Os índios na Europa não eram exatamente uma novidade no século XIX. Era corriqueiro os indígenas serem carregados à força para o Velho Continente em prol da ciência, ou pela bizarrice. Às vezes por ambos. Os silvícolas podiam ser estudados pelos homens mais sábios da época, ou considerados assim, que mediam seus cérebros e tentavam encontrar o elo perdido entre o homem e o macaco. Em seguida, eles eram exibidos em circos de horrores, junto de anões e pessoas disformes para que uma plateia assustada os visse. [ao lado, Kuêk e o príncipe] [imagens: Biblioteca Brasiliana da Roberto Bosch GmbH Fonte: Chegam ao Brasil restos mortais do borum Kuêk, que morreu na Alemanha, mas nasceu no Vale do Jequitinhonha, no início do XIX. Crânio estava em posse de um museu na Europa Alice Melo e Ronaldo Pelli
O borum Kuêk, ou Quäck, [ao lado] foi um caso especial. Ele se tornou amigo de um príncipe alemão chamado Maximiliano zu Wied-Neuwied, e, em 1816, partiu de vontade própria para a Alemanha, onde ajudou o nobre na criação de um dicionário da língua falada por sua etnia, também conhecidos como botocudos. Foi retratado em diversos quadros, que hoje são exibidos no castelo de Neuwied, aprendeu a falar alemão fluentemente, segundo o etnógrafo Câmara Cascudo, e não fugiu ao destino de outros personagens exóticos, virando uma cobaia.
“De fato, teria sido um objeto interessante para os cientistas que costumavam se contentar com os crânios e esqueletos remetidos por viajantes. Sabe-se que o príncipe mantinha uma relação muito próxima com Kuêk e que ficou muito abalado com a morte deste, o que ocasionou uma nova viagem, agora para a América do Norte”, conta o professor da Unicamp John Manuel Monteiro, especialista em história indígena.
Agora, 177 anos após sua morte, uma nova demonstração de sua trajetória incomum. Kuêk voltará à região onde sua tribo viveu e ainda vive: o vale do Jequitinhonha. Por conta das celebrações dos 200 anos da cidade de Jequitinhonha, a prefeitura decidiu recorrer ao Museu de Anatomia da Universidade Friedrich-Wihelms, de Bonn, na Alemanha, que guardava o crânio do índio para repatriá-lo. Na ocasião, o município organiza o Encontro Indígena nos dias 13, 14 e 15 de maio, com representantes da região, autoridades alemãs e índios de diversas tribos, como Aranã, Maxakali, Mucuriñ, Pankararu, Pataxó e Krenak.
“O retorno de um índio Borum ou Botocudo é dramático porque a história desta região é marcada pela violência premeditada contra os índios, bem como pela objetificação desses mesmos índios pela ciência”, opina o professor Monteiro. “A volta dos restos deste índio representa um momento de reconciliação com um passado de muitos conflitos e de injustiças cometidas contra os povos indígenas, permitindo uma reflexão sobre o lugar dos índios no passado de Minas Gerais, do Brasil e das Américas de maneira mais ampla.”
A violência citada pelo professor Monteiro também é lembrada pela professora Geralda Soares. Chamada de pioneira na historiografia dos Borum de Minas Gerais por Monteiro, e uma das palestrantes no evento de Jequitinhonha, ela lembra que houve uma guerra em 1808, quando a corte portuguesa veio para o Brasil, nos rios Doce e Jequitinhonha, contra os povos indígenas. Foram criadas divisões militares na beira dos rios que tinham poder de vida, violência e morte, na população regional.
“As pessoas indicavam aldeias dos botocudos para serem devastadas”, conta ela. “Os borum eram perseguidos porque essa região, pouco antes da chegada de D. João VI, era uma região tampão. O rei proibiu que se abrissem estradas para impedir a chegada de outros povos na área das Minas. Era uma região fechada. O único meio de acesso era o rio Jequitinhonha ou a estrada real para os minérios, que era muito policiada. Havia um controle absoluto sobre a produção de minérios.”
Os borum eram um povo guerreiro, que atacavam quem entrasse em seu território. “Por causa da resistência, fizeram a guerra justa. Porque não tinham leis, não tinham rei nem religião. Para a cultura etnocêntrica da época, era inimaginável os índios não aceitarem o domínio do rei”, conta a professora.
A volta das relíquias de Kuêk, assim como aconteceu recentemente com o repatriamento dos ossos de três inconfidentes, proporciona uma oportunidade para “colocar em causa os sentidos da história”, argumenta o professor Monteiro, “não como um simples acerto de contas com as injustiças do passado mas antes uma matéria de reflexão sobre quem fomos, quem somos e quem seremos à luz desses conhecimentos”, diz ele. No que é completado pela professora Geralda Soares: “Temos que aprender a valorizar a nossa história, nossos marcos. Sejam inconfidentes, figuras da cultura negra, indígenas.”
Sobre o que será feito do crânio de Kuêk pelos descendentes de seu povo ainda não se sabe. Soares tem um palpite: pensa que podem transformá-lo novamente em um objeto de exposição, mas dessa vez em um futuro museu dos Krenak. Não há nada certo, mas, por que não?