Por: URIEL DUTRA
Idade Média: “Idade das Trevas” ou uma “Belle Époque”?
Contexto Europeu do século X ao século XIII:
Uriel Dutra1
Sinopse:
Visando desmistificar, oprimir e reduzir a ideologia pejorativa “Idade das Trevas”, apresento as mais variadas criações e invenções inseridas no contexto de desenvolvimento do período medieval, percorrendo um vasto campo temporal e espacial (que aqui estudado a Europa do ano de 900 a 1200 da era cristã) investigando e estudando este recorte do medievo através de variados fatores, positivos e negativos, que são notáveis mais aspectos positivos de uma bela época do que um lado obscuro de trevas.
Palavras chave: Idade das Trevas - Invenções – Desenvolvimento - Bela Época
“Idade das Trevas” foi o termo adotado pelos humanistas do século XVII, aonde generalizaram toda a civilização da Europa do século IV ao século XV como um tempo de ruína e flagelo. Esta ideologia de obscuridade das trevas é resultado de fatos e acontecimentos negativos ocorridos no longo período da Idade Média, tais como, as guerras, as invasões bárbaras, as crises da agricultura, as epidemias, a imposição da Igreja, a inquisição em relação aos hereges, a centralização da economia restrita aos feudos, as desigualdades sociais, dentre outros aspectos, mas que não justificam criar uma terminologia pejorativa para uma gigante e envolvente civilização que em contraste com esse lado negativo muito criou, muito inventou e muito desenvolveu, lembrando que o período medieval é o carro chefe da historiografia contemporânea.
Então empregar uma ideologia pejorativa a uma vã sociedade, é demonstrar preconceito, calúnia, difamação e mais altamente uma insuficiência de conhecimento desta mesma, que conforme o renomado historiador medievalista Jacques Le Goff, a Idade Média foi “... uma época que não foi de trevas nem imune ao progresso; ao contrário, foi uma época fértil de invenções vitais e importantes ...” .(LE GOFF, 2007, capa), aí nesta citação Le Goff trata a Idade Média de uma forma clara, objetiva e “com os pés no chão”, aonde expõe suas idéias sem condenar qualquer coisa, afinal a função do historiador é de compreender, e não de julgar o passado. Através de comparações de fontes de diferentes linhas teóricas, e através do estudo,da pesquisa e da análise de várias fontes secundárias proponho dissertar a Idade Média (dos séculos X ao XIII), visando mostrar o lento desenvolvimento, porém grandioso, que de uma forma foi marcado pela fome, pobreza, miséria, doenças e todos os obstáculos possíveis, mas que também levou a Europa a várias invenções e criações tendo um papel de suma importância e fundamentação para a formação de uma alta sociedade, que refletiu também nas novas sociedades modernas, aonde vários aspectos foram legados a nós contemporâneos, conforme o historiador Hilário Franco Junior:
“(...) o período entre os séculos IV e XVI é tradicionalmente conhecido por Idade das Trevas, Idade da Fé ou, com mais freqüência, Idade Média. Todos eles rótulos pejorativos, que escondem a importância daquela época na qual surgiram os traços essenciais da civilização ocidental. Nesta, mesmo países surgidos depois daquela fase histórica –caso do Brasil- têm muito mais de medieval do que à primeira vista possa parecer. Olhar para a Idade Média é estabelecer contato com coisas que nos são ao mesmo tempo familiares e estranhas, é resgatar uma infância longínqua que tendemos a negar mas da qual somos produto. De fato, para o homem do Ocidente atual compreender em profundidade a Idade Média é um exercício imprescindível de autoconhecimento (...)”.(FRANCO JUNIOR,2004, capa).
