16.9.09

Museu - Espaço de Identidade

Gisele Inês Baller *

O museu ocupa atualmente uma posição importante nas questões relacionadas com a cultura e o patrimônio. Acreditasse que este deixou de ser um lugar apenas de contemplação, de usufruto de uma elite, para se tornar também um espaço de interação de seus acervos com a comunidade e esta conseqüentemente com o seu patrimônio, a sua identidade e a sua memória.

Vivemos em um período em que vislumbramos a necessidade de buscar novos laços identitários ou de reforçar os já existentes, pois a globalização, momento este que vivemos, ao invés de homogeneizar a cultura e os hábitos, acaba por permitir e ser fundamental para o afloramento e o reforçamento de determinadas identidades, em especial, étnicas. O que podemos perceber e que se denota nas palavras de Michel Agier, ao invés da globalização incentivar e ser determinante num processo de homogeneização da cultura por permitir o acesso às mais variadas formas de conhecimento, ela estimula a procura e a necessidade de outros contextos identitários.

A mundialização coloca em questão, pelo acesso maciço aos transportes e às comunicações, as fronteiras territoriais locais e a relação entre lugares e identidades. Por outro, a circulação rápida das informações, das ideologias e das imagens acarreta dissociações entre lugares e culturas. Nesse quadro, os sentimentos de perda de identidade são compensados pela procura ou criação de novos contextos e retóricas identitárias (AGIER, 2001, p. 7).

Ao mesmo tempo em que o espaço global incentiva os processos de contato entre culturas e economias diversificadas, também contribui para o surgimento de diversas formas de localismo, e que muitas vezes resultam na construção de novas referências simbólicas ou mesmo da reelaboração de antigas. Nesse sentido, e de acordo com Stuart Hall, “as identidades nacionais e outras identidades locais ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização” (2005, p. 73).

A valorização dos referenciais locais, em oposição à globalização, cobre de importância a sustentação de identidades que possibilitem às pessoas a referência ao seu lugar e ao seu grupo de pertencimento.

Como podemos perceber, esse interesse pela identidade, e conseqüentemente pelo passado, se reflete na criação de lugares de memória, locais de rememoração, como monumentos, museus, arquivos, que buscam evitar o esquecimento e impor a noção de um tempo estável ao mundo atual. Esses lugares de memória,[1] enquanto representações de um passado, procuram enfatizar uma noção de continuidade e pertença.[2]

Pierre Nora caracteriza a memória como “vida, carregada por grupos vivos e, nesse sentido, em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, sendo ela um fenômeno atual, um elo vivido no eterno presente” (1993, p. 9).

Nesse sentido, o museu não pode mais ser visto como uma instituição estável, seu espaço se ampliou e se diversificou, o público se modificou tanto nos aspectos sociais como nos culturais. “O museu deixa de ser uma instituição, um local onde estão preservadas algumas coleções, para tornar-se uma atitude, a representação de um comportamento em meio à fragmentação do mundo contemporâneo” (PINHEIRO, 2004, p. 173).

No mundo atual, nada escapa à lógica da musealização. Nesse sentido, os museus parecem funcionar como caminhos que permitem uma negociação e articulação entre o passado e o presente. Segundo Zita Possamai (2002, p. 89), a relação de representação que se estabelece com um objeto material ou imagem presente e algo ausente e, por outro, as representações mentais elaboradas no sentido de enunciar e definir uma determinada realidade são processos mentais, pois em ambos, pode estar ausente uma relação de representação direta com um dado objeto ou imagem.

Quando, por exemplo, um conceito tenta definir o museu e o passado, pode não estar ancorado em uma relação de representação com um dado objeto, mas apenas em construções mentais de pressupostos que têm por estratégia determinar a percepção das coisas que estão em jogo. [...] analisar essas representações ajuda a compreender como a sociedade relaciona-se com o museu (POSSAMAI, 2002, p. 89).

