Numa eleição dos maiores galãs ou playboys da História, seguramente o rei da Inglaterra e fundador da Igreja Anglicana estaria entre os dez mais. Aliás, foi por causa de sua ânsia por novas esposas (ou esposas novas) que ele resolveu criar sua própria religião, como um ramo do Cristianismo no momento em que a Igreja Católica não quis aceitar seu divórcio da primeira nem o casamento com a segunda das seis esposas oficiais que ele teve.Henrique 8.°
A conturbada vida amorosa de Henrique 8.° rendeu não só escândalos mas também muito sangue derramado, com a decapitação de duas de suas ex-esposas, que ele acusou de adúlteras, e a morte de mais de setenta mil católicos, entre eles monges e intelectuais, que se rebelaram contra a criação do anglicanismo como religião oficial da Inglaterra.
O mais incrível é que até ele se apaixonar por Ana Bolena, a dama de companhia de sua primeira esposa, Henrique 8.° era o monarca predileto do papa, que inclusive concedeu a ele o título de "Defensor da Fé". Católico praticante e fervoroso, ele era um dos monarcas que mais se alinhava ao lado do Vaticano na luta contra a Reforma Protestante, então em curso na Europa e comandada por Martinho Lutero.
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O mais irônico é que aparentemente foi justamente sua fé nas escrituras cristãs que contribuiu decisivamente para ele questionar seu destino e se rebelar contra a decisão do papa de não aceitar sua separação da primeira esposa. Como ao assumir o trono aos 18 anos de idade, ele casou-se com a viúva de seu irmão e ela não conseguiu lhe dar um filho, Henrique 8.° acreditava que havia pecado e ofendido seriamente a Deus com aquele casamento e por isso ele nunca teria um herdeiro.
Apesar de ter boa parte de sua fama vinda de sua vida amorosa e da crueldade contra aqueles que considerava traidores, os atos de Henrique 8.° em seus quase 38 anos de reinado ajudaram a preparar a Inglaterra para ser a potência imperial que viria a ser nos séculos seguintes. O rompimento com a Igreja Católica permitiu que a aristocracia inglesa assumisse a parte do poder político e econômico na Inglaterra que até então estava nas mãos do papa. O rei investiu também na formação de uma Marinha Real que imporia seu poder militar em várias partes do mundo e também numa organização administrativa do governo e em valores humanistas graças a influência do filósofo Thomas More, chanceler da Coroa que viria a ser morto por defender sua fé católica.
Certa vez, o embaixador Francês em Londres escreveu que o rei Henrique 8.° era um homem maravilhoso, cercado por pessoas maravilhosas, mas era também uma "velha raposa". Na próxima página, descubra como foi a auspiciosa ascensão de Henrique 8.° ao trono e seus primeiros anos de reinado.
O anglicanismo, o ramo do Cristianismo criada no século 16 pelo até então fervoroso católico Henrique 8.°, tornou-se na época uma das mais importantes conquistas da Reforma Protestante. O rei da Inglaterra, que havia recebido do papa poucos anos antes o título de "Defensor da Fé", pela dedicação do monarca às causas da Igreja Católica, misturou na sua nova religião preceitos do catolicismo e do protestantismo. O Livro da Oração Comum, uma compilação de liturgias criado originalmente em 1549, representa a independência da Igreja da Inglaterra em relação ao Vaticano e é a principal marca da identidade anglicana.
Henrique 8.°: o jovem rei saudado pelos humanistas
© iStockphoto.com /Georgios Kollidas Para os biógrafos, Henrique 8.° seria quando jovem bem mais bonito do que a imagem que aparece em seus retratos |
Quando Henrique tinha dez anos de idade, seu irmão Arthur, que tinha o título de Príncipe de Gales e era cinco anos mais velho do que ele, casou-se com a princesa Catarina de Aragão, filha dos reis espanhóis. No entanto, apenas alguns meses após o casamento, Arthur adoeceu e morreu. Henrique passou então a ser o primeiro na linha sucessória ao trono inglês. Mas havia um problema, o que fazer com a jovem viúva Catarina, que não voltou para a Estanha e permaneceu na corte devido a um imbróglio envolvendo dotes nupciais e as rendas previstos no contrato de casamento dela com Arthur. A solução surgiu em 1509 com a ascensão de Henrique ao trono inglês, após a morte de seu pai. Ele casou-se com a viúva do irmão - após uma autorização vinda do papa e a promessa dela de que o casamento com Arthur não havia sido "consumado".