As criações do medievo (de aproximadamente dez séculos) atingiram um alto número, dentre elas estão: os moinhos, a charrua, a pólvora, a plaina, o pisão, o arco triangular, os algarismos arábicos, a anestesia, o anno domini, a árvore genealógica, os bancos, os botões, a bússola, o carnaval, o carrinho de mão, as cartas de jogo, o cavalo como força motriz, o garfo, gatos como animais domésticos, a hora de sessenta minutos, a lareira, os livros, o macarrão, a marca d´água, o óculos, os nomes das notas musicais, o papai Noel, o papel, a prensa de tipos móveis, o purgatório, as roupas de baixo, o tarô, as universidades, os vidros coloridos, o xadrez, o zero, o relógio, as cidades, as moedas, as feiras, a cavalaria, os castelos, as cruzadas, o leme, o astrolábio, as ferraduras, a roda d’ água, o poço artesiano, o estilo gótico(...), entre várias outras coisas, sendo que alguns dos itens inovadores já existiam na antiguidade, só que não eram utilizados por falta de conhecimentos e técnicas.
O que definia a riqueza, o poder político e o poder social era a terra e a economia agrária, que são fundamentados pelo modo de produção feudal2 (teve suas origens no século IV, com o comitatus3germânico e o colonato4 romano), no qual dividia a sociedade em classes, aonde era efetivado o contrato de vassalagem entre um senhor (que entrava com o meio de produção, a terra) e um camponês (que entrava com o serviço braçal). A agricultura do século X era pouco desenvolvida devido aos instrumentos rudimentares e pela falta de técnicas, mudando esse contexto no século XI com os progressos agrícolas e demográficos, aonde se denominou “revolução agrícola” por causa das transformações positivas, sendo a agricultura influenciada pelos moinhos, pela charrua, pela enxada, pela foice e pelo cavalo. No século XII foi empregada a utilização do adubo, em geral o esterco de vaca, que era de alta poder aquisitivo na época.
A cidade medieval se afirma entre os séculos X e XIII, sendo inicialmente pequenos centros de trocas, aonde firmaram os burgos (lugares fortificados), essas cidades tinham populações basicamente bárbaras, que devido o processo evolutivo foram sendo separadas, tais como, os artesãos, os senhores de terras, os reis, os bispos, os condes, os cônsules, a burguesia, os pequenos comerciantes, os pedreiros, os rebocadores, os carpinteiros, os mineiros, os metalúrgicos, as domésticas e os intocáveis ou minorias excluídas5.
A Igreja do século XI não mantinha um bom desenvolvimento em relação ao cristianismo, ameaçando assim a existência dessa instituição e da cristandade. O papa através da Igreja criou as cruzadas, que consistia em servir a Deus, peregrinar, disputar a reconquista da terra sagrada e estimular a caridade aos cristãos oprimidos, sendo que quem participasse era denominado monge guerreiro, e por ter características de guerra (matança, pilhagens) ficou denominado Guerra Santa. Todos que participavam das cruzadas eram pessoas que tinham a ideologia de se redimir dos pecados, defendendo ou visando à libertação dos cristãos detidos, sendo que estes participantes tinham a terminologia de santos (os que sobreviviam) e mártires (os que morriam), e nesse contexto de defesa e expansão do cristianismo surge a Ordem dos Cavaleiros Templários, fundada em Jerusalém, em 1118, por nove cavaleiros, para defender os peregrinos cristãos na Terra Santa durante as cruzadas.
As moedas surgem especialmente depois do avanço agrícola no século XI, pois são muitas mercadorias no comércio, gerando uma alta circulação monetária, que também influenciou nas cruzadas, pois se tornava mais viável levar uma quantia de moedas do que um navio de cevada. Assim o grande comércio e o demasiado aumento demográfico foram o motor da expansão econômica monetária, a moeda tornava-se cada vez mais necessária para efetuar pagamentos e trocas, sendo que esse crescimento da economia monetária começou a substituir a economia natural, que resultou no enfraquecimento dos senhores feudais que caracterizou a primeira crise do feudalismo no século XIV. Dentre as moedas medievais encontravam-se de vários matérias, como ouro, prata, estanho e cobre (nem sempre puros), aonde variavam de acordo com o local e soberano, sendo utilizadas com várias formas e estampas, representando fatos, datas, pessoas, tais como, coroação, morte, ascensão, guerras, nascimento, poder, local, imperador, príncipe e acontecimentos em geral.
