19.1.11

Ilha de Santa Catarina, séculos XVIII e XIX - Artistas viajantes e o estranhamento da paisagem


Sandra Makowiecky

MAKOWIECKY, Sandra. Ilha de Santa Catarina, séculos XVIII e XIX - Artistas viajantes e o estranhamento da paisagem. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 4, out./dez. 2010. Disponível em: .

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I. Viagens e caminhadas como formulação de um discurso simbólico

Desde o humanismo, viajar é a concepção moderna da vida como peregrinação do viver. No estudo das cidades, torna-se imprescindível falar sobre os viajantes e do olhar do estrangeiro, pois este olhar é diferente do que habita a cidade, pelo que se pode depreender da literatura que aborda este tema.

A história dos povos está atravessada pela viagem, como realidade ou metáfora. Todas as formas de sociedade, compreendendo tribos e clãs, nações e nacionalidades, colônias e impérios, trabalham e retrabalham a viagem, seja como modo de descobrir o “outro”, seja como modo de descobrir a si mesmo.

Podendo ser filosófica, artística, ou científica, a viagem, em geral, compreende várias significações e conotações, simultâneas, complementares ou mesmo contraditórias. São muitas as formas de viagens reais ou imaginárias, demarcando momentos ou épocas mais ou menos notáveis da vida de indivíduos, famílias, grupos, coletividades, povos, tribos, clãs, nações, nacionalidades, culturas e civilizações. Toda viagem se destina a ultrapassar fronteiras, que pode ser através de dissolvê-las ou recriá-las, e faz isto ao mesmo tempo em que demarca diferenças, singularidades ou alteridades, demarca semelhanças, continuidades, ressonâncias. Para Ianni (2000, p.14), a viagem, como realidade ou metáfora , está sempre presente em muito do que é o imaginário das ciências sociais. Todo cientista social realiza algum tipo de viagem quando estuda, ensina ou pesquisa. Por toda a história de cada uma e de todas as ciências sociais, há sempre alguma contribuição do relato sobre outras terras, povos, formas de sociabilidade, culturas e civilizações. Por toda a história das ciências sociais, os principais autores têm sido viajantes ocasionais ou permanentes.

A vida só percebe o quadro da aventura e da viagem, quando estas são imanentes ao viver. É o resultado da aprendizagem do cotidiano. É uma busca do conhecimento, uma forma de ação e movimento. A viagem transforma, corrompe os costumes e rompe a certeza. A experiência da viagem coincide com a experiência da perda de identidade.

A incerteza e a viagem se forçam mutuamente. Épocas de identidade ameaçada forjam grandes viajantes; e os grandes viajantes sempre sorriem com a dúvida no olhar. A incerteza em relação ao mundo onde a ordem teológica ruiu, leva o ilustrado a percorrê-lo e, assim fazendo, a questioná-lo inteiramente (SUBIRATS, 1986, p.69).

Em praticamente todos os campos de conhecimento, há sempre aqueles que realizam sua reflexão passeando o olhar por outros lugares e outras épocas, ou mergulhando-o no mesmo lugar, rebuscando épocas. A inquietação e a interrogação caminham juntas, sempre correndo o risco de encontrar o óbvio ou o insólito, o novo ou o fascinante, o outro ou o eu (IANNI, 2000). Vejamos o poema de Konstantino Kavafis (apud SUBIRATS, 1986, p. 69), Viagem a Ítaca:

Se partires para um dia rumo a Ítaca[1]

faz votos de que o caminho seja longo,

repleto de aventuras, repleto de saber.

[...]

Mas não apresses a viagem nunca.

Melhor muitos anos levares de jornada

e fundeares na ilha velho enfim,

rico de quanto ganhaste no caminho

sem esperar riqueza que Ítaca te desse.

Uma bela viagem deu-te Ítaca.

Sem ela não te ponhas a caminho.

Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.

Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,

e agora sabes o que significam Ítacas.

A vivência social e histórica do burguês coincide com a viagem a Ítaca; ele se insere na e pela razão que norteia o processo de produção social, pois o indivíduo moderno identifica-se subjetivamente com sua capacidade de dominação, transformação e subordinação da natureza. Como a produção social é determinada pelo acúmulo de saberes e poderes, de capacidades técnicas, de equipamentos, organizações e domínios, assim é determinada sua estrutura espiritual. “A viagem errante de Tróia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e que só vem a se formar na consciência de si” (ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. apud IANNI, 2000, p.26).

O que é afinal, uma viagem? Que outros olhares ela propicia? As viagens, os contatos com outras culturas ampliam a visão de mundo e forjam homens capazes de provocar mudanças. Mudar os hábitos de um povo não é tarefa fácil. Com frequência, o tema da viagem, sob as mais diversas modalidades, está presente na literatura, assim como em outras linguagens artísticas.

Nessa busca do Brasil moderno, as raízes, os retratos e as viagens de ‘descoberta’ marcam também uma perspectiva cosmopolita, com características do moderno. Daí, a temática sobre as viagens e a figura do viajante exercer papel central nesse processo de renovação formal e temática, seja na literatura, nas artes plásticas, na música e no pensamento social brasileiro. Na procura do nacional, as obras evidenciam um Brasil enraizado no colonial (PIAZZA, 1999, p. 45).

O filósofo Michel de Certeau (1994) dá uma conotação muito apropriada ao ato de caminhar, que relacionamos com a viagem. Tanto a caminhada como as viagens seriam como a formulação de um discurso simbólico. A experiência do corpo no espaço, para ele, articula outros tempos, resgata memórias que acompanham os ritmos dos passos e, portanto, o imaginário atualiza-se no percurso urbano. É neste momento que se dá o ritmo de leitura desse texto simbólico de conteúdo individual e também coletivo. No limite, as caminhadas, como as viagens, são os substitutos das lendas que não conseguimos mais narrar, diz ele. Como andar e viajar são “espaços de enunciação”, realiza-se a transformação do lugar abstrato em espaço que acolhe os sonhos, as lembranças, ou seja, os dispositivos simbólicos. Em outras palavras, o espaço para Certeau é o lugar praticado, o lugar vivido.

Rousseau também se deteve a analisar o passeio, que para ele, são elos que organizam as vistas resultantes das paradas momentâneas do caminho. Como um caminhante solitário, lança luzes sobre um possível sentido existencial vivido nas imagens do caminho. Este texto de Rousseau é bem elucidativo: “Nossa existência nada mais é do que uma sucessão de momentos percebidos através dos sentidos” (ROUSSEAU, 1986, p. 294).

Diz Sansot que “a paisagem é uma oferta do ser sensível, que se situa a meio caminho da esfera da presença e da representação” (SANSOT apud BELLUZZO, 2000, p. 20) Fica claro, portanto, que existem muitos olhares e que possíveis aparências passam pelo observador. É desta natureza o estranhamento da viagem: nunca é relativo a um outro, mas sempre relativo ao próprio viajante; afasta-o de si mesmo, deflagra-se na extensão circunscrita de sua frágil familiaridade, no interior dele próprio.

Muitos artistas confirmam o proveito de processos inerentes à condição do viajante ao estranhamento da paisagem. Por meio da viagem os europeus que nos visitaram, desenvolveram métodos de seleção, de vistas singulares, escolhendo dentre tantas visões possíveis, a que podia ser destacada. A condição da viagem equivale a um olhar desacostumado ao meio, predisposto a maior visibilidade que a do habitante.