É importante destacar que nenhum objeto é aparentemente criado com a função de se tornar peça de museu, mas no momento em que é escolhido por alguém, ou por um grupo de pessoas, devido ao seu caráter único, ou mesmo representante de uma coletividade, passa a se tornar algo musealizável. Isto é, sendo representativo de um recorte da realidade.

[...] uma coisa ou objeto só se transforma em bem cultural quando alguém (indivíduo ou coletividade) o diz e o valoriza de um modo diferenciado. [...] A constituição do bem cultural passa através de um processo de atribuição voluntária de valores (CHAGAS, 1995, p. 44).

Segundo Marília Xavier Cury, “os objetos selecionados para uma exposição são, na verdade, escolhidos (valorados) duas vezes: a primeira para integrar o acervo da instituição (ou in situ) e a segunda para associar-se a outros objetos – também escolhidos – para serem expostos ao público” (1999, p. 9).

É de grande importância ter em mente que, em grande parte das vezes, as feições, as características que um determinado museu possui, o seu acervo, isto é, os objetos musealizados e a sua conseqüente exposição ao público, são estabelecidos por uma determinada pessoa ou pequeno grupo, como por exemplo, em museus de pequeno porte, o diretor ou funcionário responsável pelo espaço. Muitas vezes, para entendermos a própria temática e a adoção de determinadas visões num museu é necessário ter conhecimento daqueles que selecionaram determinados aspectos em detrimento de outros. Esses elementos, que procuraram ser evidenciados por essa pessoa ou grupo de pessoas, acabam por se tornar a imagem que o visitante poderá ter desse espaço. Principalmente quando o processo de obtenção do acervo não possui uma política estabelecida para a sua aquisição, essa imagem pretendida poderá ser ou não assimilada pelo público.

Los objetos que forman parte de las colecciones de los museos están en ellos porque alguien en algún momento ha reconocido que tenían um valor, una relevancia o interés que los distinguia de otros. Pero las razones de esta relevancia no han sido fijas e inamovibles, sino que han evolucionado al compás de los cambios de intereses habidos en la sociedad (BLANCO, 1999, p. 13).

O objeto do museu é visto a partir desse momento como documento capaz de fazer referência a uma época histórica definida, a diferentes classes, a grupos, a gêneros ou a idades, isto é, ele passa a ser representativo de uma determinada realidade. Realidade essa construída pelo próprio homem e que é posta em seu confronto através dos objetos e das relações desses objetos dentro do museu.
O objeto museológico enquanto documento jamais pode ser visto como algo neutro, de acordo com Ulpiano Bezerra de Meneses,

[...] o artefato neutro, asséptico é ilusão, pelas múltiplas malhas de mediações internas e externas que o envolvem, no museu, desde os processos, sistemas e motivos de seleção (na coleta, nas diversificadas utilizações), passando pelas classificações, arranjos, combinações e disposições que tecem a exposição, até o caldo de cultura, as expectativas e valores dos visitantes e os referenciais dos meios de comunicação de massa, a doxa e os critérios epistemológicos na moda, sem esquecer aqueles das instituições que atuam na área (1994, p. 20).

Além de possuírem um valor histórico ou artístico, os objetos expostos no museu possuem outro papel de grande valor, o modo como eles se apresentam. Essa importância existe na relação desses com o público que visita esse espaço e que lhes confere um significado. E é justamente nesse processo de comunicação entre público - objeto - museu que se pode estabelecer uma relação com determinado fato, momento ou período. É através dela que o público entra em contato com o objeto e a partir desse contato constrói diferentes concepções a respeito de questões pessoais e coletivas, e que se referem a uma determinada realidade.

Segundo Cury, “a exposição é a ponta do iceberg que é o processo de musealização, é a parte que visualmente se manifesta para o público e a grande possibilidade de experiência poética através do patrimônio cultural” (1999, p. 18). Isso nos quer dizer que esses espaços não são somente fontes de informação, mas também, lugares e meios de comunicação que servem para estabelecer relações da comunidade com o patrimônio, a memória e a identidade.

