15.5.12








Qual a função da ciência em nossa sociedade? Esse é provavelmente um dos temas que mais deve ser questionado e discutido. A partir disso, é de indubitável importância perceber a ação da ciência e seu papel ao longo de toda a história do homem e das sociedades.

O presente estudo, portanto, foi realizado com o intento de se analisar qual foi a importância do exercício da ciência na Europa cristã no perído denominado Alta Idade Média. O primeiro subtítulo é abordada a questão da passagem de conhecimentos que já vinham sendo desenvolvidos nos séculos passados. Não se tratam apenas de noções referentes às ciências naturais, mas de toda a área do conhecimento. Na segunda parte é levantado o aspecto das condições em que o conhecimento dessas “artes liberais” pagãs poderia ser requisitado. Por fim, quais foram as consequências na prática para aquela sociedade de uma ciência condicionada.

Nas considerações finais, foi traçado um paralelo entre o papel da ciência aqui analisado e o da sociedade de hoje, sendo esse talvez o aspecto mais importante de toda pesquisa histórica: levantar questões proporcionando uma crítica radical da sociedade moderna.


A penosa sobrevivência do conhecimento
A instalação dos bárbaros constituiu uma grande ameaça a todo o acervo de herdada da Antiguidade. De fato, muito se perdeu de todo o conjunto de obras científicas e filosóficas com as invasões. Some-se a isso, a condenação de toda a cultura pagã da Antiguidade por parte da religião cristã. Nesse ponto, acontece um interessante paradoxo, pois apesar dessa aversão à cultura antiga, o cristianismo está bastante impregnado da mesma, afinal, foi nesse meio que se formou essa nova e poderosa crença.

“Mesmo os mais ‘cultos’ entre os Padres da Igreja, os mais fiéis herdeiros do pensamento e da arte clássicos, Santo Agostinho , por exemplo, concordam com a reação espontânea dos simples e dos ignorantes para condenar a cultura antiga enquanto ideal independente rival da revelação cristã” (MARROU, 1966, p.488).

Não que esta tenha sido negada, pois foram os próprios eclesiásticos que reescreveram diversos livros da Antiguidade ao longo de toda a Idade Média.

“O que se passava na cabeça e na imaginação desses escribas quando recopiavam um texto pagão, a seus olhos, ora falso, ora licencioso ou indecente? Constatemos primeiro que eles nunca selecionaram ou censuraram. Os escribas eram fiéis ao texto.” (ROUCHE, 1985, p.523).

Ainda assim a cultura antiga teve seus admiradores, como Boécio , que além de traduzir diversas obras clássicas, propôs o estudo de Platão e Aristóteles nas escolas, além de ciências que se resumiam em aritmética, geometria, música e astronomia. Muito dessa cultura do passado, porém, não exerceu influência na mentalidade cristã ocidental como aconteceu na região oriental no novo período que se afigurava.

O Oriente por sua vez, principalmente os árabes, podem ser, talvez, considerados os principais transmissores do conhecimento antigo, auxiliados pelo Império Bizantino nessa questão. Afinal, enquanto a Roma do Baixo Império via a filosofia esmaecendo, Bizâncio além de partilhar do conteúdo literário e jurídico romano, desenvolvia uma filosofia de tradição milenar. Dessa forma, os árabes, com suas conquistas no território oriental do antigo Império, tiveram ao seu dispor todo o legado de uma cultura que vinha sendo cultivada há séculos. “Antes da Renascença, muitos clássicos gregos, preservados pelos bizantinos e pelos árabes, ainda eram desconhecidos no Ocidente” (LIND, 2000, p.6). Se por um lado, o cristianismo usava um platonismo de uma forma adaptada, esquecendo uma boa parte da cultura pagã, a visão de mundo aristotélica com alguns elementos do platonismo predominava entre os sábios árabes. Podem ser considerados como a verdadeira ponte que permitiu a propagação da ciência antiga contribuindo para a formação da ciência moderna ocidental.

