Anthony Kenny No século XIX, tudo aquilo que Kierkegaard defendeu foi bombasticamente rejeitado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Enquanto para Kierkegaard o prazer estético era a mais baixa forma de existência individual e a abnegação cristã a mais elevada, Nietzsche considerava o Cristianismo o mais baixo aviltamento do ideal humano, que tem a sua mais elevada expressão em valores puramente estéticos. Depois de uma educação luterana pelas suas piedosas mãe e tias, Nietzsche experimentou um sentimento de libertação quando, na Universidade de Leipzig em 1865, encontrou o ateísmo de Schopenhauer. Daí em diante apresentou-se, consequentemente, como opositor do espírito cristão e da personalidade de Jesus. A sua convicção de que a arte era a mais elevada forma de actividade humana exprimiu-se no seu próprio estilo filosófico, mais poético e aforístico do que argumentativo ou dedutivo. Nomeado com 24 anos para leccionar uma cadeira de filologia em Basel, dedicou o seu primeiro livro, A Origem da Tragédia, a Richard Wagner. Neste livro traça o contraste entre dois aspectos da alma grega: as paixões selvagens irracionais personificadas por Dionísio e a beleza disciplinada e harmoniosa representada por Apolo. A grandeza da cultura grega assenta na síntese dos dois, que foi rompida pelo racionalismo de Sócrates; a Alemanha contemporânea só podia ser salva da decadência que então dominava a Grécia se procurasse a sua salvação em Wagner. Por volta de 1876, Nietzsche cortou relações com Wagner e perdeu a admiração por Schopenhauer. Em Humano, Demasiado Humano, foi atipicamente simpático para com a moral utilitarista e pareceu valorizar mais a ciência do que a arte. Mas considerava esta fase da sua filosofia como algo que devia ser tirado como a pele de uma cobra. Depois de desistir da sua cátedra em Basel, em 1879, começou uma série de obras que afirmavam o valor da Vida e denunciavam, como elementos hostis à vida, a abnegação cristã, a ética altruísta, a política democrática e o positivismo científico. As mais famosas destas obras foram A Gaia Ciência (1882),Assim Falava Zaratustra (1883-85), Além do Bem e do Mal (1886) e A Genealogia da Moral (1887). Por volta de 1889 começou a mostrar sinais de loucura, vivendo num isolamento senil até à sua morte em 1900. Nietzsche pensava que a história exibe duas espécies diferentes de moralidade. Os aristocratas, sentindo que pertencem a uma ordem mais elevada do que os outros, usam palavras como “bem” para se descreverem a si mesmos, aos seus ideais e às suas características: o nascimento nobre, a riqueza, a bravura, a autenticidade e o facto de serem louros. Desprezam os outros como plebeus, vulgares, cobardes, inautênticos e morenos, e designam estas características como “mal”. Esta é a moral dos senhores. Os pobres e fracos, com ressentimentos relativamente ao poder dos ricos e aristocratas, erigem o seu próprio sistema contrastante de valores, uma moral de escravos ou de rebanho que premeia traços de carácter como a humildade, a simpatia e a benevolência, que beneficiam os vencidos. Nietzsche chama “transmutação dos valores” ao estabelecimento deste sistema de valores, que atribui aos judeus. Foram os judeus quem, em oposição à equação aristocrática (bem = aristocrático = belo = feliz = amado pelos deuses), ousaram, com uma lógica aterradora, sugerir a equação contrária e cravar de facto os dentes do mais profundo ódio (o ódio da fraqueza) nesta equação contrária, nomeadamente “só os desgraçados são bons; só os pobres, os fracos, os humildes são bons; os que sofrem, os necessitados, os doentes, os repugnantes são os únicos que são piedosos, os únicos que são abençoados, a salvação é só para eles — mas vocês, por outro lado, vocês os aristocratas, vocês os homens de poder, são para toda a eternidade o mal, o horrível, o avaro, o insaciável, o ímpio; também eternamente serão os não abençoados, os amaldiçoados, os condenados ao Inferno!” Nietzsche afirmou que a revolta dos escravos, começada por Jesus, conquistara então a vitória. O ódio judeu triunfou sob a máscara do evangelho cristão do amor. Até mesmo em Roma, em tempos o protótipo da virtude aristocrática, os homens se inclinaram diante de quatro judeus: Jesus, Pedro, Paulo e Maria. O homem moderno, em consequência, é um simples anão, que perdeu a vontade de ser