75% do PIB boliviano, 23% de outras nações. Semelhantes porcentagens tornam ridícula a denominação "economia informal". Os grupos principais das burguesias nacionais realizaram sua reconversão pela "economia do crime", dominando os recursos dos Estados e monopolizando um acúmulo de riquezas que permitiu aos mafiosos colombianos situarem-se no ranking dos multimilionários do mundo. A transformação do mineiro boliviano em cultivador de coca e a substituição das melhores áreas agrícolas por cultivos do insumo básico da droga são determinantes do pavoroso estancamento da economia deste país, que alguns "experts" de Harvard elogiam cinicamente por sua "estabilidade monetária". Que a coca represente a única saída de sobrevivência para os peruanos desempregados das cidades ou migrantes da desertificação rural é outra evidência do mesmo processo de regressão econômica. Em meio aos assassinatos cotidianos, a Colômbia é uma vitrina por onde se vê o esbanjamento de um grupo de cartéis que, seguindo a tradição das oligarquias latino-americanas, gastam em importações suntuosas um volume de dinheiro que permitiria saldar a dívida externa deste país. Como ocorreu no passado com a borracha, o guano e o açúcar, a monoexportação de coca é mais um episódio da devastação agrária, do empobrecimento campesino e do desperdício da região.
A "narcoeconomia" não é um âmbito delituoso socialmente homogêneo como apresenta a destorcida propaganda da "polícia imperialista". O grosso dos camponeses e operários "pisadores" que se vêem forçados a cultivar e processar a coca não só mantêm sua condição de superexplorados, como sofrem a renovada pressão do aparato do Estado e dos cartéis, associados em "esquadrões da morte" e em bandos de pistoleiros do latifúndio. Os mesmos beneficiários do tráfico criaram o fantasma do "narcoterrorismo" e da narcoguerrilha" para encobrir sua ação criminal.
Mercado consumidor
Já foi largamente demonstrado que a oferta de coca latino-americana é simplesmente a resposta à demanda dos 40 milhões de consumidores das drogas legais. Se se soma a esta cifra os diversos tipos de psicofármacos aceitados, embora sejam igualmente danosos para a saúde, salta à vista que a "narcoeconomia" satisfaça um mercado incomensuravelmente maior que o alcoolismo e o tabagismo tradicional. A América Latina se degrada ao ver-se obrigada a integrar-se como abastecedora da importante população dos países desenvolvidos que recorre aos excitantes e calmantes artificiais para evadir-se da alienação laboral, da falta de horizontes sociais, ou da destrutiva competição hiperindividualista imposta pelo mercado. O consumo de drogas, que o capitalismo universalizou e massificou em cada época em grupos sociais e nacionais diferentes, esteve, na década de 1980, diretamente associado à extensão da marginalidade, da pobreza e da desocupação. O capitalismo só pôde oferecer crack, cocaína e heroína aos jovens que não emprega, aos emigrantes que expulsa, às minorias que discrimina ou aos trabalhadores que destrói.
Na América Latina só reingressa entre 2 e 4% dos US$ 100 bilhões que produzem anualmente as vendas de cocaína nos Estados Unidos. A parte mais lucrativa do negócio é incorporada pelos bancos lavadores e, em menor medida, pelos próprios cartéis que internacionalizaram a distribuição de seus lucros, seguindo o padrão de fuga de capitais que desenvolveram as burguesias latino-americanas na última década. O preço da coca na plantação boliviana é 250 vezes menor que nos EUA. A mesma mercadoria no porto colombiano é cotada 40 vezes menos que nas cidades norte-americanas. Esta impressionante diferença é uma manifestação típica do intercâmbio desigual que governa os preços de todas as matérias primas latino-americanas.
Combate americano
Para o principal país consumidor, os EUA, o narcotráfico é, à primeira vista, um grande problema. Bilhões de dólares têm sido gastos na guerra aos traficantes, e igual quantia tem sido perdida em conseqüência do vício dos cidadãos norte-americanos (gastos com reabilitação, perdas na produção, aumento da criminalidade etc.).
Por outro lado, o narcotráfico é de grande utilidade para os EUA, chegando a gerar lucros, pois com a venda dos componentes químicos das drogas, a economia americana recebe em torno de US$ 240 bilhões, uma parte dos quais é investida em diversos setores da economia ou vai para os bancos. Os bancos da Flórida são especializados em "lavar" o dinheiro dos narcotraficantes e neles circula mais dinheiro em efetivo do que nos bancos de todos os demais estados juntos.