O gosto pelo inusitado, desconhecido, foi um convite à aventura e à surpresa da viagem e é inseparável da prática do viajante. A viagem mostra-se um método de tirar o sujeito de seu meio e de experimentar uma outra visão. Com a viagem deixa-se a rotina e a identidade para trás, para redescobri-las em outra cultura, em meio ao estranhamento que a nova cultura causa em contraste com a própria cultura do viajante. A viagem treina um conhecimento por pontos de vista alternados, desenvolve a capacidade de entrar e sair do assunto, em suma, condiz com a visão de múltiplos pontos de vista, individual e cultural.

'O mundo todo é nossa casa’ não quer dizer que tudo seja igual; quer dizer que todos nos sentimos estrangeiros em relação a alguma coisa e a alguém. Sei que não digo nada de novo, mas talvez valha a pena refletir novamente sobre a fecundidade intelectual dessa condição (GINSBURG, 2001, p.11).

Sem sair do lugar, pode-se viajar longe, no tempo e no espaço, na memória e na história, no pretérito e no futuro, na realidade e na utopia. À medida que viaja, o viajante se desenraíza, solta, liberta-se. “No curso da viagem há sempre alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte não é nunca o mesmo que regressa” (IANNI, 2000, p.31).

Entre o olhar muito afastado, que se engana, e o olhar muito próximo, que se acostuma até nada mais enxergar, qual é a distância certa? A distância aqui considerada é mental e psicológica. Que recuo intelectual e efetivo se deve tomar para que um país, em seu conjunto e sua originalidade, nos apareça? Teriam mesmo os ”viajantes” de antigamente boas chances de manter, com relação ao Brasil, este recuo na medida certa? E que medida certa seria essa? Não há como precisar. Resta levantar questões que são inerentes a essa análise.

Esse é o ponto de partida de Olhos de Madeira, do historiador Carlo Ginzburg (2000). Mais indicativo que o título é o subtítulo: Nove reflexões sobre a distância. No caso de Montaigne, a distância se refere à capacidade de alheamento, de estranhamento, a fim de impedir que os hábitos e os automatismos cotidianos cancelem nossa percepção. Para ele, o estranhamento é um antídoto eficaz contra um risco a que todos nós estamos expostos: o de banalizar a realidade. Olhar uma pintura implica variar os pontos de vista, regular a distância, fazer esforços de “focalização”. Saber o que se quer olhar. A esse propósito nos diz Galard:

O que vem a ser um panorama, no século XIX , a não ser uma tentativa de abarcar um lugar por inteiro, ou antes[...] a tentativa de se ver rodeado pela representação de um lugar , de modo a entrar , por assim dizer,num mundo idealizado?... O conjunto de uma cidade, de uma região e, a fortiori, de um país, sempre foge à vista. Perdoem-nos este truísmo: O todo nunca é perceptível (in AGUILLAR, 2000, p. 39).

O fenômeno crucial da velocidade, e da velocidade crescente, requer provavelmente uma reformulação dos princípios mesmos do pensamento estético, a começar por uma ampliação de nossas concepções de paisagem para além dos ideais bucólicos, dos sonhos de lentidão e das tranquilidades insulares, que irão predominar na forma de conceber a paisagem até meados do século XX.

O público mais interessado e interessante para a obra dos artistas viajantes não é aquele a quem originalmente se destinavam suas imagens, mas sim um outro que hoje, no próprio país que representaram, quer enxergar um reflexo distante no qual espera reconhecer-se um pouco no passado e no presente. Isso justifica o interesse que temos pelas obras dos viajantes estrangeiros, pois mesmo que mais ou menos distorcida, esta imagem foi sempre incompleta, e só se firmou ao atender à avidez do público europeu pelo exótico e o inesperado.

Portanto, ao estar aberto para deixar penetrar o tempo, o mundo do viajante poderá então, rearranjar internamente seus fundamentos a cada nova experiência significativa, a cada novo deslocamento. Viajar não é então, um simples deslocamento de corpos, mas, principalmente, uma aventura do espírito.

II. Século XVIII e Século XIX - viajantes estrangeiros

Foram os artistas viajantes que produziram as primeiras imagens do Brasil. Estiveram sempre atentos às coisas da terra e da gente que visitavam. Sua contribuição na representação e difusão da imagem do país parte dos séculos XV e XVI, chegando ao século XIX, que assiste à visita de muitos pintores que integraram expedições artísticas e científicas que percorreram o território brasileiro.

Desde o descobrimento, o Brasil sempre exerceu grande fascínio sobre o olhar do estrangeiro. Os relatos de viagens a terras longínquas e desconhecidas, habitadas por índios canibais e animais fantásticos, tendo como fundo a paisagem exuberante, enchiam a imaginação dos europeus com imagens completamente diferentes das do seu universo conhecido. O estudo da iconografia e da literatura produzidas pelos viajantes estrangeiros no decorrer do século XV ao XIX revela a mudança de enfoque do olhar sobre nossa gente, fauna e flora, constituindo uma revisão da imagem do país.

Acredita-se que a contribuição dos artistas é inegável e diz respeito não apenas à história da arte, mas também à observação dos pintores europeus do século XVII ao XIX, que trouxeram o princípio da construção de paisagens. A paisagem, se assim podemos dizer, não existe na natureza. É uma criação cultural, que o consenso de estudiosos anota como sendo do século XV, quando a pintura começou a laicizar tais elementos como árvores, rochedos, rios, a desprendê-los da cena sagrada, a recuá-los, afastá-los em perspectiva e a organizá-los num conjunto autônomo. Em cenas pintadas, a janela aberta para o exterior é um achado crucial na invenção da paisagem ocidental. Uma cena, para virar paisagem, precisa de um recuo, isto é, de uma distância do olhar.

Ver este país como paisagem obriga a dirigir um olhar sempre distante sobre o Brasil. A paisagem é um dado da natureza. A chamada “estética” é o produto desse olhar distante. Carlos Drummond de Andrade aponta com tanta exatidão quanto concisão para esta metamorfose: “Esta paisagem? Não existe. Existe espaço vacante, a semear de paisagem retrospectiva” (apud GALARD in AGUILLAR, 2000, p.54). Já para Jorge Luís Borges “A paisagem [...] não é nada mesmo. A palavra paisagem é a decoração verbal que imprimimos ao visual que nos rodeia [...] a paisagem é uma mentira” (apud GALARD in AGUILLAR, 2000, 54), pois o artista já tem um repertório convencional das formas básicas que permanece indispensável para ele e serve de ponto de partida, como foco de organização.

De modo geral, consideram-se como artistas ditos “viajantes” apenas aqueles que já chegaram ao país com uma formação profissional adquirida no velho mundo, excluindo-se os inúmeros amadores que deixaram imagens de interesse documental, mas pouco valor artístico. E mesmo que artistas mais talentosos tivessem podido aproveitar o estímulo da paisagem para enriquecer ou modificar convenções, na realidade só parecem ter desafiado timidamente os preceitos europeus. Sendo assim, nossa natureza deixou de propiciar o surgimento de inovações, e apenas forneceu aos artistas estrangeiros a oportunidade óbvia de apropriação de novos temas. Para Pedro Lago Corrêa, se lembrarmos a frase de Gombrich, de que ”o artista não pinta o que vê, mas o que aprende a pintar” (in AGUILLAR, 2000, p.66), são três as grandes orientações podem ser identificadas guiando as preocupações das primeiras levas de artistas estrangeiros que visitaram o Brasil, claramente perceptíveis, e definíveis segundo a nacionalidade dos artistas[2]

Já o século XIX é o mais rico em pintores viajantes, que começaram a chegar em grande número poucos anos depois da vinda da família real em 1808, atraídos pelos temas curiosos e estimulantes que esperavam descobrir nos trópicos. Desde a abertura dos portos e com a vinda da família real portuguesa, cria-se a possibilidade de as expedições científicas penetrarem no interior do Brasil, como já faziam as expedições promovidas por Portugal no século XVIII, tendo início um novo ciclo de explorações.

