14.12.09

Os cinco séculos de Henrique VIII


Há 500 anos subia ao trono britânico o polêmico monarca que rompeu com a Igreja Ccatólica, fundou o anglicanismo, consolidou a era Tudor, e mandou decapitar duas de suas seis esposas

Por Rodrigo Gallo


Alguns homens realmente nasceram para liderar seu povo à glória e impor revoluções à sua época, seja pelas conquistas militares ou pela forma brilhante de administrar suas terras. Porém poucos compraram uma briga tão grande quanto Henrique VIII (1491-1547), o segundo rei inglês da dinastia Tudor, que simplesmente rompeu as relações entre o Estado e a Igreja Católica e fundou o anglicanismo, sua própria religião.

E nada mais foi igual no Reino Unido, nem no cristianismo. Polêmico por ter se casado seis vezes, Henrique VIII nasceu na cidade de Greenwich em 28 de junho de 1491 e assumiu o trono em abril de 1509, sendo oficialmente coroado em junho do mesmo ano. Assim, já se passaram cinco séculos desde o início de seu curioso reinado, rico em histórias de conspiração e traições conjugais. E sua maior contribuição para a História, sem dúvidas, foi a nova religião. Henrique VIII sucedeu seu pai, Henrique VII (1457-1509), que governou o país durante um período muito conturbado da história, de 1485 até sua morte, marcado por inúmeros problemas internos.

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O século XIV não foi muito bom para a Inglaterra. O país não tinha muita importância para a geopolítica européia e, por isso, era uma ilha isolada do restante do continente, cujo principal expoente era a França. Assim, o Reino Unido era uma nação praticamente sem muita relevância para as principais discussões políticas, que se concentravam ao redor de Roma, da Península Ibérica e dos franceses.

A virada de mesa começou a se esboçar durante o governo de Henrique VI (1421-1471), que nem era um monarca tão poderoso. Sua fraqueza levou a inúmeras disputas pela coroa inglesa entre sua casa real, a dos Lancaster (simbolizada pela rosa vermelha) e a dos York (representada pela rosa branca). Essas duas dinastias guerrearam durante 30 anos pelo poder na chamada Guerra das Duas Rosas. Politicamente instável ou não, o importante é que esse período abriu precedentes para a ascensão da Inglaterra nas décadas seguintes.

Bosworth Field: Aas disputas terminaram em 1485, quando Henrique desembarcou na Iinglaterra com 5 mil homens e marchou para depor o rei. Oos dois se encontraram nesta batalha

Com a morte de Henrique VI e, posteriormente, de Eduardo IV (1442-1483), da família Lancaster, um menino de 12 anos foi coroado rei, sendo assassinado pouco depois pelo tio, que usurpou o trono. Portanto, as brigas sucessórias continuaram por mais um tempo.

Esse impasse só terminaria mais tarde, com a aparição do conde de Richmond (1430-1456), um bastardo da dinastia Lancaster. Henrique Tudor, pai de Henrique VIII, acabou sendo proclamado príncipe legítimo pelo Parlamento e foi casado com Elizabeth de York (1466-1503), filha de Eduardo IV, para dar forças às suas pretensões.

Naquele período, era comum que os matrimônios fossem arranjados de acordo com os interesses políticos. Mesmo assim a tarefa do novo rei não seria fácil. Antes de consolidar o poder, deveria combater e derrotar Ricardo III, um grande opositor para a desejada paz e estabilidade.

Depois de muitos conflitos, o Tudor venceu o adversário na famosa batalha de Bosworth Field. Em 1485, o jovem general desembarcou na Inglaterra com um exército de cinco mil homens, marchando imediatamente contra Ricardo, que possuía cerca de dez mil soldados. No entanto, Henrique saiu vitorioso do combate, após horas de conflitos, e o adversário foi morto.

A vitória dos Tudor

O desfecho da batalha de Bosworth Field levou ao fim as disputas dinásticas iniciadas na Guerra das Duas Rosas e inaugurou oficialmente a gloriosa era Tudor. A rosa branca foi incorporada à vermelha, unindo os Lancaster e os York, formando um novo símbolo, a rosa dos Tudor. Entretanto a situação ainda não era das mais favoráveis e o novo rei deveria buscar formas de impedir mais problemas sucessórios.

Para manter o poder estável e evitar o enfraquecimento do trono (que poderia levar a uma nova guerra dinástica), decidiu tomar medidas cada vez mais rígidas para garantir a hegemonia. Com isso, controlou o país de forma enérgica, manteve o caixa do Estado em ordem, cortou gastos públicos desnecessários e criou uma reserva de capital para usar em situações de emergência. Por tudo isso, ganhou a fama de ser avarento.