Os EUA recorrem ao protecionismo para resguardar seus "narcoprodutores" da competição externa. Utiliza desfolhantes contra o cultivo de marijuana no México, para favorecer seu desenvolvimento na Califórnia; destrói laboratórios de drogas proibidas no Peru e na Bolívia para reforçar o envenenamento legalizado que realizam os monopólios farmacêuticos com estupefacientes substitutivos; luta contra as drogas naturais e processadas em defesa das sintéticas patenteadas e comercializadas pelos grandes laboratórios; guerreia contra os cultivadores latino-americanos auxiliando seus velhos sócios do sudeste asiático. A repressão extra-econômica ao tráfico é a forma de regular os preços de um mercado potencialmente estável pelo caráter viciante do produto. Com a "guerra ao narcotráfico", os EUA tratam de salvaguardar suas companhias químicas provedoras de insumos para o processamento, propiciando, em geral, uma "substituição de importações" no grande negócio de destruir a saúde e a integridade de uma parte da população.
A "narcoeconomia" está afetada pelos mesmos ciclos de superprodução que qualquer outro setor e, por isso, o imperialismo apela aos instrumentos clássicos de guerra comercial, buscando baratear a produção local e encarecer a competição latino-americana. É evidente que a militarização recente com o pretexto de "lutar contra o flagelo da droga" é um aspecto da recolonização comercial e da chantagem financeira sobre a América Latina. A nova leva de tropas da marinha enviada à região está muito mais relacionada com a Iniciativa das Américas e o plano Brady, do que com o narcotráfico. É inaceitável supor que a invasão do Panamá, o bloqueio naval à Colômbia, a instalação de bases na Bolívia e no Peru, a militarização da fronteira mexicana, a introdução de uma jurisprudência avassaladora da legislação latino-americana, estão motivadas pela erradicação do narcotráfico. Busca-se a substituição da "ameaça do comunismo" por um perigo equivalente.
O domínio do comércio de narcóticos foi, desde o século passado, um campo de rivalidades interimperialistas e, por isso, a atitude do governo estadunidense frente ao problema nunca se baseou em considerações sanitárias, mas nas alternantes necessidades políticas. Isto explica o oscilante predomínio de períodos de tolerância e repressão, permissividade e perseguição, e o tratamento do consumidor como delinqüente ou enfermo.
Na prática, os EUA aumentam sua intervenção na América Latina em defesa de um clã contra outro, ou para arbitrar as sangrentas lutas entre eles. A "narcoeconomia", longe de ser um submundo alheio à norma capitalista, está rigorosamente organizado de acordo com os parâmetros da "economia de mercado". Os objetivos das máfias — captura de mercados, monopólio de preços e domínio sobre os segmentos mais lucrativos — são metas tipicamente capitalistas. As economias "subterrâneas" e legalizadas mantêm infinitos vínculos entre si, e a existência de crise num setor se transmite ao outro.
Envolvimento dos bancos
O papel central da "narcoeconomia" no capitalismo contemporâneo se detecta no peso alcançado pela "lavagem do dinheiro" no sistema financeiro. Todos os bancos de envergadura, desde o Boston até o Credit Suisse, participam desta operação. Pelas somas envolvidas, a "lavagem" seria impossível sem a cumplicidade dos banqueiros que intermediam a legalização do dinheiro sujo e a sua conversão em ativos, empresas ou imóveis. Nos últimos anos, os bancos criaram paraísos fiscais nos quais se lava, diariamente e à vista de todos, entre US$ 160 e 400 milhões. Esta associação entre mafiosos e banqueiros se apoia, em última instância, no sigilo bancário — um princípio intocável para o capitalismo — por ser um pilar da propriedade privada, na confidencialidade dos negócios e na livre disponibilidade do capital.
As denúncias de lavagem, a campanha antidroga e as controvérsias sobre a legalização de certos narcóticos, expressam a enorme rivalidade interbancária que existe no negócio da lavagem, especialmente entre o tradicional centro suíço e seus competidores do Caribe, Panamá e Uruguai.
Os lucros produzidos pelo narcotráfico de maneira nenhuma enriquecem os países produtores. Nos EUA, calcula-se em 20 milhões o número de consumidores regulares de drogas, que em 1988 gastaram US$ 150 bilhões. Desse total, entre US$ 5 e US$ 10 bilhões foram os lucros dos cartéis produtores na Colômbia. Mas apenas US$ 1 bilhão foi investido na economia oficial do país. E o restante? Calcula-se que 90% dos lucros do narcotráfico sejam recebidos pelos grandes bancos, por depósitos dos produtores e dos intermediários, e por comissões pela "lavagem" do dinheiro. As medidas tomadas pelas autoridades dos EUA contra as operações bancárias de cumplicidade com os traficantes são risíveis: entre os bancos que sofreram sanções por não terem declarado transações figura o First National Bank of Boston, que expediu para o exterior US$ 1,2 bilhão em notas pequenas. A comissão de 3% paga pelos traficantes (US$ 36 milhões) torna irrisória a multa de US$ 500 mil imposta ao banco. O que se multa, no caso, é a ilegalidade da operação, não a origem criminosa do dinheiro protegido pelo sacrossanto "sigilo bancário".
