Evidências arqueológicas reforçam a teoria, baseada em estudos de DNA, de que o Homo sapiens surgiu no leste da África há quase 200 mil anos e migrou para os outros continentes.
De alguns milhares a 6 bilhões Recentes descobertas arqueológicas confirmam estudos genéticos segundo os quais toda a nossa raça se origina de um pequeno grupo de humanos que viviam há 80 mil anos no leste da África. Com idade entre 33 mil e 39 mil anos, o crânio Hofmeyr (à esquerda), da África do Sul, é muito parecido com o de seus contemporâneos europeus. |
As modernas análises por DNA já confirmaram: todos nós descendemos de alguns milhares de africanos – entre 2 mil e 6 mil, provavelmente – que viveram há 80 mil anos e partiram de seu lar na África Oriental numa única onda migratória, terminando por povoar todos os outros continentes. Segundo esses estudos, a migração foi rápida – nossos antepassados chegaram à Ásia 60 mil anos atrás, e a Europa foi ocupada há 40 mil anos. Mas, para diversos especialistas, esses dados ainda não eram convincentes. Eles alegavam falhas na datação e nas premissas que originaram os estudos. Sua exigência era simples: evidências arqueológicas que endossassem as descobertas feitas via DNA.
Com o tempo, essas evidências estão surgindo – algumas novas, outras antes esquecidas e agora revisitadas. E o painel que estão compondo revela uma extraordinária aventura: a de uma raça – o Homo sapiens – que, de repente, saiu de sua terra-mãe para conquistar um planeta.
O primeiro indício arqueológico a confirmar a tese dos estudos de DNA foi a pesquisa realizada em 1992 por Paul Mellars, professor da Universidade de Cambridge e uma das maiores autoridades do mundo em rotas de migração utilizadas pelo homem primitivo, a partir de um ovo de avestruz de cerca de 35 mil anos encontrado na Índia. As gravações inscritas na casca do ovo eram muito semelhantes às de uma peça ocre de aproximadamente 75 mil anos de idade descoberta na África do Sul, a dez mil quilômetros de distância. A semelhança de outros objetos da mesma época encontrados na Índia e no Sri Lanka – pontas de flechas, pás de pedra primitivas e pequenas contas feitas de carapaça de avestruz – com os produzidos por africanos 40 mil anos antes reforçaram a idéia de Mellars de que havia ligação entre as duas populações.
DURANTE UM BOM tempo essa linha de pesquisa não foi aprofundada, talvez porque a tese de Mellars tenha sido divulgada apenas em publicações arqueológicas indianas, cuja importância era desconsiderada no Ocidente. Quinze anos depois, porém, surgiram novidades a partir da pesquisa feita por uma equipe internacional liderada pelo paleontólogo Alan Morris, da Universidade da Cidade do Cabo, a respeito do crânio Hofmeyr.
Considerado antes uma relíquia sem grande valor, esse crânio humano havia sido encontrado em 1952 perto da cidade sul-africana de Hofmeyr, durante as obras para a construção de uma represa. Como nenhuma matéria orgânica restara na peça, ela não havia sido submetida a uma datação por carbono-14 – e, assim, tornara- se uma simples curiosidade no escritório de Morris, onde ser via como peso para papéis.
Um antigo colega de Morris, Frederick Grine, da Universidade Estadual de Nova York, mudou esse estado de coisas. Grine sugeriu a Morris que se fizesse a datação dos grãos de areia alojados na cavidade que havia abrigado o cérebro, e a idéia deu certo: especialistas atribuíram à relíquia uma idade entre 33 mil e 39 mil anos. Isso colocava o crânio dentro de um período – entre 75 mil e 20 mil anos atrás – que originou o menor número de descobertas de restos humanos na África, enquanto homens anatomicamente modernos despontavam na Ásia e na Europa.
Expansão rápida A disseminação do Homo sapiens pela Terra se deu a partir de uma única onda migratória, que em apenas 10 mil anos levou a raça até a Austrália. Depois, a migração avançou para o norte. | ||
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O passo seguinte foi dado pela paleoantropóloga Katerina Harvati, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária em Leipzig, na Alemanha. Ela submeteu o crânio a medições tridimensionais a fim de compará- lo com amostras de ossos modernos europeus, asiáticos e bosquímanos sul-africanos, além de crânios de humanos da Idade da Pedra e do homem de Neandertal. Resultado: o crânio de Hofmeyr era muito parecido com os dos primeiros humanos modernos europeus, os mais distantes em termos geográficos.
Essa semelhança indica que, há uns 35 mil anos, os humanos modernos sul-africanos e europeus partilhavam um ancestral comum muito recente, provavelmente membro de um povo da África Oriental que migrara entre 50 mil e 60 mil anos atrás.
As semelhanças nas gravações da pedra sul-africana (esquerda), feitas há 75 mil anos, e as da casca de ovo indiana (direita), de 35 mil anos atrás, indicam que os responsáveis por elas tinham as mesmas origens. |
Uma das rotas desses viajantes levou ao sul, mas outra seguiu na direção nordeste, envolvendo inclusive uma travessia de mar – no Estreito de Bab-al-Mandeb, que separa o Iêmen, no sul da Península Arábica, de Djibuti, no nordeste da África. Depois da travessia, os migrantes seguiram a linha do litoral, chegando à Índia e rumando depois para a Indonésia e a Austrália, onde chegaram há cerca de 50 mil anos. Essa teoria é reforçada por esqueletos com idade entre 45 mil e 50 mil anos encontrados no sul da Austrália e na ilha de Bornéu.