Além disso, Henrique VII também se afastou dos senhores feudais, já em decadência, e aproximou- se da burguesia crescente, que certamente seria uma classe social importante para manter a harmonia no solo inglês e dar estabilidade política e econômica ao país.

Mas, novamente, o problema da sucessão voltou a incomodar os ingleses, já que muitos discutiam a legitimidade de Arthur, herdeiro de Henrique VII, que era filho de um Lancaster e de uma York, ou seja, de dinastias rivais. Mesmo assim, o garoto foi criado para ser rei e teve de se casar com Catarina de Aragão (1485-1536), herdeira da coroa espanhola, em 1501. Além de unir os dois países em uma aliança política, esse matrimônio também previa ajuda no campo militar, pois o poder de Luís XII crescia na França e isso preocupava o restante da Europa.

Porém ocorreu um grande problema na casa Tudor. Cerca de cinco meses depois do casamento, Arthur morreu provavelmente de tuberculose, ainda sem deixar herdeiros. Além dele, outros dois garotos da família real já haviam morrido na infância, aumentando os temores. E o único filho homem ainda vivo era o futuro rei Henrique.

Henrique VIII em cena

Com isso, em 1502, o jovem herdou os títulos e a esposa do irmão, que se tornou sua noiva. "Pelo direito canônico, ela não poderia se casar com o cunhado, mas foi uma concessão autorizada por Roma para não romper as alianças entre Inglaterra e Espanha firmadas por aquele matrimônio de Arthur", explica o teólogo Lauri Emílio Wirth, professor da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR). Henrique VII morreu em 21 de abril de 1509 e sua morte foi mantida em sigilo até o dia 23, quando o último dos herdeiros, Henrique VIII,foi proclamado sucessor ao trono.

Essa foi uma forma encontrada para evitar que o falecimento do monarca desse tempo para os adversários prepararem um levante contra os Tudor. E esse ardil deu certo, pois nenhuma rebelião ocorreu. Entretanto alguns conselheiros reais não acreditavam que um jovem com pouca experiência militar e política pudesse dar conta de uma nação tão conturbada. Ainda mais que o pai tinha conseguido manter o país em ordem.

O receio era de que todas as importantes conquistas de Henrique VII fossem perdidas durante a gestão de Henrique VIII. Em 11 de junho de 1509 o garoto, então com 18 anos, casou-se com Catarina de Aragão, conforme o pai havia pedido. Em 24 de junho, o casal foi coroado oficialmente na abadia de Westminster, em Londres, em meio a comemorações e bailes que duraram dias. Era o início das mudanças mais importantes para a história da Inglaterra até então.

As mulheres de Henrique VIII

Henrique viii teve seis esposas e quase todas tiveram um destino trágico. Segundo a historiadora e biógrafa inglesa antonia Fraser, autora de As Seis Mulheres de Henrique VIII (Editora record), Catarina de aragão, ana Bolena, Jane Seymour, ana de Cleves, Catarina Howard e Catarina Parr ficaram conhecidas na história como, respectivamente, a divorciada, a decapitada, a morta, a segunda divorciada, a segunda decapitada e a sobrevivente. Seis mulheres e igual número de destinos tristes.

Todas tiveram casamentos arranjados com o monarca Tudor e não conseguiram encontrar felicidade ao lado do rei anglicano. Essa era a sina de viver ao lado do chefe de Estado mais polêmico da inglaterra. No livro, antonia Fraser também relaciona as esposas do Tudor a outros apelidos não menos pejorativos, que eram ditos nos corredores da corte, na época: Catarina de aragão era a esposa traída, pois fora trocada pelo monarca; ana Bolena era a tentadora, pois levou Henrique viii a se desfazer da esposa anterior; Jane Seymour era a boa mulher, jovem, linda e atraente; ana de Cleves era a irmã feia, pois tinha cicatrizes de varíola no rosto e, dizem, nunca deixou de ser virgem (suas núpcias com o rei nunca se consumaram); Catarina Howard era a moça má, pois traiu o monarca inglês com inúmeros homens, até que foi executada; por fim, Catarina Parr ficou conhecida como mãe, pois esteve ao lado do marido até sua morte. a pesquisadora ressalta que as mulheres de Henrique viii tinham uma personalidade forte, mas que tombaram vítimas da obsessão do rei por um herdeiro homem, algo muito importante para os monarcas da época. mesmo sem encontrar a felicidade e a paz, as seis esposas do Tudor entraram para a História junto com o marido em um dos períodos mais marcantes para a inglaterra.