III. A paisagem e os viajantes

A viagem pitoresca pelo Brasil realizada por artistas amadores na primeira metade do século XIX é uma transposição de práticas européias e de modelos anteriores ao aparecimento da estética no século XVIII, na qual o sentimento assume a função de juízo estético. A beleza existe na natureza e é objeto dos sentidos, conhecida e julgada pelo intelecto. Há, portanto, que se enfatizar a concepção subjetiva e empírica da sensação e do sentimento.

O artista que se alia à estética do pitoresco é o fruidor do espetáculo oferecido pela natureza e não construtor de paisagens. Neste caso estamos no domínio de uma estética da recepção. Para esses artistas-viajantes, as qualidades da natureza e da arte estão postas em mesmo plano. “O que agrada na natureza é reconhecido pela cultura artística. O artista não parte da beleza, mas da faculdade subjetiva que o faz sentir e gozar o mundo” (BELLUZZO, 2000, p.23).

De modo geral, as obras se dividem entre o plano estético e o plano científico, ou seja, revelam-se comprometidas mais com o pitoresco ou com modelos naturalistas e no segundo caso, supõem uma observação direta das verdades do mundo, conforme entendem ser a descrição da natureza feita pelo cientista.

Os cadernos de campo eram formas mais gerais de registro que o artista usava para colecionar impressões pessoais diante da cena, que podia ser urbana, natural, social. Normalmente desenhos e aquarelas preliminares, que poderiam ser destinados a versões posteriores, combinados e encadernados em novos conjuntos. Muitas vezes eram registros mais precários que acabavam por serem detalhados pelos gravadores. Entretanto, grande parte dessa produção em desenhos permaneceu em sua condição de esboço, e revelam o frescor dos gestos imediatos, mais de acordo com a percepção de nossos dias. A partir da segunda metade do século XVIII, o “natural” aparece como uma qualidade que o sujeito confere ao “objeto” representado. Em nome desta naturalidade, os artistas passam a evitar procedimentos associativos, dando primazia à aparência paisagística, remetendo ao fenômeno da visão da paisagem. A primeira impressão que um estrangeiro tem de um país equivale à primeira vista ou à sensação da paisagem, sendo geralmente uma impressão luminosa e isto é muito recorrente nos trabalhos dos artistas.A vista panorâmica[3] se tornou um modelo paisagístico por excelência no século XIX. Artistas viajantes de todas as procedências e tradições artísticas diversas produzem vistas panorâmicas ao longo do século XIX, reforçando a profunda afinidade deste século com a visão do todo ou de um espaço amplo.

A propósito dos trabalhos realizados pelos viajantes, é bom lembrar as palavras de Gombrich chamando a atenção para o papel da experimentação artística e das descobertas por ensaio e erro na história da arte, quando admite que “a descoberta das aparências deve-se não tanto à observação cuidadosa da natureza, mas à invenção dos efeitos pictóricos” (1986, p.289).

Os esquemas perceptivos, cristalizados em formas, agem diretamente sobre as possibilidades de observação, como se pode ver, principalmente nas representações dos habitantes do Brasil, em que é sentida a permanência de recortes clássicos ao passo que a botânica, que se inscreve na paisagem, produz outro tipo de olhar e de representação, propiciando um sentimento estético de natureza, mais livre de condicionamentos anteriores.

A percepção não é um registro passivo do mundo exterior. Ela depende dos modos pelos qual a inteligência é provocada e está preparada para discriminar e por este motivo, se explica a dificuldade existente na representação dos índios, por exemplo. No século XIX, quando o cientificismo inicia a estudar a antropologia física, é que se superam os cânones clássicos que dominam parte das representações visuais.

IV. Século XVIII - Viajantes estrangeiros em Santa Catarina

O século XVIII, no Brasil, apresenta grande número de artistas estrangeiros que vêm para o país executar pinturas sacras nas Ordens Religiosas. É interessante observar que o fundo de algumas cenas bíblicas, retiradas de modelos europeus, remete a uma paisagem local.

Os séculos XVII e XVIII oferecem raros testemunhos sobre o Brasil, pois os portugueses são discretos quanto a sua colônia e não autorizam que viajantes estrangeiros a visitem. Mesmo assim, a bibliografia é ampla demais para ser sintetizada em poucas linhas.

No século XVIII, o Brasil não recebeu paisagistas devido à política portuguesa de isolamento total da colônia, fechada a visitantes estrangeiros, pois a mesma política portuguesa que promove a demarcação, fortificação e traçado de plantas das cidades, atua igualmente no sentido de impedir a entrada de estrangeiros procurando vetar-lhes outros modos de conhecimento dos recursos naturais do Brasil. Desde o século XVII, desenhistas participam das tripulações que percorrem o mundo. Enquanto os portos do Brasil permanecem fechados, as expedições de circunavegação, de passagem pela costa brasileira, têm apenas autorização para abastecer os navios, quando são preparados registros das vilas brasileiras a partir do mar.

A situação de recebermos navios estrangeiros e sua tripulação não se repetia com frequência na Santa Catarina colonial, pois desde 18 de março de 1604 se proibira a vinda de estrangeiros para o Brasil e desde 12 de dezembro de 1605 se ordenara o internamento a 12 léguas da costa, dos estrangeiros encontrados. A escassez de depoimentos de viajantes estrangeiros em decorrência desta proibição, não é um fenômeno catarinense, e sim nacional.

A literatura de viajantes constitui um ponto importante na coleta de elementos para a construção da História. Quanto à Santa Catarina, a bibliografia conhecida é preciosa e apesar de pouca, é apta a nos fornecer a imagem que outros povos fizeram de nós, não raro diferente das ideias que fazíamos nós mesmos, através de considerações sobre a índole do nosso povo, a exuberância da natureza, a beleza das baías, e outras coisas mais, como a legislação do reino que vedava o comércio com o exterior, por exemplo.

Outro aspecto é o de iconografia catarinense em depoimentos de viajantes estrangeiros; esta é muito mais rarefeita que a bibliografia. A iconografia plástica é ainda mais rara. Entretanto, em termos de uma produção histórica, o livro Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX, Berger (1984), reúne uma documentação pictórica significativa dada a escassez de dados existentes. Se comparada com o que já se produziu no Brasil, é ainda incipiente.

A paisagem da ilha de Santa Catarina sofreu alterações cumulativas ao longo dos tempos, em que o sítio regional onde se construiu a pequena Póvoa do Desterro guarda uma acumulação maior de acontecimentos. A velocidade desta lenta acumulação de mudanças, obviamente, foi crescendo com o tempo e o impacto das transformações foi intenso.