A coroação de Henrique 8.° foi saudada por vários humanistas, escritores e intelectuais, como os filósofos Erasmo de Roterdã e Thomas More que viram naquele jovem nobre que era escritor, músico, esportista, caçador e poeta, um monarca perfeito para levar a Inglaterra à Renascença. Apesar de sua simpatia pelos ideais renascentistas, Henrique 8.° tinha como prioridade transformar a Inglaterra numa potência, engajando-a em aventuras militares na Europa. Aproveitando-se das disputas principalmente entre Espanha e França, e as ambições desta última sobre os territórios italianos, Henrique 8.° uniu-se ao seu sogro, o rei espanhol Fernando 2.° de Aragão, e ao papa contra os franceses. As vitórias militares aumentaram sua popularidade ao mesmo tempo em que descobriu no amigo Thomas Wolsey, arcebispo de York, um talentoso chanceler para seu governo. Católico fervoroso, Henrique 8.° apoiava as pretensões do amigo de tornar-se papa o que aumentaria o poder e a influência da Inglaterra no mundo.
Enquanto Wolsey ajudava a tocar o país e a aumentar o poderio inglês, o rei começava a se incomodar intensamente com um problema doméstico: sua esposa, mais velha seis anos do que ele, não conseguia lhe dar um herdeiro homem. O único rebento que sobreviveu do casamento dos dois foi uma menina, Maria, que se tornaria a rainha Maria 1.ª da Inglaterra, entre 1553 e 1558. No campo político, as expectativas com o governo mantinham-se altas, principalmente quando o rei em 1517 adotou como um de seus conselheiros o filósofo humanista Thomas More, uma das mentes mais excepcionais daquela época. Mas essa esperança logo começou a desvanecer à medida que Henrique 8.° pouca atenção dava aos conselhos de More.
No começo dos anos 1520, a dedicação do rei à Igreja Católica, atestada pela sua fervorosa fé desde criança e em seus atos políticos, inclusive na veemente defesa que fez dos sete sacramentos do catolicismo, principalmente o do matrimônio, contra a Reforma Protestante comandada por Martinho Lutero, o fez ser visto como um de seus maiores aliados. Em reconhecimento, o papa deu a ele o título de "Defensor da Fé".
Nessa mesma época, a administração de Wolsey já não ia bem e começou a gerar descontentamentos entre ricos e pobres na Inglaterra e a recém-conquistada influência inglesa na Europa começou a declinar. Problemas externos e internos levaram a uma perda de popularidade do regime, algo inaceitável para alguém com a personalidade de Henrique 8.°, tão inaceitável quanto o fato dele não ter ainda um sucessor homem. Mas, o mais surpreendente foi que, ao tentar resolver seu problema conjugal, ele desencadeou um processo que iria ter enorme impacto na História, como veremos na próxima página.
Henrique 8.° não titubeava em descartar fiéis colaboradores, amigos ou parentes quando estes, na opinião dele, pisavam na bola. Só que sua forma de livrar-se deles era um tanto radical: mandava decepar suas cabeças. Entre aqueles que ele enviou para a Torre de Londres para ter um fim cruel estão sua segunda esposa, Ana Bolena, a quem Henrique acusou de praticar incesto, adultério e magia negra. Catarina Howard, sua quinta esposa, também foi acusada de infidelidade - fruto provavelmente da paranóia que já dominava a mente do rei - e acabou sem a cabeça. O bom amigo e que o ajudou nos primeiros anos de governo, o cardeal Thomas Wolsey, também não teve sorte. Ao fracassar na tentativa de convencer o papa a anular o casamento de Henrique 8.° com Catarina de Aragão e responsável por medidas que levaram a crises no governo, ele primeiro perdeu quase todos os seus títulos e cargos e depois foi preso acusado de traição, mas acabou morrendo na prisão antes que algum carrasco separasse sua cabeça do corpo. Nem mesmo o filósofo e teólogo católico Thomas More escapou. Ao não comparecer ao casamento do rei com Ana Bolena, num sinal de desaprovação pelo ato, e ao se negar a declarar sua fé na Igreja Anglicana, a nova religião inventada por Henrique 8.°, More foi condenado à morte por enforcamento e esquartejamento. A execução de um dos mais brilhantes homens de seu tempo chocou a Europa e foi repudiada mesmo em terras protestantes. Thomas Cromwell, que ficou no lugar ocupado por More e Wolsey e ajudou o rei em seu plano de fundar a Igreja Anglicana e tornar o governo inglês mais rico e poderoso, também pagou caro por ter falhado. Uma delas foi ter errado ao escolher a feia Ana de Cléves, dentro de uma estratégia para obter alianças políticas para o país, para ser a quarta esposa de Henrique 8.° e, também por conta disso, acabou sem a cabeça.