Participar de um processo de apreciação é existir por um momento através da sensibilidade e valores do outro. Os autores criam através de quem eles são pessoal e culturalmente, e o fruidor responde através de quem ele é, pessoal e culturalmente. É um encontro profundo (RIZZI, 1998, p.220).

Nesse cenário, os museus ocupam um papel muito importante por poderem ser considerados como locais de visualização dessa memória e dessa identidade. Quando analisamos determinados tipos de museus e as temáticas por eles adotadas, podemos perceber que determinados aspectos são muito mais valorizados em detrimento de outros.

A escolha de determinado acervo é de extrema importância na qualificação e na utilização deste espaço pela comunidade que o freqüenta com certa assiduidade ou aqueles que o visitam esporadicamente. No caso dos museus que se referem à imigração e colonização alemã para o sul do país, em especial ao Rio Grande do Sul, podemos perceber certa constância nos seus acervos. Percebemos que esses espaços buscam reforçar determinados aspectos relacionados com esse grupo em termos étnicos. De especial destaque é a valorização do trabalho, sempre compreendida como uma característica dessa identidade. No caso teuto-brasileiro[3], existem alguns critérios determinantes de pertencimento ou não a esse grupo: o uso da língua, a preservação de costumes (comportamento religioso, concepção de trabalho), a vida associativa (sociedades de tiro, de cantores, ginásticas), o papel preponderante da escola particular alemã e a própria origem comum. Esses elementos costumam estar bastante evidenciados nesses espaços, onde encontramos objetos e demais fontes que buscam reforçar essa visão que é de extrema importância para esse grupo, demarcando também dessa forma as diferenças com o “outro”, aspecto este fundamental nas questões identitárias. Essa imagem busca ser mostrada ao outro evidenciando obviamente as suas características positivas em detrimento de outros aspectos que poderiam se configurar também fundamentais na caracterização desses grupos.

Nesse sentido, não podemos negar o papel que o museu ocupa hoje, tanto como local de reforço ou tentativa de reforço de identidades, mas principalmente como espaço de análise dessas relações e que são fundamentais para o estudo de questões identitárias e étnicas.


Referências Bibliográficas
AGIER, Michel. Distúrbios identitários em tempos de globalização. Mana, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 7-33, out. 2001.
BLANCO, Ángela García. La exposición un médio de comunicación. Madri: Akal ediciones, 1999.
CHAGAS, Mário. Museália. Rio de Janeiro: JC, 1995.
CURY, Marília Xavier. Exposição: Análise Museológica do processo de concepção, montagem e avaliação. São Paulo: USP, 1999.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista. Nova Série, São Paulo, v. 2, jan./dez. 1994.
NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993.
PINHEIRO, Marcos José. Museu, Memória e Esquecimento. Rio de Janeiro: E. papers, 2004.
POSSAMAI, Zita Rosane. Nos bastidores do museu: patrimônio e passado da cidade de Porto Alegre. Porto Alegre: Est Edições, 2002.
RIZZI, Maria Christina de Souza Lima. Além do artefato: apreciação em museus e exposições. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo: MAE/USP, n. 8, 1998.

[1] Pierre Nora destaca de que há locais de memória porque não há mais meios de memória (1993, p.7). “Se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares. Não haveria lugares porque não haveria memória transportada pela história” (1993, p. 8).
[2] Esse movimento da sociedade é considerado por Pierre Nora como um exemplo da “aceleração da história”, fenômeno vivido atualmente em que a possível ruptura com o passado em função da mundialização, da massificação, criou a necessidade de elaborar arquivos, registrar celebrações, isto é, criar lugares da memória (NORA, 1993).
[3] Considera-se teuto-brasileiro o descendente de imigrantes alemães, nascido no Brasil.

* Licenciada em História -UFRGS

Bacharel em História – UFRGS

Especialista em Patrimônio Cultural e Museologia – UFRGS

Mestranda em História - UFRGS

Fonte:Revista MUSEU - cultura levada a sério