Antes dos primeiros exploradores europeus aportarem intensivamente na Ilha de Santa Catarina, no início do século XVI, todo o litoral catarinense já era ocupado. Tratava-se dos índios Carijós, pertencentes à nação Tupi - Guarani. Eles viviam em pequenas aldeias e sua base alimentar era a caça e a pesca e o cultivo de milho e mandioca. Possuíam um artesanato muito diversificado, como: redes, esteiras, cestos, cerâmica, armas trabalhadas em pedra polida e madeira, canoa escavada em tronco de guarapuvu e a fabricação de bebidas alcoólicas e farinha.

Os Carijós passaram a ser capturados incessantemente pelos bandeirantes para o trabalho escravo. Muitos fugiram para o interior do continente, ou morriam infectados por doenças comuns aos brancos. Sua saga durou quase dois séculos, vindo culminar com o extermínio desta tribo, porém seu legado cultural permanece vivo na identidade catarinense.

A partir do século XVI, a Ilha de Santa Catarina passa a receber visitantes europeus de diversas procedências e origens. Com o Tratado de Tordesilhas, ela foi doada a Pedro Lopes de Souza, em 1534, marcando o início da ocupação oficial da costa catarinense. Portugal utilizou-a como ponto estratégico militar, importante para a Coroa Portuguesa. Esta estratégia militar motivou a implantação de um conjunto defensivo litorâneo, ou seja, a construção de fortalezas, com a finalidade básica de garantir a posse e ocupação jurídica do território. O processo de ocupação ocorreu paulatinamente, passando pela hierarquia de agrupamento humano de Póvoa, Vila e Freguesia.

A ilha já teve vários nomes. Para os índios Carijós, chama-se “Meimbipe”, que se traduz por “montanha ao longo do canal”. Com o povoamento dos brancos, passou ter o nome de “Ilha dos Portos”. Depois veio o nome de “Santa Catarina”, que foi dado à ilha em 1526, por Sebastião Caboto, possivelmente em homenagem à Santa Catarina de Alexandria, festejada pela igreja católica em 25 de novembro.

Em 1662, o povoado ganhou o nome de Nossa Senhora do Desterro. Mais tarde, mesmo ainda escassamente habitada, Desterro é elevada à categoria de Vila, em 23 de março de 1726. Quando da criação da Freguesia de Nossa Senhora do Desterro, esse nome começa a se impor ao de Santa Catarina, até que a vila passa a ser conhecida simplesmente por “Desterro”. Esta passou a ser a data, então, em que se comemora o aniversário oficial da cidade. Em 1730, conseguindo alcançar alguma organização religiosa e política, passa a se chamar Freguesia de Nossa Senhora do Desterro. Depois que o território catarinense foi desmembrado da Capitania de São Paulo, em 1738, foi construída uma série de prédios e fortificações para a defesa e assentamento da Ilha como ponto estratégico da Coroa Portuguesa no sul do Brasil. Por sua localização privilegiada, a Ilha, desde seu descobrimento, constituíra-se também em ponto de passagem obrigatório para parada e abastecimento de navios em trânsito pela costa brasileira em direção à região do Rio da Prata.

Com o processo de fortificação da Ilha de Santa Catarina, contemplou-se o objetivo de povoamento da região a ser defendida, para a qual ocorreu um grande fluxo de imigrantes. Foi o maior movimento organizado de transferência de colonizadores, e totalizava 6.000 (seis mil) açorianos, entre o período de 1748-1756. Para cada família foi destinada uma pequena faixa de terra, que resultou numa planificação territorial típica de minifúndios, caracterizada pela cultura de subsistência. A implementação da subsistência se deu com a tradição pesqueira dos açorianos.

A cidade efetiva-se com a instalação dos capitalistas comerciantes, alterando a característica até então político militar, para integrar-se num contexto econômico mais apto a expandir-se, pois com o florescimento comercial e marítimo, surgem algumas fortunas, que emprestam à localidade um ritmo intenso de progresso.

A Vila do Desterro, antes da Independência, em 1822, guardava características de uma ocupação militar, pois tudo girava em torno do governo da capitania e da defesa do Porto. Havia um quadro de pobreza e dependência a comandos militares distantes.

O quadro de estagnação alterou-se após a chegada dos imigrantes açorianos e madeirenses na primeira metade do século XVIII. A vila não guardava em sua paisagem outros sinais de urbanização, a não ser o casario pouco mais adensado e a presença de edificações de porte que aparecem nas gravuras da época (VAZ, 1991,32-3). Para ilustrar uma imagem de Wilhelm Gottlieb von Tilesius von Tilenau (1769-1857), médico, explorador e naturalista alemão [Figura 1].

No século XVIII, temos registros não de pintores, mas de naturalistas de formações diversas. Por serem poucos, destaco os que deixaram registros da cidade ou da fauna e flora, nos relatos de suas expedições. Quase todos os registros dos viajantes foram coletados no livro organizado por Paulo Berger (1984) chamado Ilha de Santa Catarina - Relatos de viajantes estrangeiros (séculos XVIII e XIX). Outros registros foram encontrados na obra de Ana Maria de Moraes Belluzzo (2000), O Brasil dos viajantes e a obra organizada por Aguillar (2000), para a mostra dos 500 anos do Brasil. Citaremos os mais significativos: Amèdée François Frézier, engenheiro militar francês que fez um estudo para um mapa da ilha e descreveu o modo como viviam os brancos na ilha. Aportou na Ilha em 1712. George Anson, comandante de uma esquadra inglesa, chegou a Santa Catarina em 1740, e escreveu que de longe, tínhamos o melhor porto de abrigo em toda a costa brasileira. A descrição de ilha é riquíssima em detalhes. Anson, na passagem por Santa Catarina, registrou em planta o porto e as fortificações da ilha, publicado na Alemanha em 1751. George Anson [Figura 2 e Figura 3], nascido em Shuekboroughmanor, entre 1697 e 1698 e falecido em 1762, foi um aristocrata e almirante britânico, famoso por cincunavegar a Terra. Quando de sua viagem à ilha de Santa Catarina descreveu a posição da ilha e suas fortificações e anotou o progresso da região desde a estada de Frézier em 1712. Neste momento era governador da ilha o brigadeiro José da Silva Pais, que acabou por ser acusado por Anson de enviar informações a Buenos Aires sobre sua esquadra. O escrito sobre a circunavegação foi feito por Richard Wagner e revisado por Benjamin Robins e foi publicado em inúmeras edições em francês e outras línguas. Incluiremos duas imagens.