De qualquer forma, apesar da prudência com relação à propagação da cultura antiga, pagã, a visão do homem medieval e seu modo de buscar o conhecimento da natureza não diferiam tanto de seus antepassados. Pode-se dizer que tanto a educação quando a ciência tinham muito daquela cultura passada, com diferentes arranjos. Entre esses arranjos, pode-se citar a fusão que estava acontecendo entre a visão de mundo pregada pelo cristianismo, e toda uma cultura pagã típica dos povos invasores que agora ocupavam a Europa. Mas o principal delineador da ação da ciência nesse período, foi o fato de estar simplesmente à serviço da Igreja.



A ciência: uma mera funcionária
O modo de encarar a ciência na Alta Idade Média, pode ser percebida através de como Santo Agostinho a via. Ele não escreveu nada especificamente relacionado com conhecimentos científicos, mas sua visão sobre o assunto, foi predominante por muitos séculos.

Agostinho argumenta com o pressuposto de que se o mundo é uma criação de Deus, naturalmente é bom. Sendo assim, o mal é simplesmente uma ausência do bem. Desse pensamento de Agostinho derivam seus incentivos para as ciências naturais. Ora, se o mundo é bom, a busca do conhecimento do mesmo por parte do homem, só poderia lhe trazer benefícios com a contemplação da beleza da obra divina.

Apesar dessa aprovação da busca do conhecimento, ela tinha suas limitações. A ciência não era uma preocupação central de Santo Agostinho, assim como não era da Igreja nem do homem medieval. Como a preocupação essencial era a salvação das almas, a ciência foi relegada a um segundo plano. O objetivo dos estudiosos, era única e simplesmente compreender e interpretar a Sagrada Escritura. A cultura pagã, apesar de estar recheada de superstições e mitos, poderia ser usada para auxiliar o estudo das mensagens divinas. O próprio Agostinho deixa claro no segundo livro de De Doctrina Christiana:

“Não se atrevam a consagrar-se sem inquietação às ciências liberais professadas fora da Igreja, como se elas fossem indispensáveis para alcançar a vida feliz. Os jovens devem submetê-las a exame criterioso e sereno, pois as ciências profanas só lhes devem interessar enquanto servirem de adminículo para o estudo da Sagrada Escritura e para o auxílio na tarefa de interpretação das suas passagens obscuras” (apud NUNES, 1978, p.208)

Sendo assim, surgia outra, e mais influente limitação da ciência: o seu objetivo definido pela Igreja. “...não se observava a natureza para se deduzir explicações ou levantar hipóteses, mas para se ver os símbolos dos desígnios de Deus.” (FRANCO, 1986, p.128).



A ciência em ação e o contraste com o Oriente
A ciência quando não usada em sua principal função, compreender Deus, era acionada quando surgiam questões de preocupação da Igreja, como algumas da área da agricultura ou então na determinação da Páscoa. Questões práticas que não exigiam um trabalho teórico de profundidade. As limitações dos conhecimentos científicos na Europa cristã são visíveis nas mais diversas áreas.

A astrologia, por exemplo, enquanto era negada no Ocidente por Santo Agostinho, que a considerava a negação da liberdade de escolha do homem, era vista como a ciência mais nobre entre os árabes, e além de tudo, intimamente ligada com a religião.