Eis porque a política dos EUA, que ataca apenas os traficantes diretos, não consegue impedir o crescimento do narcotráfico e dos seus lucros. Ao reduzir parcialmente a oferta, deixando intocado o aparato financeiro, só se consegue "um aumento dos lucros, recapitalizando constantemente as redes de produção e distribuição, a ampliação geográfica da produção e a fixação de um piso mínimo para a cocaína". A repressão da oferta só conseguiu elevar o preço da cocaína pura nos EUA, e pôr em circulação um produto superdegradado para consumo "popular": o mortal crack.
O capital financeiro internacional fica com a parte do leão, o que não impede que os grandes produtores se tornem um fator decisivo na economia de seus países. Na Colômbia, as exportações de cocaína atingem US$ 50 bilhões, três vezes o PNB. Calcula-se que os narcoempresários investem em torno de 45% em propriedades urbanas e rurais, 20% em gado, 15% em comércio e 10% na construção e no lazer. Mas sua atuação é também política. Em 1989, por exemplo, foram reveladas muitas negociações entre representantes do governo e o Cartel de Medelín. A semilegalidade concedida aos narcotraficantes, a sua aliança com a burguesia e o governo, visam os objetivos mais reacionários: os narcotraficantes colombianos aliaram-se aos fazendeiros e às forças de segurança de modo a proteger seus interesses comuns contra os grupos guerrilheiros e contra as crescentes demandas de reforma política e econômica dos setores mais carentes. O resultado desta aliança foi a complementação da ação da polícia com a dos "esquadrões da morte" que, em número de 140, submetem a uma verdadeira tutela terrorista a vida política e social do país.
Na Colômbia, os traficantes estão entrelaçados com a oligarquia tradicional, mediante a compra de terras ou a substituição das culturas agrícolas, o que deu uma saída aos proprietários arruinados pela baixa do preço internacional do café. A desintegração do capitalismo colombiano, golpeado pela crise mundial, faz os traficantes florescerem.
Na Bolívia, a reciclagem narcótica da economia foi diretamente impulsionada pelo Estado militar imposto a partir do final de 1971. O velho narcotráfico boliviano, marginal até então, desenvolveu-se graças a dois novos fatores: generosos créditos da banca estatal e privada (milhões de dólares), subsídios e impunidade pela sua ligação com os organismos de repressão ou pelo apadrinhamento oficial. Em 1976, Kissinger viajou secretamente à Bolívia, oferecendo créditos de US$ 45 milhões para impedir o progresso da cultura de coca. Mas os lucros do tráfico falaram mais alto: os "narcos" chegaram a tomar o poder através do general Garcia Meza.
Guerra do ópio
O comércio de drogas esteve vinculado à expansão internacional do capitalismo e também à sua expansão colonial-militar, como testemunha a Guerra do Ópio (1840-60), resultante da postura da Inglaterra como promotora do tráfico de ópio na China do século XIX, bem como das plantações deste mesmo narcótico em território indiano. A Inglaterra, como é sabido, mas pouco divulgado, auferia lucros exorbitantes da ordem de R$ 11 milhões com o tráfico de ópio para a cidade chinesa de Lintim. Ao passo que o volume de comércio de outros produtos não ultrapassava a cifra de R$ 6 milhões. Em Cantão, o comércio estrangeiro oficial não chegava a US$ 7 milhões, mas o comércio paralelo em Lintim atingia a quantia de US$ 17 milhões. Com este comércio ilegal, empresas inglesas, como foi o caso da Jardine & Matheson, contribuíram para proporcionar uma balança comercial superavitária para a Inglaterra, mesmo que, para tal, fosse necessário o uso de navios armados a fim de manter o contrabando litorâneo. Tudo isso acontecia com a aprovação declarada, e documentalmente registrada, do parlamento inglês, que por inúmeras vezes manifestou os inconvenientes da interrupção de um negócio tão rentável.
A extraordinária difusão do consumo do ópio na Inglaterra do século XIX, ilustrada literariamente na popular figura do detetive cocainômano Sherlock Holmes, foi um sintoma da crise do colonialismo inglês. Nas palavras de Karl Marx (O capital), a idiotice opiácea de boa parte da população inglesa era uma vingança da Índia contra o colonizador inglês. Foi o que levou a própria Inglaterra a promover, em 1909, uma conferência internacional, em Shangai, com a participação de treze países (a Opium Commission). O resultado foi a Convenção Internacional do Ópio, assinada em Haia em 1912, visando ao controle da produção de drogas narcóticas. Em 1914, os EUA adotaram o Harrison Narcotic Act, proibindo o uso da cocaína e heroína fora de controle médico. Severas penas contra o consumo foram adotadas em convenções internacionais das décadas de 1920 e 1930. Desde o início, a repressão privilegiou o consumidor.
