A execução do filósofo e cientista Giordano Bruno pelas chamas da Inquisição Romana no ano de 1600, foi um dos acontecimentos mais dramáticos da época do Renascimento. Para alguns representou o fim da tolerância da Igreja Católica para com a dissidência representada por alguns sábios, para outros foi o sinal do recomeço dos tempos obscurantistas que opuseram a fé contra a ciência num confronto que não teve mais fim.
"Ainda que isso seja verdade, não quero crê-lo; porque não é possível que esse infinito possa ser compreendido pela minha cabeça, nem digerido pelo meu estômago..."
Búrquio, num diálogo de G.Bruno, in"... do infinito, do universo e dos mundos", 1584.
A execução de Bruno
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Giordano Bruno |
Talvez, naquele instante derradeiro, ele recordasse as palavras que certa vez escrevera num momento de profunda melancolia: Vejam, prognosticou Bruno, o que acontece a este cidadão servidor do mundo que tem como o seu pai o Sol e a sua mãe a Terra, vejam como o mundo que ele ama acima de tudo o condena, o persegue e o fará desaparecer. Morto aos 52 anos de idade, tornou-se um mártir do livre-pensamento, e um símbolo da intolerância da Contra-Reforma liderada pela Igreja Católica.
O processo da Inquisição
Uns tempos depois da sua volta à Itália, devido a um áspero desentendimento, Mocenigo trancou-o num quarto da sua mansão e chamou os agentes do tétrico tribunal inquisitorial para levarem-no preso, acusando-o de heresia. Encarceraram-no na prisão de San Castello no dia 26 de maio de 1592.
Na primeira vez em que o interrogaram, Bruno conciliou. De nada lhe serviu. Em seguida, o Santo Ofício de Roma, alegando soberania em casos de heresia, exigiu que o Doge, o governante de Veneza, mesmo a contragosto, lhe enviasse Bruno algemado. Enquanto não se deu o translado, além de terem-no torturado, colocaram-no num espantoso calabouço. Era um poço imundo, úmido e escuro como breu, cavado num porão a beira do canal. A viagem a Roma, ainda que a ferros, deve ter-lhe parecido um alivio.
"Os padres teólogos", determinou o documento final, "deverão inculcar no dito frade Giordano (Bruno era frei dominicano, mas não mais vinculado à ordem), que suas proposições são heréticas e contrárias à fé católica... Se as rechaçar como tais, se quiser abjurá-las, que seja admitido para a penitência com as devidas penas. Se não, será fixado um prazo de 40 dias para o arrependimento que se concede aos hereges impenitentes e pertinazes. Que tudo isso se faça da melhor maneira possível e na forma devida".
A leitura da sentença
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Cabalística atraiu Bruno |
O temperamento de Giordano Bruno
Estar em Londres ou em Praga, em Wittemberg ou em Paris, era-lhe indiferente. Monge errante e renegado, a corte do rei francês ou um salão de conferências de uma universidade alemã não lhe causava estranheza. Qualquer lugar lhe bastava. Tanto é assim que ficou conhecido por ter dito que: "Al vero filosofo ogni terreno è patria", ao verdadeiro filósofo qualquer terreno é a sua pátria.
Nada, pois, espantar-se em morar ele em Genebra, graduar-se em teologia em Toulouse, e logo ingressar no Colégio dos Leitores Reais de Paris. Não eram só as fronteiras dos reinos e dos principados que ele ignorava. Estar a Europa envolvida na Grande Guerra Civil Teológica travada desde 1517 entre católicos e protestante, não o abalava. Nada viu de mal em ser católico e ao mesmo tempo ingressar numa congregação luterana na Alemanha.
Ele desconfiava dos césares que queriam unificar a Terra dotando-a de uma só lei e uma só fé, deplorando as técnicas que faziam com que os povos se aproximassem exageradamente. A simples existência das montanhas e dos mares, para ele, era uma advertência feita pela natureza para que cada povo fosse mantido no seu devido lugar. Melhor que assim fosse para manter-se a paz. Bruno, enfim, opunha-se à globalização, o que não deixa de ser contraditório para quem queria derrubar os muros que punham limites ao universo, mas aconselhava a manutenção deles aqui na Terra.
A intolerância das Igrejas
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Cosmo de Copérnico |
O Alto Clero Romano, e a corporação sacerdotal em geral, tornara-se, no decorrer do século 16, extremamente sensível às críticas, reagindo com brutalidade contra quem ousasse desafiar-lhe a autoridade ou colocasse em dúvida os seus dogmas. A curiosidade, a bonomia, e a tolerância, com que muitos papas do passado trataram o ceticismo e a incredulidade de muitos homens sábios, desapareceram com a morte de Leão X, em 1521.