Antoine Joseph Pernetty, francês, membro de uma expedição que chegou a Santa Catarina em 1763 e se dedicou principalmente ao estudo da história natural. Realizou um mapa da ilha, desenhos da fortaleza de Santa Cruz e pranchas de pássaros e animais. Escreveu que: “A parte do reino animal que deve ocupar mais a um naturalista na ilha de Santa Catarina e no Brasil, é a história dos pássaros, aquela onde a natureza parece ter ostentado maior magnificência e variedade” (apud BERGER, 1984, p.95). Talvez por esse motivo, os pássaros apareçam em primeiro plano nos trabalhos de Louis Choris, no século XIX. E ainda: “A história do reino vegetal da ilha de Santa Catarina é tão variada quanto a do reino animal; as florestas estão cobertas de arbustos aromáticos e o perfume que se expande corrige um pouco a impureza da atmosfera” (apud BERGER, 1984, p.100). Jean-François Galaup De La Pérouse - o conde La Pérouse - deixou a França em 1785, encarregado por Luís XVI de uma viagem de exploração pelo pacífico. A expedição de La Pérouse passou por Santa Catarina, sem data precisa, entre 1785 e 1788 e realizou uma vista da cidade e da ilha. A primeira vista que se tem registro é do francês Duché de Vancy, que fazia parte desta expedição. Este artista nasceu na França em 1756 e morreu em 1788. Foi desenhista, gravador e pintor, formado na escola de Belas Artes de Paris. Engajou-se na expedição de La Pérouse, em 1785, registrando locais por onde passava a expedição. Grande parte dos desenhos se perdeu no naufrágio que deu fim à expedição. Existem conservados hoje catorze deles, nove dos quais foram gravados no Atlas publicado com os documentos da expedição de La Pérouse. A gravura Veduta dell'Isola di Sta.Catterina[Figura 4] [4] se origina da tradição italiana “vedutista” e não rompe com o conceito de quadro. São as famosas “vistas”. Apesar do realismo da cena, em que ao fundo se vê a Vila do Desterro e seu casario, esta cena reflete com grande lirismo, e em uma concepção leve e poética, os conceitos europeus como registro documental de paisagens. A força da natureza e seu impacto certamente contribuíram para atenuar um tipo linear de educação artística de paisagem. Trata-se de um olhar mais contemplativo, isento de traços duros, pois a grandeza da paisagem é sedutora e envolvente. Como os franceses que aportam no Brasil, estes também não carrega princípios tão claros quanto à busca sistemática do pitoresco, como faziam os artistas ingleses. A influência mais clara que os franceses trazem na pintura da paisagem são ainda os preceitos clássicos herdados da tradição do século XVII e com influências da escola do vale do Loire, ou seja, mais de acordo com a busca de um ideal de beleza e encantamento, como vimos anteriormente.

Também resultante de expedição de La Pérouse, uma outra vista da ilha de Santa Catarina [Figura 5], feita a pincel pelo artista engajado na expedição, Duché de Vancy, e gravada por Le Pagelet. Ao fundo, em perspectiva, vê-se a minúscula vila do Desterro e seu belo casario. A gravura reflete os conceitos europeus como registro documental de suas viagens. No entanto, a luz assume uma aparente imobilidade, que a torna menos rigorosa em sua estrutura formal. O equilíbrio das figuras revela domínio do espaço, como elemento integrado à natureza.

São estas as descrições de La Pérouse, que evidenciam nítida ligação com os trabalhos plásticos:

É no fim desta barra que está a vila de “Nostra Senõra del Desterro”, capital desta capitania, onde o governador têm a sua residência; a vila contém no máximo 3 mil almas e aproximadamente 400 casas; seu aspecto é bem agradável... O solo é extremamente fértil e produz toda a sorte de frutos, legumes e cereais: está coberto de árvores sempre verdes, mas são de tal forma entrelaçadas de espinhos e lianas, que não é possível atravessar estas florestas sem abrir uma vereda a machado...As habitações, tanto na ilha como no continente, estão todas à beira do mar: os bosques que a cercam tem um aroma delicioso, devido à grande quantidade de laranjeiras, árvores e arbustos aromáticos de que estão cheios (apud BERGER, 1984 , p.113).

Enquanto assistíamos, em outros estados brasileiros, no período colonial dos séculos XVII, XVIII e XIX, o surgimento das nossas mais belas grandezas coloniais, nos Estados do Sul, a situação é diferente. Por aqui, nada favorecia o surgimento de uma expressão característica predominante. Por mais que nos esforcemos em encontrar detalhes de beleza ou soluções plásticas de interesse técnico, não podemos apresentar e nem encontramos documentação alguma que se aproxime da estatuária mineira, da pintura, dos entalhes e interiores completos da Bahia, de Pernambuco ou do Rio de Janeiro, por exemplo.

A região Sul, como se sabe, nos séculos XVII e XVIII, estava localizada em grande parte, além da linha de Tordesilhas. Caracterizada por uma economia basicamente agrícola, e por isso, limitada em seu desenvolvimento. E nas tentativas de povoamento, essa região era ainda prejudicada pelas constantes invasões, saques, e destruições decorrentes das guerras entre portugueses e espanhóis, os quais almejavam a posse destas terras. A memória deste período sobrevive nas fortalezas que formavam o triangulo defensivo da Ilha de Santa Catarina - Santa Cruz de Anhatomirim, São José da Ponta Grossa e Santo Antônio de Ratones, fortalezas essas muito presentes nos relatos dos viajantes estrangeiros. Ainda em vista das guerras, é natural, portanto, que não houvesse um espírito de tranquilidade, nem sobrassem recursos suficientes para uma significativa realização artística.

Isolados na extremidade ibérica, desconhecedores dos ciclos econômicos expressivos, os portugueses que aqui se estabeleceram, desenvolveram uma sociedade austera, que via a arte segundo sua funcionalidade e dirigindo-se, quando ocorria, para a religião e construção de capelas e igrejas. O modelo austero e simples, popularizado nas aldeias portuguesas, estaria presente nas soluções adotadas aqui. O raciocínio e a lógica militar foram básicos na escolha dos sítios, na construção dos espaços urbanos e dos principais edifícios. Este raciocínio tornou-se evidente nas construções religiosas, militares e civis. Em 1894 a ilha passou a se denominar Florianópolis, em homenagem ao presidente Floriano Peixoto.

V. Século XIX - Viajantes estrangeiros no Brasil e em Santa Catarina

Durante todo o século XIX, o Brasil recebe artistas estrangeiros, alguns deles integrantes das expedições científicas e artísticas que percorreram o território (Missão Artística Francesa, Missão Austríaca, Expedição Langsdorff). Deslumbrados pelo cenário tropical, eles elaboraram paisagens, marinhas e cenas de costume, sobretudo do Rio de Janeiro, documentando com detalhes aspectos pitorescos da vida brasileira.

No século XIX ocorre o maior número de expedições que percorreram o território brasileiro. Multidisciplinares, objetivavam alimentar os gabinetes de História Natural de seus países de origem. É a partir delas que se dá o contato com o outro baseado na etnografia e na ciência da observação. Essas expedições eram compostas por artistas amadores e profissionais, cientistas, diplomatas e negociantes. Esses artistas registraram com precisão a geografia, a etnografia, a fauna e a flora, os costumes do Brasil, legando-nos um importante acervo que registra o período.

Jean-Baptiste Debret e Nicolas Taunay acompanharam a Missão Artística Francesa, que a 26 de março de 1816 chega à baía da Guanabara, com o objetivo de criar no Brasil a Academia de Belas Artes. Debret é o mais conhecido em virtude das gravuras estampadas em seu livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, em que retrata indígenas brasileiros, seus usos e costumes; vistas e descrições de tipos humanos do Rio de Janeiro além de acontecimentos históricos importantes que presenciou. Herdeiro da tradição paisagística holandesa do século XVII, Nicolas Taunay permaneceu no país até 1821. Foi um dos primeiros artistas a trabalhar o gênero da paisagem no Brasil. Em 1817, a Missão Científica de História Natural, conhecida como Missão Austríaca, trouxe ao Brasil, além de naturalistas, o pintor Johann Buchberger e o paisagista Thomas Ender. Este último vinha subsidiar, com desenhos e aquarelas, o trabalho dos cientistas que coletavam e descreviam espécimes animais, vegetais e objetos etnográficos, enviados aos milhares para a capital austríaca Viena.

