14.12.09

Viagem na memória: o inferno de Auschwitz.






Em meados de 1944, em plena Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o jovem combatente da Resistência francesa Charles Gottlieb, então com 18 anos, foi detido e colocado em um trem rumo a um destino desconhecido. Ao desembarcar em seu paradeiro final, se viu diante de um portal que dava acesso a uma enorme área cercada de arame farpado, vigiada por guardas armados e povoada de farrapos humanos, a maioria vestida com uniformes listrados. A primeira frase que ouviu ressoa até hoje em sua memória: "Aqui você entra por esse portão e sai por aquela chaminé", disse seu interlocutor, apontando para a fumaça que saía ao longe do topo de uma torre de tijolos. Quem lhe deu as boas-vindas foi um dos prisioneiros do campo de Auschwitz-Birkenau, na Polônia. A fumaça a que se referia provinha de um dos fornos crematórios do complexo, um dos instrumentos da "solução final", o meticuloso plano de extermínio dos judeus arquitetado pelos nazistas.

O macabro campo hoje é uma extensa área deserta de ruidoso silêncio. Uma grama verde substitui o lodaçal de outrora. Das câmeras de gás, onde os detentos eram asfixiados pelo vapores do Zyklon B em uma morte lenta de até 20 minutos, pensando que se dirigiam para uma ducha, restam ruínas. Foi o último ato de destruição dos carrascos do Reich ao abandonarem o campo, para tentar esconder do mundo a sua barbárie. Passados mais de 60 anos, os visitantes de Auschwitz - 1,2 milhão só no ano passado -, ao retornarem por algumas horas a esse doloroso passado, são capazes de vislumbrar a tragédia no campo como se estivessem em um filme de terror. Mas, longe de ser uma ficção, Auschwitz é um real e infeliz capítulo da história da humanidade.

O sobrevivente Charles Gottlieb, hoje com 83 anos, é uma prova. Desde que um assistente do cineasta Steven Spielberg desembarcou em Nice, onde vive atualmente, para recolher seu depoimento para as pesquisas do filme A Lista de Schindler, decidiu usar o sofrimento do passado para alertar as consciências futuras. Estimulado também pelo crescimento na França das teses negacionistas em relação ao Holocausto, desde 2003 participa das "Viagens da Memória", excursões pedagógicas organizadas pelo Conselho Regional dos Alpes-Marítimos francês, em que centenas de alunos de escolas da região visitam o campo localizado nas cercanias de Cracóvia - 70 quilômetros a oeste. Só entre o último dezembro e março deste ano, estão previstas oito viagens, cada uma levando cerca de 150 adolescentes com idade em torno de 14 anos. Em dezembro passado, acompanhei uma dessas viagens ao passado do horror nazista, que neste 2009 voltará a ser lembrado pela data dos 120 anos do nascimento de Adolf Hitler (no 20 de abril de 1889, em Braunau am Inn, cidade austríaca a 60 quilômetros ao norte de Salzburg).

O jovem resistente Charles foi detido pela milícia francesa durante uma manifestação na praça Bellecour, no centro de Lyon, em julho de 1944. Interrogado por oficiais da Gestapo, sob as ordens do temível Klaus Barbie - conhecido como "o carniceiro de Lyon" por suas crueldades cometidas na luta contra a Resistência francesa e na perseguição aos judeus - foi torturado e em seguida deportado em um comboio para Auschwitz.

Seu testemunho pessoal, acrescido das informações dos guias locais, emociona os jovens estudantes, atentos ao seu relato. Ao desembarcar em Auschwitz, em agosto de 1944, Charles escapou da severa triagem da chegada, em que todos aqueles considerados inaptos para o trabalho eram enviados diretamente para as câmeras de gás, os pertences armazenados no bloco apelidado pelos prisioneiros de "Canadá", que para eles significava abundância e riqueza. Ele conta do onipresente e indigesto odor de carne queimada no campo. Arregaça a manga da camisa e mostra o número B9664 tatuado no braço, sua inscrição na chegada. Detalha o menu de magras rações diárias: um café "que era mais uma água suja" pela manhã, um sopa ao meio-dia e um pedaço de pão com um naco de gordura à noite. O escritor italiano Primo Levi (1919-1987), célebre sobrevivente de Auschwitz por seu livro "Se questo è un uomo" (Se isto é um homem - 1947), revelou ter lido um relatório nazista em que havia o cálculo de uma ração mínima de 1.600 calorias/dia para que um prisioneiro sobrevivesse de dois a três meses nas condições precárias do campo. "Era uma morte lenta por desnutrição", disse Levi em uma entrevista televisiva, em 1982. Charles Gottlieb acrescenta: "A única vez em que tivemos um sopa dupla foi quando Himmler (Heinrich Himmler, comandante das tropas especiais nazistas, as SS) visitou o campo com a Cruz Vermelha internacional".