É interessante destacar as relações entre as cruzadas, o crescimento econômico do século XI e a expansão das cidades, que estão relacionadas de tal forma aonde cada fato vai surgindo e resultando de um outro. As cruzadas são compostas por milhares de pessoas, que vão peregrinando de cidade em cidade, e para custear os víveres destes cruzados são gastas enormes quantias de moedas em cada cidade, nascendo desse contexto às feiras e gerando assim um grande crescimento econômico que vai expandir as cidades transformando-as em importantes centros comerciais, aonde se destacam principalmente Gênova, Veneza, Constantinopla, Paris, Montpellier, Limoges, Londres, Ratisbona, Hamburgo, Colônia, Reims, dentre outras.
A Europa Ocidental medieval era rica em madeira, que permitiu um grande número de exportações de carvalho (madeira de luxo na época) para o mundo muçulmano. Surge aí o descobrimento e a utilização do ferro, que foi usado na maioria das vezes para a produção de ferramentas e para o armamento militar. No século XIII foram criadas ferramentas de ferro para trabalhar toda essa abundância de madeira, como por exemplo machados, trados e serras. O ferro foi utilizado também anteriormente para inovar na agricultura, com a criação da enxó (enxada). O grande avanço sobre a madeira ocorreu quando foi substituída por pedras nas construções, em especial no desenvolvimento dos castelos.
As novas fontes de energia do século XIII trouxeram um certo nível de desenvolvimento para a Europa medieval. Os moinhos inovaram muito, dentre eles estão: os moinhos de cânhamo (papel), moinhos curtidores, moinhos de pisão (tecidos), moinhos de cerveja e moinhos de amolação. Outra grande fonte de energia foi à criação anteriormente da atrelagem (XI) que pôs os animais como boi e cavalo a trabalharem nas lavouras. Neste momento o boi foi considerado inferior ao cavalo, chegando a valer dois bois por um cavalo, porém em Órleans o asno valia mais. Apesar das novas fontes energéticas substituírem a energia humana, os trabalhadores prevaleceram em vários setores, como no transporte de trigo e na navegação, que era utilizado remos manuais.
Os navios eram construções simplificadas e limitadas, existiam poucos nas frotas ocidentais. Transportavam vários artigos, grãos, madeiras e especiarias em geral, as principais rotas foram: em direção a Chipre e Armênia, a Flandres e a România. Em meados do século XIII foi introduzido o leme, que tornou os navios mais fáceis de serem conduzidos. As navegações intensificaram-se no inverno devido à criação da bússola (XIII-1280).
Os avanços tecnológicos de maior significância no campo “industrial’ foram: a criação da pólvora e das armas de fogo (XIII), que revolucionaram as guerras; o vidro (XIII) aparece como industria, pois já era conhecido na antiguidade, mas não era trabalhado, trouxe o desenvolvimento para cristandade, onde era utilizado para formar os vitrais; a industria têxtil surge para fabricar os vestuários, geralmente os técnicos e os inventores da idade média foram os artesãos. Um grande progresso comercial acontece com o surgimento do câmbio, a troca de moedas. O centeio foi a mais inovadora semente desenvolvida no período medieval, complementando a cadeia alimentar.
Tratando do desenvolvimento do período medieval é impossível deixar de fora a esplêndida instituição que surgiu em fins do século XII e destacou-se principalmente no século XIII, sendo ela a universidade, que marcou o renascimento urbano e o nascimento dos chamados intelectuais, sendo caracterizada por defender os interesses das comunidades em geral, aonde constituiu vários aspectos políticos e sociais sendo praticamente autônoma, porém prestava satisfação ao Estado e ao papa. A universidade era composta por mestres, doutores e alunos, formando um local de produção de saberes, de pesquisas, de questionamentos, de debates e de estudos específicos. Esta instituição utilizou o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (música, geometria, matemática e astronomia) como estudo básico para as faculdades oferecidas, tais como direito, artes, teologia e medicina, nos níveis de bacharelado, licenciatura, mestrado e doutorado. A universidade foi formada em três tipologias: as universidades espontâneas, que eram criadas por mestres e alunos, como por exemplo à universidade de Paris, Bolonha e Oxford; seguindo tinham as universidades nascidas por migrações, tais como a de Cambridge, em 1318, que nasceu por secessão da de Óxford, a de Orleans nasceu em 1306 pela de Paris; e outro tipo de universidade era a criada por soberanos, como a de Nápoles, criada por Frederico II, em 1224.