Em 3 de setembro de 1825 uma equipe de cientistas e artistas - Johann Moritz Rugendas, Aimé-Adrien Taunay e Hercule Florence - comandada pelo Barão de Langsdorff, cônsul geral da Rússia no Rio de Janeiro, percorre as regiões de Minas Gerais, São Paulo, Centro-Oeste e Amazônia. Rugendas, que integra temporariamente a expedição (em 1825, retorna à Europa), publica, em 1835, Voyage Pittoresque dans le Brésil, em que registra a ampla diversidade social da população brasileira (personalidades políticas, índios, negros, mestiços). Hercule Florence mais conhecido pelo seu pioneirismo mundial no campo da fotografia, produziu desenhos que são reconhecidos como excelentes observações da natureza e dos índios das regiões que atravessou. O século XIX é rico em pintores viajantes. A segunda leva chega por volta de 1840 tem em Eduard Hildebrandt seu maior talento. Rugendas também é desse período. A terceira leva, menos numerosa, chega por volta de 1860 e tem seu expoente em Joseph-Leon Righini, o primeiro a retratar a Amazônia. Charles Landseer (Londres, 1799 - idem, 1874 ou 1879) foi um pintor, desenhista e aquarelista britânico que residiu no Brasil por dois anos, de 1825 a 1827 [Figura 6, Figura 7 e Figura 8]. Em 1816 terminou seus estudos na Royal Academy of Art de Londres, onde foi contemporâneo de Augustus Earle que ficaria famoso por ter sido o desenhista do pesquisador Charles Darwin, no primeiro trecho de sua viagem exploratória. Chegou ao Brasil como pintor particular, integrante da missão do embaixador Charles Stuart de Rothesay, cuja incumbência era reconhecer a independência brasileira e firmar um tratado de comércio com D. Pedro I.

Outro pesquisador importante que esteve na Ilha foi Charles Darwin [Figura 9], naturalista inglês, nascido em 12 de fevereiro de 1809, em Shrewsbury..Com dezesseis anos, Darwin deixou Sherewsbury para estudar medicina na Universidade de Edinburgh. Em 31 de dezembro de 1831 ele aceita o convite para tornar-se membro de uma expedição científica a bordo do navio Beagle. Assim, Darwin passa cinco anos (1831 a 1836) navegando pela costa do Pacífico e pela América do sul. Durante este período, o Beagle aportou em quase todos os continentes e ilhas maiores à medida que contornava o mundo, inclusive no Brasil. Darwin fora chamado para exercer as funções de geólogo, botânico, zoologista e homem de ciência. As pesquisas feitas durante a viagem abordo do Beagle é que fundamentaram sua Teoria da Evolução, servindo de base para o famoso livro Origem das Espécies. A obra foi publicada em 1859, sob o bombardeamento das controvérsias. Após a publicação de sua obra mais famosa, Darwin continua a escrever e publicar trabalhos na área da Biologia por toda a sua vida. Sofre de síndrome do pânico e mal-de-Chagas, o último adquirido durante sua viagem pela América do Sul. Morre em 19 de abril de 1882. Charles Darwin é sepultado na Abadia de Westminster.

A prosperidade é notória na Ilha de Santa Catarina, no período de 1830 a 1880, coincidindo com a elevação à categoria de cidade, em 1823, e também a visita de D. Pedro II, em 1845, vindo a motivar o início de algumas medidas de saneamento básico, urbanização e calçamento das principais ruas. Com o estabelecimento definitivo do regime republicano, a capital adquire outra fisionomia, desenvolvendo-se e progredindo, acentuadamente nos anos de 1890 -1900. Em 1894, no governo Hercílio Luz, recebe a denominação de Florianópolis. Mesmo assim, a cidade continua no seu isolamento e com construções singelas.

No século XIX, duas expedições foram significativas no registro da Ilha de Santa Catarina.

A primeira, de Adam Johann von Krusenstern [Figura 10], designado como chefe da expedição russa que chegou a Santa Catarina em 1803. Desta expedição participou também o famoso naturalista Langsdorff, que ficou em Santa Catarina de dezembro de 1803 a fevereiro de 1804 e deixou riquíssimo relato desta terra. Foi cônsul da Rússia no Rio de Janeiro, de 1813 a 1820, quando montou uma notável coleção de história natural. Mais tarde, participou de outra expedição ao Brasil, esta em 1825, desta vez como chefe de uma grande expedição científica em que trouxe, entre outros, o famoso pintor Rugendas e ficou conhecida com a expedição Langsdorff. Da expedição Krusenstern participou também o capitão Urey Lisiansky, que deixou relatos detalhados. Da expedição Krusenstern, é de interesse a narrativa da estadia da expedição em Santa Catarina e, de especial interesse para este trabalho, uma vista da cidade realizada por Oscar Canstatt [Figura 11] agora com mais construções e com destaque para o Forte “Santa Bárbara”, diz o relato. A figura é mais uma imagem parcial e compacta da cidade, mas sem a leveza natural da gravura de Duché de Vancy.

Dos relatos de Krusenstern, destaca-se:

A Vila de Nossa Senhora do Desterro é ainda menos fortificada: um pequeno forte de oito canhões no ancoradouro, cujos suportes estavam quase todos danificados, constitui sua única defesa. A cidade, que está situada num local muito agradável, consiste de cerca de 100 casas mal construídas, e é habitada por 2.000 ou 3.000 portugueses pobres e escravos negros. A casa do Governador e o quartel são as únicas construções que se distinguem, por sua aparência, das outras. Eles estavam, nessa época, construindo uma igreja, que em muitos países católicos, é considerada muito mais importante do que hospitais ou outras edificações úteis(KRUSENSTERN apud BERGER, 1984, p.139)[5]

A igreja a que se refere Krusenstern é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, a igreja dos negros e escravos. Ele considerava nossas fortalezas insignificantes e achava que o governo português deveria dar mais atenção a esta ilha, pois:

De todo o Brasil, a Ilha de Santa Catarina, juntamente com a parte do continente em suas proximidades, é talvez a que menos tem atraído a atenção do governo português, tanto como deveria merecer, em vista de sua localização, seu clima saudável, seu solo fértil, e seus valiosos produtos (KRUSENSTERN apud BERGER, 1984, p.138).

Deste período, destacam-se frases de viajantes, todos inclusos na obra de Paulo Berger, que servem de subsídios, considerando que ainda não tivemos o registro escrito de artista viajante. De G. H. Von Langsdorff, cientista em expedição: “O local é agraciado pela natureza em todos os sentidos. É uma terra onde tudo viceja com inexcedível beleza e garbo inimagináveis”. De D.G.H. Langsdorff, uma imagem[Figura 12] mostra o interior de casa na Ilha de santa Catarina, em que pouco poderia se parecer com habitantes locais. A imagem nos remete muito mais a um perfil de obras neoclássicas. Figuras que parecem ter saído de um livro de arte grega clássica.