Henrique 8.°: uma revolução por causa das mulheres
Durante os anos 1520, após mais de uma década de casamento com Catarina Aragão e sem nenhum herdeiro varão vivo para no futuro receber dele a coroa da Inglaterra, o fervoroso católico Henrique 8.° estava convencido de que tinha ofendido Deus. Só isso explicaria aquela situação. Ao casar-se com a viúva do irmão, ele teria cometido o maior dos pecados e Deus o estaria punindo não lhe deixando nenhum filho homem como herdeiro.© iStockphoto.com /Duncan1890 Rei Henrique 8.° recebe o primeiro-ministro Thomas Cromwell |
A maneira mais católica de fazer isso seria convencer o papa de que seu casamento com Catarina teria ocorrido "contra as leis de Deus", afinal ela era viúva de seu irmão, e que por conta disso deveria ser anulado. Mas o papa Clemente 7.° recusou-se a anular o casamento do rei da Inglaterra com Catarina, a tia de ninguém menos do que Carlos 5.°, então imperador do Sacro Império Romano. Além disso, a anulação significaria também declarar ilegal um ato papal anterior que justamente tinha permitido o casamento de Henrique com a viúva de seu irmão.
Henrique 8.° viveu nesse dilema de acatar as ordens religiosas de Roma e de tentar fazer o papa mudar de ideia ou de tornar a encantadora Ana Bolena oficialmente rainha durante três anos. Quando resolveu pôr fim ao dilema, sua decisão, que parecia impulsionada apenas pelo sua esperança de ter um herdeiro homem e pelo poder de sedução de Bolena, revelou-se uma das maiores revoluções na História com consequências que perduram por séculos. Durante o ano de 1532, auxiliado por Thomas Cromwell, seu novo chanceler, Henrique 8.° decidiu separar a igreja inglesa da Igreja Católica. Surgia a Igreja Anglicana que tornava-se uma espécie de departamento espiritual do governo já que o rei era seu chefe supremo, ou seja, o representante de Deus na terra para os anglicanos.
No começo de 1533, ele finalmente fez de Ana Bolena sua esposa oficial, seu casamento com Catarina de Aragão foi tornado nulo e ele acabou excomungado pelo papa. Em setembro daquele mesmo ano nasceria Elizabeth - Ana Bolena também fracassou na tarefa de dar um filho homem ao rei -, que viria a ser uma das mais importantes rainhas da Inglaterra, reinando de 1558 a 1603, no que ficou conhecido como "Idade de Ouro" do império britânico.
Enquanto acontecia a transferência das propriedades e do poder político da Igreja Católica na Inglaterra para os ingleses, com impactos econômicos e sociais imensos, o reinado de Henrique 8.° tornou-se mais poderoso graças às novas riquezas obtidas, à habilidade do rei em lidar com o parlamento e à atuação de Thomas Cromwell à frente do governo. As resistências dos católicos à mudança resultaram em mais de 70 mil mortes.
O casamento com Ana também não tinha produzido o resultado esperado e ele logo cansou-se dela. Três anos após casar-se com o rei, ela foi acusada de adultério, incesto e bruxaria e foi executada. Sem perder muito tempo, Henrique casou-se com Jane Seymour, que havia recusado ser sua amante e provavelmente, por conta disso, acelerou a queda de Bolena. Seymour finalmente deu o que o rei tanto queria: um herdeiro homem. Ela, no entanto, morreu doze dias após o nascimento do filho, que se tornaria o jovem monarca Eduardo VI.
Sua quarta esposa foi arranjada por seu poderoso ministro Thomas Cromwell. A união de Henrique 8.° com Ana de Cléves, irmã do influente duque de Cléves, fazia parte da estratégia de Cromwell de consolidar o poder político da Inglaterra na Europa. Mas Henrique a odiou à primeira vista, possivelmente por ela ser feia e logo partiu em busca de uma mulher jovem e bela. Não precisou ir muito longe, já que se apaixonou por Catarina Howard, dama de companhia da sua recém-dispensada quarta esposa. Àquela altura, Henrique 8.° já sofria um declínio mental e físico que lhe causavam depressão, melancolia e provocavam tendências paranoicas. Menos de dois anos após o casamento, Howard foi acusada pelo rei de adúltera e teve sua cabeça decepada na Torre de Londres. A tranquila e obediente Catarina Parr foi a sexta e última esposa de Henrique 8.° e viveram juntos até a morte dele em 1547, decorrente de problemas de saúde causados pela obesidade e, segundo algumas biografias, também por complicações provocadas pela sífilis.
Um dos mais polêmicos monarcas de todos os tempos, Henrique 8.° tem sido visto ora como uma mistura de bon vivant egocêntrico e monstro sanguinário, ora como um líder visionário. As pesquisas históricas, no entanto, mostram que ele não pertence a nenhum desses extremos estereotipados. Elas mostram que seu principal legado foi iniciar vários processos que levariam a Inglaterra a tornar-se um império, com a reforma religiosa, algumas melhorias econômicas e sociais, o início de uma força naval e, principalmente, a construção de uma inédita consciência de nação entre seus súditos.
BRITANNICA ENCYCLOPEDIA ONLINE
DOWLING, Maria. Humanism in the age of Henry VIII. New Hampshire: Croom Helm Ltd., 1986.
SCARISBRICK, J. J. Henry VIII. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1968.