Com a nova explosão de consumo, uma nova mudança se opera, e, em abril de 1986, o presidente Reagan assina uma Diretiva de Segurança Nacional, definindo o narcotráfico como "ameaça para a segurança nacional", autorizando as forças armadas dos EUA a participarem da "guerra contra as drogas". Em 1989, o presidente Bush, numa nova diretiva, ampliou a anterior, com "novas regras de participação" que autorizavam as forças especiais a "acompanhar as forças locais de países hospedeiros no patrulhamento antinarcóticos". No mesmo ano, cursos "para combater guerrilheiros e narcotraficantes" tiveram início na Escola das Américas de Fort Benning, antigamente sediada no Panamá, vestibular de todos os ditadores latino-americanos.
Articulação americana
O aspecto mais importante, e menos comentado, da articulação EUA/governos constitucionais latino-americanos versus tráfico de drogas, é a criação de uma inédita jurisprudência avassaladora da soberania nacional da América Latina. O tratado de extradição com a Colômbia se enquadra nessa categoria, assim como a decisão de fevereiro de 1990, da Suprema Corte dos EUA (perseguição e captura de estrangeiros pelas forças dos EUA, dentro e fora do país, não estão sujeitas à Quarta Emenda da Constituição dos EUA) que abriu as portas a intervenções ilimitadas, como a da polícia antidroga dos EUA (DEA), seqüestrando o presumido traficante Alvarez Machain, no México, ou o Exército capturando Noriega, no Panamá. Os EUA estabeleceram unilateralmente nada menos do que a sua superioridade jurídica perante os países latino-americanos e do mundo inteiro.
Que esta jurisprudência nada mais é do que a ante-sala da intervenção militar direta, fica provado pelos exemplos anteriormente citados e também pela crescente militarização da fronteira dos EUA com o México. A droga é o pretexto para esse objetivo. Se os EUA tivessem vontade política de combater o narcotráfico poderiam exercer um severo controle das exportações de produtos químicos para fabricação da PBC (Pasta de Base da Cocaína), que provém da Shell e da Móbil Oil, como constatou a própria DEA (The Miami Herald, edição de 8 de fevereiro de 1990); agir contra os bancos norte-americanos que lavam os narcodólares; e estender um cordão de radares e barcos para impedir a entrada da droga, em vez de fazer isso nos países da América do Sul. Ou, como se perguntam dois "experts" norte-americanos: por que não se faz a guerra também contra os países produtores de ópio e heroína, que consomem nos EUA 50% dos gastos totais em drogas? Por que não fazê-la contra os produtores californianos de maconha, que depois de substituir a Colômbia no primeiro lugar do fornecimento dessa droga, colocaram os EUA entre os três primeiros produtores mundiais? Estatísticas oficiais mostram que a produção de maconha nos EUA dobrou nos últimos dois anos, expandindo-se 38% só em 1988.
O enfoque apontado também prevalece nos documentos oficiais dos EUA no que diz respeito aos problemas internos: a lei dos EUA tem que ser reforçada, reduzindo os benefícios para os traficantes e aumentando os riscos para os consumidores. Os EUA podem criar um modelo tanto para a redução da demanda quanto para o reforço do sistema Judicial. Mas o enfoque baseado na repressão do consumo e da oferta é inútil por definição. Os países latino-americanos produziram entre 162 mil e 211,4 mil toneladas de cocaína em 1987. Isto é cinco vezes o necessário para abastecer o mercado dos EUA, e só conseguiu apreender entre 10 e 15% da cocaína enviada. Esse enfoque serve apenas para reforçar o controle da população pelo Estado, e para manipulações com objetivos políticos reacionários, cujo alcance a remoção do prefeito negro de Washington, Marion Barry, só fez antecipar.
Estamos, portanto, diante de uma vasta operação política que visa, sob pretexto de repressão ao tráfico de drogas, acabar com a independência nacional dos países atrasados e reforçar a direitização do Estado capitalista nos EUA.
Incapaz de cortar a "oferta", o que exigiria atacar a fundo o direito de propriedade (sigilo bancário), o capitalismo em decomposição é mais impotente ainda para enfrentar a demanda, já que é absolutamente incapaz de abrir uma via progressiva para o desenvolvimento social.
O fim da droga é insolúvel diante do capitalismo.
Fonte: Osvaldo Coggiola - Departamento de História da USP