Na área da saúde, por sua vez, a busca de um aprimoramento de técnicas é brutalmente retardada. Basta pegar qualquer livro sobre a história da Medicina para constatar tal fato. Encontraremos descrições minuciosas da medicina árabe, chinesa, hebraica, hindu, durante toda a alta idade média, mas quando se busca algo relativo ao ocidente, encontra-se uma verdadeira página em branco. “A Medicina estava limitada pela idéia de que o doente é um pecador cuja cura residia na atuação da Igreja (orações, exorcismos, etc.)” (FRANCO, 1986, 128). Agora, junte-se a essa mentalidade, todas as condições precárias de higiene, os grandes períodos de fome, pestes, e tem-se a resposta de como as taxas de natalidade quase foram alcançadas pelas de mortalidade em algumas regiões. Enquanto isso, na China existiam hospitais e inclusive uma faculdade de Medicina. Se no Ocidente os padres realizavam exorcismos, os hindus também recorriam à soluções metafísicas. Mas ainda que entre os hindus se buscasse curas através de feitiços e encantos, eles não se limitaram a isso. Foram desenvolvidos diversos remédios com algumas ervas e partes de animais, além de idéias avançadas para a época, como a de doenças hereditárias e de pequenos organismos dentro do corpo humano causadores de algumas moléstias. Simultaneamente, na Europa cristã, as curas milagrosas eram relatadas por monges médicos. Infelizmente as mãos de Deus não foram capazes de impedir em algumas regiões, por exemplo, a “taxa de mortalidade infantil extremamente elevada: 45%” (ROUCHE, 1985, p.442). A obra de Santo Isidoro , Etimologias, uma verdadeira enciclopédia com muito da cultura antiga, solitariamente trata da Medicina, mas em um segundo plano, sendo o trabalho direcionado principalmente para o Direito. E basta pegar o objeto de estudo da obra de Marciano Capela , Sobre as Noves Disciplinas, onde “o advogado cartaginês (...) deixou de lado a medicina e a arquitetura , por se tratar de disciplinas ‘ocupadas com as coisas mortais e terrestres sem nada ter de comum com o céu.’” (NUNES, 1979, p.75), para observamos como a área de saúde era encarada.

A mineralogia e a botânica, que no Ocidente se limitaram à mera observação das plantas e minério na busca de se encontrarem mensagens divinas, objetivo semelhante em todos os outros campos, opostamente tiveram um acentuado desenvolvimento entre as culturas de outros povos da época correspondente.



Considerações finais
O mais interessante em se observar a ciência na Alta Idade Média, é poder comparar o papel que ela representava na época com a que assume hoje. De uma ciência submissa à religião, passamos à uma submissa à economia. Como frisou bem Fritjof Capra em seu polêmico Ponto de Mutação:

“O paradigma ora em transformação dominou nossa cultura durante muitas centenas de anos, ao longo dos quais modelou nossa moderna sociedade ocidental e influenciou significativamente o resto do mundo. Esse paradigma compreende um certo número de idéias e valores que diferem nitidamente dos da Idade Média (...). Incluem a crença de que o método científico é a única abordagem válida do conhecimento (...) e a crença do progresso material ilimitado, a ser alcançado através do crescimento econômico e tecnológico”.

Se naquele tempo o progresso tecnológico e cientifico foi de certa forma retardado por um tipo mentalidade dominante, hoje, mais do que nunca, ele é incentivado e consegue ser tão prejudicial ao homem quanto no passado. Isso serve inclusive para nos mostrar o quanto são falhas as teorias evolucionistas quando usadas para analisar a história das sociedades. Se podemos por um lado falar de uma evolução das técnicas, nem sempre podemos dizer o mesmo de seu uso. O progresso da ciência, aliado ao capitalismo selvagem, estão conseguindo submeter a natureza à um processo de exploração brutal, afirmando assim a posição do homem como senhor do mundo. Se entre os Francos pagãos, por exemplo, a natureza era “um mundo obscuro de violência que se deve dominar” (ROUCHE, 1990, p.472), na sociedade moderna, poderíamos dizer que a natureza é um mundo obscuro de lucros que se deve dominar.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPRA, F. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 1982.

FRANCO JR, H. A Idade Média: O nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986.

GONÇALVES, J.C. A responsabilidade ambiental. In: DE BONI, L.A. (ORG).
Idade Média: Ética e Política. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

LIND, M. A Segunda Queda de Roma. Extraído de A Folha de São Paulo , Caderno mais!, 08/08/2000, p.6.

MARROU, H.I. História da Educação na Antiguidade. São Paulo: Herder, 1966.

NUNES, Ruy A. C. História da educação na Antiguidade Cristã. São Paulo: E.P.U. & EDUSP, 1978.

NUNES, Ruy A.C. História da educação na Idade Média. São Paulo: E.P.U & & EDUSP, 1979.

ROUCHE, M. Alta Idade Média ocidental. In: ARIES, P, DUBY, G (ORG).

História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. v.1.



BIBLIOGRAFIA
CHASSOT, A. A ciência através dos tempos. São Paulo: Moderna, 1995.

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Idade Média: Ética e Política. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

RONAN, C.A. História Ilustrada da Ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. vII.




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