A cisão com o Vaticano

Fluente em francês e latim, além de conhecedor de italiano e grego, o brilhante Henrique VIII passou a se interessar cada vez mais por Teologia. Foi, inclusive, condecorado pelo papa Leão X após ter escrito um livro atacando Martinho Lutero, autor de inúmeros conceitos reformistas. Esse é mais um ponto irônico na história do jovem Tudor, já que, pouco depois, ele mesmo romperia definitivamente as relações entre o Estado e o Vaticano.

A questão é que surgiu a necessidade de se divorciar de Catarina de Aragão e encontrar uma nova esposa. E, novamente, tudo tinha relação com os velhos problemas de sucessão. O casal não conseguia ter um filho homem que sobrevivesse ao primeiro ano de vida, impedindo a transição natural da coroa.

A rainha, seis anos mais velha, já não era tão jovem e isso preocupava o monarca. Em 1520 começou a circular na corte inglesa a desconfiança de que ela, já na casa dos 40 anos, nunca teria um varão para suceder Henrique VIII. Em 1526, no entanto, o Tudor se apaixonou pela jovem Ana Bolena (1501-1536), uma ex-dama da rainha Cláudia de Valois da França.

Depois desse período na Europa central, ela regressou à Inglaterra e tornou-se funcionária da equipe de Catarina de Aragão (Ana Bolena não tinha descendência nobre). Anos mais tarde, por causa dessa paixão, viria a cisão com Roma. Henrique VIII tentou se divorciar de Catarina para se casar com Ana e ter filhos.

O papa Clemente VII, no entanto, não autorizou a separação, pois ia contra as leis do catolicismo. Mesmo sem a autorização papal, o Tudor passou a viver com Ana Bolena na corte e, no início da década de 1530, abandonou Catarina para viver definitivamente com a nova mulher, irritando cada vez mais o Vaticano.

Ana ficou grávida pouco tempo depois, mas o herdeiro seria ilegítimo, pois eles não eram oficialmente um casal. Eles se casaram em segredo em janeiro de 1533, mesmo com ele ainda tendo ligações com Catarina, e oficializaram o matrimônio em maio, quando o Parlamento inglês aprovou leis que invalidavam a união com Catarina. Esse aval dos parlamentares abriu espaço para Ana Bolena assumir de vez o seu lugar na corte.

Em julho do mesmo ano, porém, a fúria de Roma caiu sobre a casa Tudor e sobre o trono inglês. Clemente VII declarou esse matrimônio absurdo, excomungou o rei e exigiu o banimento de Ana Bolena da Inglaterra. Eram medidas duras que exigiram do monarca uma resposta enérgica. Brigas à parte, a criança nasceu, mas ainda não seria o tão sonhado herdeiro do trono. Ana Bolena deu à luz uma menina, Elizabeth. Mais uma vez, Henrique VIII não conseguia ter um filho homem. Muitos diziam que a blasfêmia do divórcio o condenara a não ter um sucessor. No entanto, os processos que corriam no Parlamento chegaram ao fim e o rei conseguiu finalmente o que queria: foi nomeado chefe supremo da nova igreja da Inglaterra, fundando o anglicanismo.

A na Bolena foi executada na Torre de Londres, local de execuções ordenadas pelo rei

A igreja Anglicana

Segundo o historiador inglês Gwilym Dodd, da Universidade de Nottingham, a principal diferença entre o reino de Henrique VIII e de seus antecessores é que, antes, a Inglaterra estava sujeita à autoridade e à influência do papado: o pontífice efetivamente era o "cabeça" do Estado. Depois, porém, o poder eclesiástico mudou de mãos, passando exclusivamente para o monarca Tudor. "Era o papado que determinava a estrutura teológica da religião na Inglaterra, como as interpretações da Bíblia, por exemplo.

Igualmente, significou que os bispos e arcebispos ingleses fossem indicados após a aprovação do próprio papa", explica o historiador, em entrevista exclusiva à Leituras da Hhistória. "Também durante toda a Idade Média, havia um número constante de clérigos que viajavam da Inglaterra para Roma, para levar alguma dispensa especial do papa. Isso acabou", afirma.

Depois das reformas do segundo monarca Tudor, no entanto, a igreja da Inglaterra quebrou as amarras com o papado e tornou-se independente, autônoma e comandada de forma separada de Roma. Henrique VIII se tornou efetivamente o líder da Igreja Anglicana, passando a dominar não apenas os assuntos de Estado, mas também os religiosos, o que permitiu que se casasse seis vezes com a bênção divina, algo completamente contrário aos preceitos do catolicismo. Contudo, Dodd afirma que algumas coisas pareciam imutáveis na estrutura religiosa, apesar da liberdade de casamentos e do fim dos vínculos com Roma.