Provocada por este clima radical de vida e morte, era natural que a Igreja Católica, como a Reformada, exigissem de todos posições bem definidas, a favor ou contra. Quem se mostrasse ambíguo ou neutro, era potencialmente um inimigo a quem não se concederia nem perdão, nem quartel. Até o grande Erasmo de Roterdã, o maior homem de letras daquele século, que falecera em 1536, e que tentou o quanto pôde manter-se eqüidistante, equilibrando-se entre as duas fés hostis, sofreram a dolorosa experiência de ver-se vilipendiado por ambos as partes.
A utopia de Bruno
Repetindo Marcilio Ficino, o filósofo renascentista que fundara a Academia Platônica, morto em 1499, gostava de lembrar que a cruz era, bem antes da crucificação de Jesus, um símbolo sagrado de Isis, e fora bordada no peito de Serápis. Numa memorável invocação que fez a Asclepius (Esculápio), após descrever o cenário de um mundo melancólico, sofrendo de total inversão, onde "as trevas sepultarão a luz", e só "permaneceriam os anjos perniciosos", Bruno não duvidava que Deus poria fim a tal mancha, "chamando para o novo mundo a sua antiga fisionomia". Isto é, restaurando o culto egípcio.
Ele criticava o cristianismo ter destruído as honoráveis religiões do passado, pois eram tesouros de conhecimentos imemoriais. Vira em Hermes Trimegistro - um imaginário sacerdote egípcio que, pela santidade da sua vida, pela dedicação aos cultos divinos, e majestosa dignidade, consagrara-se como Três Vezes Grande - o fundador da prisca theologia, a teologia antiga, de onde todas as outras derivaram.
A doutrina heliocêntrica de Copérnico, que ele difundiu em incontáveis e sensacionais conferências nos meios acadêmicos europeus, pareceu-lhe, pois, um sinal do inevitável retorno às crenças desaparecidas.
"Persevere, caro, persevere! Não te desencoraje, nem recue jamais porque, com o socorro de múltiplas maquinações e artifícios, o grande e solene senado da ignorância disfarçada, ameaçará e fará destruir o divino empreendimento do teu grandioso trabalho".
Antecipando o livre-pensar
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Galileu |
O mago egípcio
Essas leituras, múltiplas e variadas, fizeram com que o seu vocabulário confundisse muitos dos seus exegetas. Não afetou, porém, o seu magnífico estilo, e, de certo modo, contribuiu para evitar que fizessem dele um dogmático. A abertura dele para tudo o que viesse a somar para o conhecimento, fez com que colocasse, no seu Templo da Sabedoria, além de alguns teólogos não-convencionais, até os povos antigos e místicos diversos, não considerados pelo cristianismo como merecedores de atenção. Talvez, ele fizesse isso, é de supor-se, na intenção de alargar as sensibilidades do conhecimento e atenuar o preconceito contra o passado pagão da humanidade.
Bruno em Shakespeare
Frances Yates, a grande historiadora da ciência, sentiu a imagem espelhada de Bruno em duas figuras de William Shakespeare. Tanto em Berowne, personagem de Love´s labour lost (Trabalhos de Amor Perdido), como na de Próspero, o náufrago da The Tempest (A Tempestade) - o mago bonachão italiano capaz de embasbacar nativos como Caliban, com seus tubos enfumaçados e aparelhos de ensaio(*). Para escândalo dos teólogos, o filósofo não distingia mágica boa da má. Como uma espada, dizia, as artes do ocultismo eram neutras, podendo fazer-se bom ou mau uso do seu fio, era uma linguagem da natureza e não do demônio. Tanto Moisés como Jesus eram grandes magos para ele.
Bruno, no entanto, ao contrário de Shakespeare, reprovou a conquista da América bem como o comércio de ouro e prata que se seguiu. Não atribuía nenhum direito especial no homem branco que o autorizasse a submeter os nativos.
Sobre a conquista do Novo Mundo opinou que ela só servira "para perturbar a paz do próximo, violar as próprias pátrias das regiões, confundir o que a previdente natureza distinguiu, redobrar os defeitos mediante o comércio e agregar vícios aos vícios de cada povo, mediante a violência impor novas loucuras e demências inéditas aonde não existem, mostrando, enfim, ser mais sábio o que é mais forte: ensinar novos cuidados, instrumentos e artes de tirania e assassinar um ao outro" (Ceia..)
