Voltaire Schilling
Muitas das celebrações e costumes de hoje vieram de tempos muito antigos, remotos, cujas raízes perdem-se em tempos pretéritos. Assim dá-se com a data de 25 de dezembro, o nosso Natal, celebrada no Oriente Médio bem antes do nascimento de Jesus. Todavia o costume de ter-se na sala da casa um pinheiro decorado com bolas, estrelas e luzes de enfeite, é relativamente recente. Supõe-se que se originou nos tempos da Reforma Protestante, no século 16, ocasião em que Martim Lutero, o monge alemão que se rebelara contra Roma, celebrou o Natal com um galho de pinheiro decorado por ele e seus filhos.
Martim LuteroFoto: Divulgação
O catolicismo, herdeiro de Roma
“Não quero que se recorra para defender o evangelho às armas e à carnificina. Foi pela palavra que o mundo foi vencido; foi pela palavra que a igreja foi salva; será também pala palavra que ela há de ser restabelecida.” Martim Lutero, 1520
O catolicismo herdou do império romano não só o latim mas o gosto pela magnificência pública, amando a arquitetura grandiosa, a estatuária e a pintura mural. Os imensos estádios dos romanos, como o Coliseu - templo erguido ao divertimento cruel -, foram substituídos pela catedrais gigantescas cuja torres queriam alcançar os céus, erigidas para o êxtase e a veneração de Deus. Enquanto o papa assumia as vezes do imperador, as procissões religiosas tendo o bispo à frente apagaram para sempre as marchas triunfais dos cônsules e dos generais romanos de outrora. O espaço das igrejas, das abadias e dos mosteiros, foi entregue a artistas de gênio para que os ocupassem com figuras de santos e santas, como os afrescos de Cimabue e Giotto na Basílica da Assis, ou com passagens bíblicas como a Santa Ceia de Leonardo da Vinci ou a Criação do Mundo que Miguel Ângelo pintou nos altos da Capela Sixtina. O catolicismo ganhava os seus conversos pelo catecismo sim mas também pela imponência dos seus cortejos e cerimônias litúrgicas , pela exuberância da sua arte pública, por colocar o talento de um Brunelleschi, de Bramante ou de Alberti a seu serviço, ação que fez da Itália o lugar com a maior concetração de obras-primas que se conhece no mundo todo.
A conversão de S.Paulo ( Lucas Cranach)Foto: Divulgação
A presença de Deus
Ao adentrar-se numa nave de uma igreja ou de uma catedral, inundada nos dias de sol pelos reflexos das inúmeras cores fortes dos vitrais, tendo ao fundo o som harmônico das vozes dos monges, ao sentir-se aquele êxtase, onde o construtor, o pintor e o cantor cristão deram o melhor de si para torná-la um recinto divino, como não acreditar que o próprio Deus ali não estava presente? Como o monge Martim Lutero ousou desafiar aquilo tudo? Pois foi exatamente aquela suntuosidade herdada do império pagão desaparecido que o teólogo alemão acreditou ser insuportável aos que diziam seguir Jesus Cristo marceneiro, um homem pobre martirizado na cruz.
De volta às origens cristãs
Para Lutero, o cristianismo fora uma notável revolução dos cordeiros, da gente humilde da antigüidade que se insurgira contra as injustiças do mundo pagão. Porém, com o passar do tempo, ainda que vitoriosos, eles viram-se usurpados pela casta sacerdotal católica, sucessora da burocracia imperial em decadência, fazendo com que o pároco substituísse o pretor romano. Concentrando toda a autoridade ao redor do trono papal, os altos eclesiastas esvaziaram as comunidades cristãs da sua primitiva autonomia, inclusive do direito de escolherem seus próprios pastores, como era o costume bem antes, nos primórdios, quando os cristãos elegiam bispos de alto nível como Agostinho e Ambrósio. Pior ainda, como ele expôs no Manifesto à Nobreza Alemã, de 24 de julho de 1520, . fizeram do papa “ Senhor do Mundo”, quando o próprio Jesus Cristo insistira que o seu reino era o Reino do Outro Mundo. Aquele riqueza artística que se concentrava em Roma, a monumental Igreja de São Pedro que se construía naquela momento, era fruto ilegítimo das arrecadações que o papado ordenara extrair da Alemanha em troca de favores a serem alcançados no mundo sobrenatural. Era com o ouro das Indulgências surripiado dos beatos alemães que os templos eram erguidos e mantinha-se o luxo em Roma.
Um Cristo modesto (tela de Lucas Cranach, 1472-1553)Foto: Divulgação
A Reforma e a música
Os cristãos, portanto, com a Reforma por ele liderada, deviam retomar o que era seu, reconquistando o seu império perdido. A Bíblia ele tratou de traduzir para o alemão afim de que os crentes pudessem por si mesmos, ao lê-la, saber qual era a vontade e os ensinamentos de Deus. Novos hinos, diferentes dos latinos, deviam ser compostos por gente do povo. Lutero lançou-se à obra. Rompido com Roma, casou-se e fez do seu lar uma celebração diária a Deus. Cada cristão deveria seguir caminho igual, compor seus próprios oratórios, tornar a sua casa uma capela, fazer da sua família um coral, rejubilando-se pela boa vida e pela liberdade alcançada. Por toda a Alemanha, desde então, surgiram músicos, organistas ou pianistas, consagrando a vida às partituras e aos instrumentos. É Lutero quem está por detrás de Bach, de Haendel, de Haydin e de Beethoven. Se a Reforma Protestante empobreceu as igrejas, esvaziando os templos de santos e de outras pinturas decorativas, deixando-os enxutos, sóbrios, enriqueceu o espaço privado e público com o intenso som harmônico da música e das cantorias, consagrando a Alemanha como a moderna pátria dos grandes compositores.
O lar, a capela do cristão (A família sagrada de L. Cranach)Foto: Divulgação
Nasce a árvore de Natal
Seguindo seus próprios conselhos, ele casou-se em junho de 1525 com Katharina von Bora, uma freira que, desertado do convento de Nimbsch, procurara refúgio em Wittemberg, tendo com ela seis filhos O lar para Lutero, o privado, passou a ser a verdadeiro templo do cristão reformado. Era ali que davam-se as Tischreden, as conversas ao redor da mesa, que faziam as vezes da comunhão. Mas faltava-lhe algo que pudesse contrapor à missa do galo dos católicos. Certa vez, numa daqueles terríveis noites geladas da Alemanha, nas proximidades do Natal, ao retornar para casa Lutero encantou-se com a paisagem. Olhando para o céu através de uns pinheiros que cercavam a trilha, viu-o intensamente estrelado, pareceu-lhe infinitos diamantes encimando a copa das árvores. Tomado pela beleza daquilo, decidiu arrancar um galho para levar para casa. Lá chegando, entusiasmado, colocou-o num vaso com terra e, chamando a esposa e os filhos, decorou-o com pequenas velas acesas afincadas nas pontas dos ramos. Em seguida, arrumou uns papeluchos coloridos para enfeitá-lo um pouco mais. Pronto, era aquilo que ele virá lá fora. Todos se afastaram e ficaram pasmos ao verem aquela árvore iluminada a quem parecia terem dado vida. Nascia assim a Árvore de Natal.
Fonte: Especial para Terra