Carl Friederich Seidler, suíço alemão, em 1826: “Os naturais da Ilha chamam-na com razão de o jardim do Brasil”. Ury Liviansky, navegador russo, da expedição de Krusenstern: “Estas fascinantes costas podem ser reconhecidas como a natureza própria do paraíso. As mais belas borboletas do mundo são aqui encontradas. Os habitantes são corteses e hospitaleiros”. Novamente o navegante russo Ury Liviansky, em 1803:

O verde luxuriante e a rica fertilidade desta ilha favorecida formam um contraste singular com o elemento circunvizinho... Todos os sentidos, em suma, são gratificados, tudo que vimos, escutamos ou sentimos, abre o coração para sensações encantadoras. Estas fascinantes costas podem ser reconhecidas como a natureza própria do paraíso; tão pródigas em generosidades que são favorecidas por uma eterna primavera (LIVIANSKY apud BERGER,1984)

John Mawe, em 1806: “Ao entrar no porto de Santa Catarina, pelo norte, passamos por várias ilhas... Do ancoradouro, no alto de um declive verdejante, a cidade oferece bela vista e a perspectiva é nobremente coroada pela sua linda catedral”. Adalbertu Von Chamisso, em 1815: “Quando se navega pelo canal que separa a ilha de Santa Catarina da terra firme, crê-se estar entrando no país da natureza livre. Há vida em toda a parte”.

Com o passar dos séculos, percebe-se que os turistas mantêm hoje a imagem do paraíso, de acordo com reportagem publicada no JornalDiário Catarinense, em que consta que:

Os séculos passaram e pouca coisa mudou. Quando o assunto é a impressão que Florianópolis causa nos visitantes, apenas a linguagem torna possível identificar e diferenciar os relatos dos viajantes estrangeiros do século 18 com a descrição feita pelos turistas deste final de século 20. Deixando de lado a forma rebuscada que os navegadores usavam em suas cartas, o conteúdo é o mesmo: deslumbramento e elogios incansáveis às belezas naturais (1996).[6]

A segunda expedição foi a de Louis Choris [Figura 13, Figura 14, Figura 15 e Figura 16], que em 1815 partiu, como artista, junto à expedição de Kotzebue ao redor do mundo, a qual se sabe, chegou em Santa Catarina, onde escreveu relatos e realizou quatro obras das quais temos conhecimento, trabalho publicado em Paris em 1826. Comandada por Otto von Kotzebue, tal expedição teve grande importância do ponto de vista geográfico, pois permitiu um melhor conhecimento do Pacífico. O "Rurick" visitou sucessivamente Tenerife, a ilha de Santa Catarina, no Brasil, Talcahuanha, na costa do Chile, a ilha de Páscoa, bem como outras ilhas no Pacífico até o estreito de Behring. O trajeto feito pelo navio explorou também a costa da Ásia e a costa oeste da América do Norte. O tempo de permanência na ilha de Santa Catarina foi pequeno, entre o dia 29 de novembro de 1815 e o dia 16 de dezembro do mesmo ano.[7]

Quando se está cruzando o canal que separa a Ilha de Santa Catarina do continente, crê-se, à primeira vista, estar sendo levado ao meio de uma natureza ainda selvagem. As altas montanhas que se elevam dos dois lados estão cobertas até ao cimo da vegetação mais rica;somente aos pés destas montanhas é que nos apercebemos dos trabalhos do homem recentemente estabelecido naquela solidão.

Sobre a costa do Brasil, em frente à Ilha de Santa Catarina e próximo ao forte de Santa Cruz, vimos uma destas experiências da Colônia. Um português havia construído algumas cabanas com madeira que lhe foi fornecida pelas árvores gigantescas das florestas vizinhas. Perto das habitações cresce a bananeira, que nestes climas favoráveis, fornece uma alimentação abundante e sempre assegurada, crescendo espontaneamente e se multiplicando com uma facilidade maravilhosa: coisa nunca vista por mim em outra parte: as laranjeiras cercam as bananeiras e são igualmente produtos da subsistência humana. Por toda a parte, nestas regiões, o homem está cercado em sua moradia destas belas árvores, com frutos esplêndidos irradiando uma suavidade, de que não se pode fazer uma idéia, a não ser aqueles que já sentiram nas partes frias da Europa temperada.

Os ananases são um dom da natureza nestas regiões equinociais. Aqui eles mostram suas preciosidades misturadas as helicônias (“bihai”), cuja forma se aproxima à da bananeira, possuindo folhas bastante grandes e de uma consistência fortíssima que substituem aquele vegetal utilizado na cobertura das casas. As purgueiras (“jatropha”) de folhas recortadas e de suco leitoso, os cactus de folhas espinhosas e flores amarelas, as iucas (“yuccas”) que, por seu tronco nu e suas folhas ajuntadas até o cimo , lembram as palmeiras;as epidêndreas (“épidendrum”) que, reconhecíveis por suas folhas gordurosas e suas belas flores, cobrem os rochedos; tais são as plantas que se distinguem no primeiro plano da prancha II.

A paisagem está animada pelo tucano do Pará, que realça seu bico enorme e seu peito cor de fogo; pelo martin pescador de aparência brilhante que, assim como o da nossa região, empoleira-se no galho de uma árvore próxima das águas, vigiando sua presa;pelos urubus que procuram, à beira do mar as carniças apodrecidas na areia; enfim, por uma serpente que se arrasta sobre o rochedo para os tufos de epidêndreas (CHORIS apud BERGER, 1984, p.244)

Avançando-se para o interior da Ilha de Santa Catarina, fica-se tomado de admiração vendo-se a variedade, a força e as dimensões gigantescas dos vegetais que, num espaço bastante restrito, recobrem o solo.

A habitação do homem está sombreada por laranjeiras e bananeiras: mais longe crescem os mamoeiros que, nesta Ilha são muito altos e dão frutos do tamanho de um pequeno melão; e os coqueiros (“cocos romanzov”) cujos troncos esguios ultrapassam as outras árvores. Os rochedos são revestidos de epidêndreas; os ananases crescem ao meio de jarros que distinguem suas flores brancas. O cactus opúncia compõem simples moita ao pé do cactus colossal, cujos caules numerosos se elevam como colunas formando grupos da mais bizarra fisionomia. (CHORIS apud BERGER, 1984, p.244)

A serpente se entrelaça em volta destes caules para espreitar sua presa. O curucuí tem o ventre vermelho e o manaquim de cores brilhantes habitam de preferência estes lugares pouco frequentados. Um negro carrega, nas duas extremidades de uma vara comprida, cachos de bananas.

Ao pé das montanhas menos elevadas, corre um pequeno rio que percorre a Ilha em sua extensão; suas margens estão enfeitadas por plantas da família das aroídeas, reconhecidas por suas folhas sagitadas, digitadas ou alongadas, mas sempre de veios bem grossos; as iucás e outras plantas cuja aparência é rígida, crescem na planície.

Além das altas montanhas do fundo, que são ornadas por toda parte da mais rica vegetação, encontra-se a Vila de Nossa Senhora do Desterro, capital da Ilha; está situada na parte mais estreita do canal que separa Santa Catarina do continente ( CHORIS apud BERGER, 1984, p.245).

De qualquer lado onde se ponham os pés na Ilha de Santa Catarina, descobrem-se sempre novas ocasiões para se extasiar ante a visão de inesgotável fecundidade da natureza. As florestas impenetráveis que cobrem as montanhas se prolongam por toda parte onde o cultivo não põe fim a seus progressos, conservando os vegetais cujas espécies são tão variadas como notáveis, por tratamentos que caracterizam suas diferenças.