Shakespeare, por sua volta, pintou o filósofo na corte de Henrique de Navarra, pondo-lhe na boca um discurso hedonista, sem muito entusiasmo em seguir com rigor a disciplina que o rei, um homem culto e estudioso, desejava impor no seu grupo de estudos ( Ver Cena I, ato I, do Trabalhos de amor perdidos)
A infinitude dos mundos
O mais vasto império de Deus
"Or ecco quello ch´há varcato l´aria, penetrato il cielo, discorse le stelle, trapassati gli margini del mondo, fatte svanir le fantastiche muraglie de le prime, ottave, none, decime, et altre che vi s´avesser potute aggiongere sfere per relazione de vani matematici e cieco veder di filosofi volgari".
("Ora, aquele que cruzou o espaço, penetrando no céu, descortinando as estrelas, ultrapassando as margens do mundo, faz com que desapareçam as fantasiosas muralhas da primeira, oitava, nona, décima, e tantas outras que os maus matemáticos e o beco sem saída da visão dos filósofos vulgares puderam agregar às esferas").
Anos depois da morte de Bruno, Galileu irá transformar esse paradoxo, isto é o Cosmos inteiro existir apenas em função da terra, numa das suas mais sarcásticas afirmações, quando, num dos seus diálogos, faz Sagredo (o próprio Galileu) dizer a Simplicio (um tolo que defende a ortodoxia e o geocentrismo):
"Como assim? Estas afirmando que a natureza concebeu e produziu tantos e tão vastos corpos celestiais, nobres e perfeitos, invariáveis, eternos, divinos, sem nenhum outro propósito que o de servir a esta Terra mutável, transitória e perecível? Servir a isto que chamas os detritos do universo, e esgoto de toda a imundície?" ( Diálogos sobre os dois sistemas do mundo, 1632).
Anunciando os astronautas
(*) Foi o silêncio dos espaços infinitos, de onde não se recolhera ainda nenhuma prova de existências extraterrestres, que, mais tarde, levou Pascal à reflexão sobre a terrível situação em que se encontrava a humanidade, para a qual seria psicologicamente insuportável viver sem Deus. A crença no Ser Supremo era a compensação para a sua solidão absoluta.
As esperanças de Bruno
Na França, entronara-se um novo rei em 1589: Henrique de Navarra. Um homem culto, um renascentista dos pés à cabeça. Ele derrotara a Santa Liga dos católicos, propondo em seguida conciliar as duas religiões rivais (proposta que materializou no Édito de Tolerância de Nanes de 1598). Bruno arriscou. Talvez a Igreja relevasse os tumultos que ele provocara no passado, inclusive sua estada em Wittemberg, a capital da heresia (onde publicamente elogiou Lutero). Afinal, a expectativa otimista que depositara no "efeito Navarra" de se poder dali em diante "viver e pensar livremente", não era só dele. Pagou com a vida pelo engano.
É bem possível que outras razões, além da acusação de heresia, pesaram na decisão das autoridades de levá-lo às chamas numa praça pública de Roma. Um pouco antes, em 1599, Tommaso Campanella, um outro frade napolitano, dominicano como Bruno, liderara uma rebelião dos calabreses contra o domínio espanhol em Nápoles. Campanella propunha, em substituição ao governo estrangeiro, a instalação da Cidade Mágica do Sol (que irá inspirar o seu livro La Città del Sole, escrito na prisão em 1602), uma sociedade utópica inspirada na "República" de Platão. Yates cogita que a execução brutal de Bruno poderia estar de alguma forma relacionada com a insurreição napolitana. Servira de advertência a qualquer tentativa futura de desafio à hierarquia e ao estabelecido. Bruno, é bom lembrar, era também um alvo fácil. Não pertencia a nenhuma corporação acadêmica ou ordem religiosa que intercedesse a seu favor junto à Cúria Romana.
Duas concepções cósmicas rivais
As consequências da morte de Bruno
Um medo sombrio pairou sobre as ações da Igreja Católica. Viram-na como uma instituição capaz de perseguir os doutos e os sábios, caso eles questionassem o Alto Clero e a burocracia papal. Imagem negativa que perdurou até recentemente, quando o Papa João Paulo II desculpou-se pela infelicidade do processo contra Galileu, reabilitando-o em 1992. Porém, até o momento, o Pontificam Consilium Cultura que reabilitou Johann Huss e Galileu, ainda não tomou uma decisão favorável a Giordano Bruno. A Igreja Católica só deplorou a execução, mas não os motivos da sua condenação.
Fonte:http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/2005/08/25/006.htm