A chamada dos detentos pela manhã, por volta das 4h, 4h30min, podia se estender por muitas horas de espera em pé, em temperaturas que chegavam a -20°C, até que a contagem de todos os nomes listados fosse completada. A demora era devida a ausência de muitos prisioneiros, mortos ou combalidos. O tempo mais longo de uma chamada de que se tem notícia em Auschwitz é de 19 horas. "Era terrível permanecer horas em pé no frio, vendo outros presos caírem e morrerem ali mesmo ao seu lado", conta.

No campo, não havia nenhuma amizade ou solidariedade entre os detentos, relembra Charles: "Era cada um por si. O que contava era permanecer vivo. Eu não tinha medo de morrer, me proibia de pensar nisso. Aqueles que perdiam o moral não duravam mais de uma semana. Mesmo um pai poderia roubar a comida do filho. Jamais vi uma cena de compaixão no campo. Aquilo nos transformou em verdadeiros animais, em bestas. Eu não tenho ódio dos alemães, mas ódio dos nazistas. Era algo inimaginável, uma vida no inferno". No caminho para o seu alojamento da época, o Bloco 14A, ele mostra o chão por onde hoje caminham os visitantes do campo: "Aqui mesmo, sob nossos pés, vi prisioneiros serem enterrados vivos".

Os detentos rumavam para o trabalho forçado ao som de uma orquestra, e Charles se lembra ainda das mulheres judias do "bordel" dos nazistas, no primeiro andar do bloco contíguo ao seu, que abanavam para os prisioneiros pela manhã. "Depois de 10 ou 15 dias, elas eram executadas e substituídas por outras", conta. Duas a três vezes por semana, no meio da madrugada, diz ele, os alemães fazerem uma inspeção nos dormitórios para "controle de pulgas". "Era tudo invenção para exterminar mais pessoas. Eles escolhiam alguns que diziam estar infectados, colocavam na parte traseira do caminhão, fechada, com o cano da descarga inserido no interior. Os prisioneiros morriam no caminho e os corpos era desovados diretamente nos fornos para incineração".

Muitos prisioneiros não suportavam o sofrimento diário e preferiam a morte imediata ao, em plena luz do dia e ao olhar de todos, simular uma fuga na tentativa de escalar as cercas do campo. "Tratava-se claramente de um gesto suicida, pois sabiam que seriam abatidos pelas certeiras balas dos numerosos e atentos guardas de vigia", diz.

Manon, uma das colegiais francesas do grupo, caminha perplexa pelo campo: "É impressionante, não esperava que fosse tão grande. Antes de vir, não achava que fosse sentir algo. É difícil acreditar que tudo isso possa ter existido e acontecido". Sua colega Marilou acrescenta: "Aqui sentimos algo diferente do que vemos nos livros ou na sala de aula".

No início de janeiro de 1945, com a aproximação do exército russo, os nazistas evacuaram o campo de concentração de Auschwitz, levando junto boa parte dos prisioneiros, no que ficou conhecido como as "marchas da morte". Milhares de prisioneiros morreram de fome e frio no caminho a outros campos ainda em atividade. Charles relembra que comia neve e urinava em suas próprias mãos para se esquentar. Levado para Mauthausen e depois Ebensee, foi mais tarde finalmente libertado pelas forças americanas.

Quando desembarcou em Auschwitz, Charles Gottlieb era um robusto jovem de quase 80 quilos. Seis meses depois, não passava de uma delgada silhueta de escassos 38 quilos. O período em que passou sem dentes no campo, hoje relembra com um humor negro: "Para a comida que nos serviam no campo não era preciso dentes". Os americanos ofereceram rações de carne em lata à vontade aos recém-libertados e ele diz que mais uma vez se salvou, pois muitos morreram por problemas de saúde provocados pela ânsia de saciar sua fome. "Um terço dos que foram recuperados comigo morreram por problemas decorrentes dessa comilança, visto o delicado estado de saúde em que nos encontrávamos".

Charles e sua futura mulher, Estelle, estavam juntos em Auschwitz, mas só foram se conhecer mais tarde, ao se inscreverem em um mesmo dia de 1946, após o final da guerra, na Federação Nacional dos Deportados e Internos Resistentes e Patriotas. Em 1948, por causa da crise econômica na época, foi obrigado a comprar farinha no mercado negro para fazer o pão para a modesta festa de casamento.

Entre 1,1 milhão e 1,5 milhão de pessoas deportadas para Auschwitz morreram no campo. Na França, na época, os pais de Charles ignoravam o paradeiro do filho e tampouco sabiam se estava vivo. O sobrevivente do inferno de Auschwitz recorda: "Nem eu mesmo sabia se estava vivo".