Essa instituição promoveu uma verdadeira revolução intelectual, que fez a sociedade desenvolver através do conhecimento, do raciocínio e de influências greco-árabes, que não chegou ao povo anteriormente graças a Igreja que triunfou apoiando-se na estagnação da “sociedade burra” educada pelo monopólio da Igreja. Esse nascimento dos intelectuais firmou o florescimento de belas obras culturais, tais como literatura, arte e música. Na literatura destacou-se as poesias em latim dos goliardos, que demonstravam características revolucionárias em relação à sociedade medieval, aonde essa “vagabundagem estudantil” demonstrava suas mentalidades sobre a sociedade, hora com aspectos positivos, hora com ideologias negativas, conforme este poema:
“(...) Sou coisa ligeira
Como a folha que é joguete da tempestade.
...
Como o batel6 vogando sem piloto,
Como uma ave errante pelos caminhos do ar,
Não estou amarrado nem por âncora, nem por cordas.
...
A beleza das raparigas feriu o meu peito,
As que não posso tocar, possuo-as com o coração.
...
Censuraram-me, depois, pelo jogo. Mas assim que o jogo
Me deixa nu, com o corpo frio, o meu espírito aquece.
É então que a minha musa compõe as suas melhores canções.
Em terceiro lugar, falemos da taberna.
...
Quero morrer na taberna
Onde os vinhos estiverem perto da boca do moribundo,
Depois os corpos dos anjos descerão cantando:
...”(LE GOFF, 1984,pg.31).
Também de grande influência foi à contribuição dos gregos e dos árabes que entrou no ocidente através dos interesses dos intelectuais tendo como via de passagem o comércio, nas feiras, através de manuscritos, que foram traduzidos por vários poliglotas. Os complementos culturais principais foram: a filosofia, a matemática, a astronomia, a medicina, a física, a lógica, a ética, a agronomia, a alquimia e os seus respectivos métodos de utilização.
Seria o mundo medieval um inferno de misérias e obscuridade? Descobre-se o contrário onde o desenvolvimento expandiu em enormes ramificações através de permanências e rupturas que permeiam um campo muito além da ideologia de obscuridade imposta pelos humanistas modernos do século XVII. Para uma suposta sociedade subdesenvolvida não cabem invenções geniais e de grande repercussão, portanto a Europa ocidental medieval não foi uma idade de trevas nem imune ao desenvolvimento, teve obviamente alguns aspectos negativos, que de um modo geral faz parte de qualquer civilização em construção ou propriamente dita “pronta”, afinal no mundo contemporâneo é notável civilizações com demasiados atritos e aspectos negativos, se não maiores do que nos dez séculos do período medieval. O progresso medieval constituiu vários alicerces que resultaram nas nações monárquicas da idade moderna, como a bela França, a Inglaterra, a Itália, a Alemanha, Portugal e a esplêndida Espanha, que sem sombra de dúvida não existiriam sem a superestrutura formulada pelos homens medievais, que por causa de suas necessidades muito inventaram e desenvolveram, atingindo um alto nível de progresso, portanto o período entre os séculos IV e XV é sinônimo de uma bela época.
Referencias bibliográfica:
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BURNS, Edward McNall.Alta Idade Média (1050-1300): Aspectos Religiosos e Intelectuais.In: História da civilização ocidental: do homem das cavernas às naves espaciais. São Paulo: Globo, 2000, pg. 271-306.
BURNS, Edward McNall. Alta Idade Média (1050-1300): Instituições Econômicas, Sociais e Políticas. In: História da civilização ocidental: do homem das cavernas às naves espaciais. São Paulo: Globo, 2000, pg. 237-270.
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FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras inovações geniais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
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LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Universidade. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2006, 573-588.
LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984, pg.11-31.
MACEDO, José Rivair. Viver nas cidades medievais. São Paulo:Moderna, 1999 (Coleção desafios).
PIRENNE, Henri.. A Moeda. In: História Econômica e Social da Idade Média. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1969,4ª edição, p.110-121.
Fonte: http://meuartigo.brasilescola.com/historia/idade-media-idade-trevas.htm