O estímulo para a criatividade Quem tinha mais chances de sobreviver nessas condições diferenciadas? Aqueles com maior capacidade cerebral, que podiam criar novas idéias, ferramentas, armas, invenções e artes. Esse estímulo forçado à criatividade dado pela natureza foi um fatorchave na ascensão do Homo sapiens a rei da Terra. |
Durante a última Era do Gelo, os antigos europeus tiveram tempo e recursos para desenvolver suas habilidades artísticas, como demonstram as pinturas rupestres encontradas em cavernas do continente. |
CURIOSAMENTE, NOSSOS antepassados não aproveitaram o vale do rio Nilo para chegar à costa do Mediterrâneo. Em vez disso, conforme estudos de DNA publicados em 2007 na revista Science, eles a atingiram entre 40 mil e 50 mil anos atrás, após passar pela Península Arábica, pelo Oriente Médio (onde parte deles seguiu rumo norte, dividindo-se entre a Europa Oriental e a China) e a partir daí na direção oeste, chegando à Europa pela atual Turquia e ao litoral norte da África através da Península do Sinai.
Todas essas rotas migratórias colocaram nossos antepassados em contato com as mais diversas condições ambientais – diferenças geográficas, climáticas, de fauna e de flora, por exemplo – e, em particular, com outras espécies humanas, estabelecidas naquelas regiões havia milhares de anos. Eles superaram todos os obstáculos e adaptaram-se a esses ecossistemas variados.
Descobertas recentes na Rússia e na Ucrânia, por exemplo, mostram que o Homo sapiens foi mais capaz de enfrentar climas rigorosos do que o homem de Neandertal. Os pesquisadores encontraram ali o mais antigo sinal de arte decorativa – um rosto semi-acabado gravado na presa de marfim de um mamute, datado em 45 mil anos. Os vestígios do homem de Neandertal na área vão até 115 mil anos atrás, com o início da Era do Gelo; depois disso, esse povo partiu para o sul e nunca mais voltou. Resistindo ao clima severo daquelas terras, o Homo sapiens já mostrava que vinha para ficar.
A pergunta que surge daí é inevitável: o que tornou nossos ancestrais aptos a – de repente, em termos arqueológicos – espalhar-se pelos continentes e conquistar o planeta? Só para relembrar, o crânio mais antigo de um Homo sapiens, encontrado em Omo (Etiópia), tem cerca de 195 mil anos de idade. O que, depois de uns 115 mil anos, lhes permitiu tomar a África e, em seguida, o mundo?
É bem provável que uma grande mudança tenha ocorrido então. Diversos pesquisadores falam de uma “explosão de criatividade”, um aumento na capacidade de processamento cerebral suficiente para permitir ao Homo sapiens a criação da primeira linguagem complexa, de novas estruturas sociais, de maneiras mais eficientes de produzir ferramentas, de padrões diferentes de arte – enfim, dos elementos que compõem uma cultura mais avançada. Arqueólogos também falam de indícios de que objetos eram transportados por longas distâncias, o que leva à suspeita de que já havia alguma forma rudimentar de economia, na qual itens como adornos, alimentos e ferramentas eram trocados.
Outro fator indicativo de que alguma coisa extraordinária aconteceu no cérebro do Homo sapiens foi a descoberta de esqueletos de homens anatomicamente modernos nas cavernas de Skhul e Qafzeh, em Israel, datados entre 90 mil e 100 mil anos. Nos dois locais foram encontrados itens com ocre e adornos, uma evidência de que ali se faziam ritos funerários com oferendas para os mortos. Tais características de uma consciência mais elevada, porém, não foram suficientes para fazer esses ancestrais se fixarem ali de vez: os restos de homens de Neandertal encontrados em camadas do solo mais antigas e mais recentes mostram que aquela passagem do Homo sapiens pelo Oriente Próximo foi efêmera.
A migração seguinte, entretanto, já não abriu mais espaços para os rivais. Em alguns milhares de anos, os homens de Neandertal – que ocuparam a Europa por pelo menos 300 mil anos – foram totalmente substituídos por nossos ancestrais. Em todos os outros lugares onde houve competição, a superioridade cerebral do Homo sapiens prevaleceu. O passo seguinte, e inevitável, veio na medida da ambição da raça: o próprio planeta.
A história segundo o DNA A genética ofereceu um novo caminho para se estudar a história humana: o DNA, ou, mais precisamente, o cromossomo masculino (o “Y”), e a mitocôndria, a parte da célula que responde pela produção de energia. Como ambos não sofrem a mistura de genes do pai e da mãe durante a fecundação, as mutações que apresentam servem como verdadeiros “códigos de identificação” dos diversos povos. Ao migrar para outro ambiente, um povo passa a acumular em seu código genético mutações diferentes daquelas pessoas que permaneceram no mesmo local. Depois de alguns milhares de anos, os migrantes dão origem a novas populações. Os geneticistas concluíram que a humanidade nasceu na África porque em nenhum outro continente há tanta diversidade genética. Já os europeus são os caçulas: têm “apenas” 40 mil anos de idade, ante 80 mil dos africanos e 50 mil dos asiáticos. |
Fonte: Revista Planeta