Ou seja, as mudanças promovidas por Henrique não alteraram tudo, mas sim apenas algumas questões bastante pontuais. "O interessante é que, apesar das mudanças parecerem monumentais na superfície, em muitas áreas eram diferenças muito pequenas entre a igreja inglesa antes de Henrique VIII e a anglicana. Poucas mudanças do fundamento foram feitas: a maneira em que a adoração religiosa foi praticada sob Henrique VIII era a mesma.

As pessoas que iam às missas no período anglicano provavelmente olhariam e sentiriam muitas similaridades às missas das épocas católicas", diz. O Tudor não tinha problemas com os dogmas cristãos, mas sim com a onipresença dos papas e de sua influência política em toda a Europa. Ele queria, na verdade, tirar o poder de decisão das mãos do clero e concentrar em si mesmo. Segundo o teólogo Alderi Souza de Matos, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em História da Igreja, Henrique VIII rompeu com o poder do papa, mas não com a fé católica. Isso indica que não foi uma cisão puramente religiosa, mas sim política.

"Ele permaneceu firmemente católico até o fim de sua vida. No reinado de Henrique VIII, a Igreja da Inglaterra continuou a ser católica em tudo, exceto no que se refere à aceitação da autoridade do papa", explica ele, que é doutor pela Universidade de Teologia de Boston, nos Estados Unidos. As missas, por exemplo, continuaram a ser realizadas praticamente da mesma forma estabelecida por Roma. "Os dogmas e rituais católicos continuaram em vigor. O divórcio continuou proibido: no caso de Henrique, o que houve foi a anulação do casamento.

Foi somente após a morte de Henrique VIII que a Igreja Anglicana se tornou de fato protestante", diz Matos. Se era para mudar apenas um ponto, ou seja, a anulação de seu casamento com Catarina de Aragão, sua primeira esposa, por que o monarca tomou uma decisão tão brusca ao romper com o poder clerical de Roma? A resposta para essa questão é simples, segundo o teólogo Lauri Emílio Wirth: tudo também tinha relação com as questões econômicas. O Tudor queria deixar de pagar impostos a Roma, algo caro para os cofres da Inglaterra e para os demais países de orientação católica.

E a única forma de não recolher mais o tributo ao Vaticano era abandonar os vínculos com o catolicismo romano. Wirth explica que a questão é muito mais ampla do que aparenta e possui detalhes que poucos conhecem. O problema é que, por causa das inúmeras guerras civis, o Estado inglês tinha dívidas demais, e boa parte dos tributos recolhidos era encaminhada para Roma, mantendo os problemas financeiros. Mesmo superando os problemas iniciados na Guerra das Duas Rosas, a Inglaterra ainda tinha dificuldades internas, todas relacionadas à sucessão e às dívidas.

"O rompimento das relações entre Inglaterra e Roma trouxe um impacto econômico à corte inglesa, que passou a economizar com o não pagamento desses impostos", afirma Wirth. Além disso, havia ainda a questão da autoridade política. "A ruptura religiosa expressa um problema mais amplo, pois separou definitivamente a política da religião. É, portanto, uma ruptura política, pois ele tinha mais de 40 anos e não tinha filhos, o que comprometia a sucessão dinástica", esclarece o teólogo, doutor pela Universidade de Heidelberg, da Alemanha.

"Os dogmas e rituais católicos continuaram em vigor. O divórcio continuou proibido: no caso de Henrique, o que houve foi a anulação do casamento."
Alderi Souza de Mmatos

A questão é que a igreja anglicana é muito semelhante à católica apostólica romana, só que nacionalizada, ou seja, cujo centro não fica em Roma, mas sim na própria Inglaterra. "Durante o reinado de Henrique VIII há a nacionalização da igreja. O próprio rei tornou-se o chefe da religião", observa o teólogo. Essas mudanças, entretanto, não durariam para sempre. Henrique VIII morreu em 28 de janeiro de 1547, aos 55 anos, amparado pela sexta mulher, o que deu um novo rumo à História da Inglaterra.

Maria Tudor, tempos depois, "recatolizou" o Reino Unido e passou a perseguir os anglicanos. Esses religiosos tiveram que fugir da ilha para outros países, para evitar torturas e mortes terríveis. Os capturados foram condenados à morte, aumentando o temor por parte dos seguidores do antigo rei inglês. Esse retorno aos dogmas de Roma durou poucos anos, de 1553 a 1558. Depois, Elizabeth I retomou os hábitos protestantes.

Para saber

FRASER, Antonia. As seis mulheres de Henrique VIII. Editora Rrecord, 2009.

Na Internet: O site oficial www.tudorhistory.org traz informações sobre todos os monarcas da dinastia Tudor, cronologia detalhada dos acontecimentos, dados sobre arquitetura e mapas.

Fonte: portal Ciência & Vida