Holocausto Cigano


Crianças ciganas vítimas de experiências médicas em Auschwitz - Museu de Auschwitz - Polônia

Quando se ouve falar em campos de concentração nazistas, pensa-se logo em judeus sendo martirizados, em Auschwiss, Dachau e outros campos. Mas houve outras vítimas. E, dentre elas, os ciganos.

Desde 1933, a imprensa nazista começou a acentuar que os ciganos e os judeus eram raças estrangeiras, inferiores, e que teriam contaminado a Europa como um corpo estranho. Valendo-se de uma desconfiança histórica em relação aos ciganos, foi possivel justificar um conjunto de medidas duras contra esse povo, inclusive uma política de extermínio.

O primeiro grito de alarme oficial para o mundo cigano se fez ouvir a 17 de outubro de 1939, quando Heydrich (1), proibiu-os de abandonar seus acampamentos e iniciou sua transferência para a Polônia. A maioria dos transferidos acabou no campo de Dachau, enquadrada como "elementos associais".

Em novembro de 1941 ecoou na Europa o slogan: "Depois dos judeus, os ciganos!" e, em 24 de dezembro de 1941, uma ordem reservada a todas as SS, afirmava que os ciganos eram duplamente perigosos, tanto pelas doenças de que são portadores como pela sua deficiência mental. A ordem concluia que os ciganos deveriam ser tratados com o mesmo rigor aplicado aos judeus.

Em um boletim policial, datado de 25 de agosto de 1942, lê-se, entre outras coisas relativas aos ciganos, que " é pois indispensável exterminar esse bando integralmente, sem hesitar."

Mas desde 1941, quando se criaram os Einsatzgruppen (pelotões de execução), as deportações e extermínio de ciganos já estavam sendo praticadas. Em outubro de 1941, chegaram a Lodz (Polônia), 5 mil ciganos, entre os quais mais de 2.600 crianças. Foram todos internados por grupos de famílias. Os testemunhos nos dizem que as janelas das barracas estavam quebradas, enquanto o inverno era extremamente duro. No campo não havia medidas higiênicas, nem assistência médica. Duas semanas depois de sua chegada, irrompeu uma epidemia de tifo, que matou mais de 6oo adultos e crianças. Entre março e abril de 1942, os sobreviventes foram deportados para Chelmo, e ali assassinados nas câmaras de gás.

Desde então, até 1945, multiplicam-se os testemunhos: massacres coletivos, mortes individuais, tortura de todo o tipo, experimentos químicos e médicos dos mais cruéis. E todas essas crueldades ocorriam nos diversos campos de concentração: Auschwitz, Birkenau, Mauthausen, Rabensbruch, Buchenwald, Chelmo, Lodz, Dachau, Lackenbach e Sachsenhausen.

Para Auschwitz foram enviados ciganos de toda a parte, até soldados alemães em licença da frente militar, alguns deles condecorados por bravura em combate, cujo único delito era terem "sangue cigano" nas veias.

Particularmente impressionantes são os depoimento sobre a transferência de crianças do campo de Buchenwald para o de Auschwitz. Eram crianças ciganas da Boêmia, dos Cárpatos, da Croácia, do Nordeste da França, da Polônia meridional e da Rutênia.

Bárbara Richter, menina cigana, assim depõe:
"Até os prisioneiros mais afeitos a esses horrores sentiram enorme tristeza quando perceberam que os SS iam tirar um por um os pequenos judeus e ciganos, reunindo-os em um só rebanho. Os meninos choravam e gritavam, tentavam freneticamente voltar para os braços dos pais ou dos protetores que tinham encontrado entre os prisioneiros, mas envolvidos por um círculo de fuzis e metralhadoras, foram levados para fora do campo e enviado para Auschwitz, onde morreriam nas câmaras de gás."

Devido aos maus tratos e péssimas condições sanitárias, "a pele das crianças se enchia de feridas infecciosas. Elas sofriam de estomatite cancrenosa... parecia lepra...seus corpinhos iam se desfazendo, bocas espantosas se abriam nas faces, e lá dentro se podia observar a lenta putrefação da carne viva."

Só em Auschwitz, os ciganos regularmente matriculados foram 20.933, incluindo 360 crianças nascidas no campo de concentração, e que viveram o bastante para receberem número de matrícula. A estes se devem somar mais de 1.700 ciganos mandados para a câmara de gás, assim que chegaram, em março de 1943, e que nem tinham recebido ainda o número de matrícula. Em um único dia (29 de maio de 1943), 102 ciganos foram arrastados para fora de suas instalações e levados para a câmara de gás.