verdadeiramente homem. A vulgaridade e a mediocridade tornaram-se norma: só raramente brilha ainda uma incarnação do ideal aristocrático, como em Napoleão. A oposição entre bem e mal é uma característica da moral dos escravos, agora dominante. Os aristocratas desprezavam o rebanho como mau, mas os escravos, com maior malevolência, condenaram os aristocratas não apenas como maus, mas como demoníacos. Devemos lutar contra a dominação da moral dos escravos: seguir em frente é transcender os limites do bem e do mal, e introduzir uma segunda transmutação dos valores. Se formos capazes de fazer isso, erguer-se-á, como síntese da tese e antítese do senhor e do escravo, o Super-Homem. O Super-homem será a mais elevada forma de vida. As pessoas começam a aperceber-se, diz Nietzsche, de que o Cristianismo é indigno de crença e de que Deus está morto. O conceito de Deus foi o maior obstáculo à plenitude da vida humana: agora somos livres para exprimir a nossa vontade de viver. Mas a nossa vontade de viver não deve ser tal que, como a de Schopenhauer, favoreça os fracos; deve ser vontade de poder. A vontade de poder é o segredo de toda a vida; todas as coisas vivas procuram descarregar a sua força, dar o maior alcance às suas capacidades. O conhecimento não é senão o instrumento do poder; não há verdade absoluta, apenas ficções que servem melhor ou pior para fortificar a vida. O prazer não é o objectivo da acção, mas apenas a consciência do exercício do poder. A maior realização do poder humano será a criação do Super-homem. A humanidade é simplesmente um estádio a caminho do Super-homem, que é o sentido da Terra. No entanto, o Super-homem não será alcançado pela evolução, mas sim por um exercício de vontade. “Que a vossa vontade diga “o Super¬ homem deve ser o sentido da Terra””. Diz Zaratustra: É claro que poderão criar o Super-homem! Talvez não vocês mesmos, meus irmãos! Mas poderão transformar-se vocês próprios em ancestrais e antepassados do Super¬ homem: e que seja essa a vossa melhor criação! A chegada do Super-homem será a perfeição do mundo; mas não será o fim da história. Porque Nietzsche defendia a doutrina do eterno retorno: a história é cíclica, e tudo o que aconteceu acontecerá outra vez, até ao mais pequeno pormenor. É difícil avaliar Nietzsche friamente: a deslealdade biliosa das suas críticas aos outros gera no leitor uma correspondente impaciência irritável para com os seus escritos. Poder-se-ia dizer de A Genealogia da Moral, a sua última obra, o que ele mesmo disse da sua obra inicial: “Está pobremente escrita, é desajeitada, embaraçosa. As imagens são ao mesmo tempo desvairadas e confusas. Falta-lhe precisão lógica e está tão segura da sua mensagem que prescinde de qualquer tipo de prova.” Nietzsche não oferece qualquer apresentação consistente do ponto de vista moral a partir do qual critica a moral convencional. A natureza do Super-homem é descrita de uma forma demasiado vaga para apresentar um padrão qualquer de avaliação das virtudes e vícios humanos. É difícil saber onde o próprio Nietzsche se situa numa questão como a da avaliação da crueldade. Ao denunciar a religião e o papel desempenhado pela culpa na moral dos escravos, Nietzsche descreve com eloquente injúria os sofrimentos amargos e as bárbaras torturas que os fanáticos e perseguidores infligiram. Mas, quando descreve os excessos das suas aristocráticas “bestas louras”, que talvez provenham de um horrível ataque de assassínio, ímpeto incendiário, violação e tortura, com bravata e equanimidade moral, como se se tratasse apenas da representação de alguma selvagem peça estudantil, perfeitamente convencidos de que os poetas teriam agora um vasto tema para cantar e celebrar, parece considerá-los um pecadilho, um escape necessário para os seus efervescentes espíritos elevados. Não seria filosófico considerar a insanidade final de Nietzsche como razão para desconsiderar a sua filosofia; mas, por outro lado, não é fácil sentir muita piedade por alguém que considerava a piedade a mais desprezível das emoções. Anthony Kenny
30.1.11
Nietzsche
Universidade de Oxford
Retirado de História Concisa da Filosofia Ocidental, de Anthony Kenny. Trad. Desidério Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figueiredo, Pedro Santos e Rui Cabral (Temas e Debates, 1999).
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