Esses testemunhos narram também a matança de quatro mil ciganos, no começo de agosto de 1944:
"A sirena anunciou um princípio de um rigoroso toque de recolher. Os caminhões chegaram por volta das 20 h. Os ciganos tinham previsto o que estava para acontecer, mas os alemães fizeram de tudo para confundir as idéias: ao saírem dos acampamentos, os ciganos recebiam uma ração de pão e salame, e muitos assim acreditaram que se trataria simplesmente de transferência para outro campo. Então, um pelotão das SS, armado e auxiliados por cães, irrompeu no acampamento e lançou-se contra mulheres, crianças e anciãos. Um garoto tcheco, suplicou aos gritos: ´Eu lhe peço, senhor SS, me deixe viver!`. A única resposta que teve foram os golpes de cassetete. Por fim, foram todos jogados, em montes, no caminhão e levados ao crematório. " (Kraus e Kulka).

"Houve cenas de cortar o coração: mulheres e crianças se ajoelharam diante de Mengele (2) e Borger (3), gritando: ´Piedade! Tenha piedade de nós!´ Em vão. Foram abatidas a coronhadas, pisadas, arrastadas ao caminhão, levadas à força. Foi uma noite horrível, alucinante. Na carroceria foram jogados os que também já tinham morrido sob os golpes da clava . Os caminhões chegaram ao bloco dos órgãos por volta de 22h30min e ao isolamento por volta de 23hs. Os SS e quatro prisioneiros levaram para fora os enfermos, mas também 25 mulheres em perfeita saúde, isoladas com os respectivos filhos"(Aldesberger, p.112-13).

"Por volta de 23hs chegaram outros caminhões diante do hospital, num só caminhão colocaram cerca de 50 a 60 presos e foi assim que chegaram até a câmara de gás. Ouvi os gritos até altas horas da madrugada, e compreendi que alguns tentavam opor resistência. Os ciganos protestavam, gritando e lutando até a madrugada... Tentavam vender a vida a um alto preço". (Dromonski, no processo por Auscwitz).

"Depois, Gober e outros percorreram os quartos um por um tirando dali as crianças que tinham se escondido. Os menores foram arrastados até os pés de Boger, que os agarrava pela perna e os jogava contra a parede...Vi esse gesto se repetindo-se umas cinco, seis e sete vezes" (Langhein).

As estimativas mais próximas falam em meio milhão de ciganos mortos, mas sabe-se que esses dados são inferiores às cifras reais, pois muitos foram mortos antes mesmo de serem matriculados.

Em seu livro "Alemanha e Genocídio", o historiador Joseph Billig distingue três tipos de genocídio: por eliminação da capacidade de procriar, por deportação e por extermínio. No hospital de Dusseldorf-Lierenfeld foram esterilizadas ciganas casadas com não-ciganos, algumas das quais morreram por estarem grávidas. Em Ravensbruck os médicos da SS esterilizaram 120 meninas ciganas. Um exemplo do segundo tipo de genocídio foi a deportação de 5 mil ciganos da Alemanha para o gueto de Lodz, na Polônia. As condições de vida eram ali tão desumanas que ninguém sobreviveu.

Povo antigo, porém prolífico e cheio de vitalidade, os ciganos tentaram resistir à morte, mas a crueldade e o poderio de seus inimigos prevaleceram à sua coragem. O amor à música serviu-lhes por vezes de consolo no martírio. Famintos e cobertos de piolhos, eles se juntavam diante dos hediondos barracões de Auschwitz para tocar música, encorajando as crianças a dançar.

Há testemunhas da coragem dos ciganos que militaram na Resistência polonesa, na região de Nieswiez. Segundo elas, os combatentes ciganos se lançavam sobre o inimigo fortemente armado empunhando apenas uma faca.

Como diz Myriam Novitch, diretora do Museu dos Combatentes dos Guetos, "são decorridos muitos anos desde o genocídio dos ciganos. Já é tempo de denunciar esse crime abominável."

Notas:
(1) - Reinhard Tristan Eugen Heydrich, Sicherheitsdienst da SD - Serviço de Segurança das SS, Protektor da Boêmia e Morávia (ex-Checoslováquia), onde recebeu o cognome de "Carniceiro de Praga".
(2) - Josef Mengele, médico chefe da principal enfermaria do campo de Birkenau, que era parte do complexo Auschwitz-Birkenau, ficou conhecido como "Todesengel" (o Anjo da Morte).
(3) - Wilhelm Boger, SS- Oberscharfuhrer.

Fontes:
* Myriam Novitch - Os ciganos e o terror nazista
* Ota Kraus e Erich Kulka - The death factory: documents on Auschwitz - 1946.
* Lucie Adelsberger - Auschwitz: A Doctor'S Story - Boston, Northeastern University Press. 2006. ISBN: 9781555536596.