À esquerda da prancha IV, cresce o pau-canhão (“cecropia peltata”), árvore de cerca de trinta pés de altura que é encontrada também em vários lugares da América meridional e nas Antilhas; suas folhas grandes, livres sobre longos pecíolos, são da largura de um pé ou mais, vigorosas e ásperas na parte de baixo, esbranquiçadas e penugentas por cima;agitadas pelo vento, elas produzem a cada instante, em seu todo, uma mudança de cores admirável. Sobre o branco desta árvore, criam-se diversas plantas parasitas; outras se entrelaçam em torno de seu tronco; formam, em sua volta, um grupo de vegetais que, separados uns dos outros, cobririam um espaço considerável. Por toda parte se vêem plantas próprias destes climas opulentos; os cactus e os fetos apropriam-se dos espaços areados. Encontra-se muito frequentemente, em lugares isolados, o tupinambis, ou monitor do Brasil (“lacerta toguixim”), grande lagarto muito ágil que vive tanto na terra como na água, e que se alimenta de insetos, mariscos, peixes e de pequenos quadrúpedes. Diz-se até que ele come frutos e ovos de pássaros e de répteis, sobretudo os de crocodilos. Entre os pássaros, um dos mais belos desta região é a arara azul, cuja parte sob o corpo é de um amarelo ouro puro. Estes soberbos pássaros, assim como todos aqueles da espécie a que pertencem, não voam em grupos como os papagaios; estão quase sempre em casais e vêem-se raramente seis ou oito juntos. Eles se agitam e gritam assim que eles percebem alguém. Situam-se de preferência, sobre as grandes árvores, escolhendo os galhos mais altos para se empoleirar, sem, contudo alcançarem o cimo destas árvores. Os frutos das palmeiras e das árvores selvagens das florestas constituem sua alimentação (CHORIS apud BERGER, 1984, p.245-6).

A costa meridional do Brasil é muito alta; as montanhas erguem-se em anfiteatro além da beira do mar, sem chegar a um ponto onde cesse a vegetação; de maneira que, revestidas de um verde muito rico, sob um clima temperado e de uma suavidade extrema, elas oferecem em todas as estações, um panorama deslumbrante.

Situadas nas gargantas que lá e cá separam estas montanhas, as habitações humanas oferecem sítios que a imaginação mais brilhante não poderia crê-las mais agradáveis do que são na realidade. Próximo à beira do mar crescem as bananeiras, os cactus e os ananases, acima dos quais se lançam os mamoeiros e os coqueiros. As laranjeiras formam bosques densos, onde o verde brilhante é realçado pela cor dourada dos frutos destas belas árvores. Sobre as encostas das montanhas cultiva-se o milho, planta útil que o Novo mundo apresentou ao Velho. Pelo fim do dia os negros, para se distraírem de seus trabalhos penosos, reúnem-se e dançam por toda a parte onde esta raça de gente habita, ela se entrega com paixão a este divertimento. A orquestra é simples; um dançarino toca o pandeiro, e acompanha assim seus passos e os de uma ou duas dançarinas, enquanto que um dos espectadores bate sobre um tamborim esperando o momento em que ele o deixará para figurar, por sua vez, com o pandeiro (CHORIS apud BERGER, 1984, p.246).

Choris compôs uma imagem dessa região da América que vai ao encontro das representações que se tinha dos trópicos: plantas e animais coloridos, natureza exuberante e exótica e a presença reduzida do ser humano.

O artista viajante, no caso, Louis Choris, filia-se à estética do pitoresco, isto é, ele não é um construtor da paisagem, mas um fruidor do espetáculo da natureza. O pitoresco diz respeito ao que é próprio para ser pintado, de tudo que merece ser representado pela pintura, por encantar olhos e espírito, numa alusão aos conceitos estéticos da época. Isto fica muito evidente em Choris, ao lermos seu relato, pois ele alcança, em seus trabalhos, um “realismo propriamente pictórico” no qual a vibração da luz e a evocação colorida de uma atmosfera singular importam mais do que o detalhe da informação. Percebe-se nas gravuras de Choris, que há uma interferência da luz, típica da ilha. A luminosidade recai plena sobre a fauna/flora e ordena a composição.

Ao analisarmos uma imagem produzida por artistas viajantes, devemos considerar vários aspectos, tais como a formação do artista viajante, a forma como ele produziu seu trabalho e as possibilidades técnicas com as quais podia contar, as influências estéticas européias, bem como outras influências, que podiam ser científicas ou morais. Louis Choris optou por um tipo de representação artística da ilha de Santa Catarina e de seus habitantes. Sua escolha priorizou a representação da natureza, com seus tipos específicos que melhor representavam a flora e a fauna da região. Mas, ao mesmo tempo, seus trabalhos reproduzem, de forma marginal em algumas das imagens e no centro das atenções noutras, os tipos humanos que viviam na região. Esses foram representados de forma estereotipada, reforçando uma imagem já existente na Europa. O viajante empreendia sua viagem por regiões desconhecidas portando uma postura ambígua: êxtase diante da beleza e do diferente e temor quanto ao desconhecido e aos perigos que iria enfrentar. Esses sentimentos confluem para formar experiências mentais que influenciam de certa forma o olhar, uma vez que este sentido não é mecânico, objetivo, mas subjetivo e fluido ( ROSSATO, 2005, p.18)[8].

Segue a autora falando de outro tipo de pintura de viajantes que são as vistas de cidades, como por exemplo a Vista da vila de Desterro a partir do Hospital [Figura 17], pintada por Jean Baptiste Debret. Esse artista não acompanhava uma expedição científica, tal qual Louis Choris, e suas obras tinham outras finalidades, o que influenciou em sua produção final. Para a autora, é importante comparar dois tipos de imagens que tomaram como referência a mesma região. Ambos eram indivíduos europeus, tinham a mesma profissão e produziram essas imagens em períodos relativamente próximos, mas, no entanto, o resultado que emergiu de seus pincéis é distinto, apesar de possuírem alguns pontos em comum. “Enquanto para Debret o central é a vila e o homem que nela habita, para Choris é a natureza. Segundo ele, o homem e o resultado de sua cultura tornam-se periféricos diante da grandeza de uma natureza ainda selvagem” ( ROSSATO, Luciana, 2005, p. 15).

Outra imagem de Debret merece ser registrada [Figura 18], em que novamente o registro das pessoas é de destaque na composição.

Conforme Peixoto (1989), em 1851, o artista alemão Joseph Brüggemann [Figura 19, Figura 20 e Figura 21] chega ao país, possivelmente acompanhando um batalhão alemão em missão de combate contra o caudilho argentino Juan Manuel Rosas, no sul do país. Era pintor de paisagens, marinhas e cenários e provável que fosse filho do pintor alemão Johann Wilhelm Brüggemann.

Sabe-se que já havia sido professor da academia de Belas Artes de Copenhague. Convidado a pintar aspectos da colonização alemã em Blumenau, lá permaneceu entre os anos de 1866 e 1868. Mudou-se para Porto Alegre em 1868, onde trabalhou na oficina litográfica Wiedmann & Siqueira. Ignora-se seu destino a partir de 1872. Possuem obras de sua autoria sobre o Brasil o Museu de Arte de Santa Catarina, o Museu de Arte de São Paulo, a coleção Sérgio Fadel, no Rio de janeiro e o Museu Imperial de Petrópolis (expostas no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro). A representação da cidade catarinense é motivo constante em sua obra.

O repertório de Brüggemann é visto como mais cristalizado, se considerarmos a expressiva leva de artistas estrangeiros que estiveram no Brasil no século XIX. De acordo, com Peixoto (1989, p.109-119), ao analisarmos sua pequena obra conhecida e efetuada entre 1866 e 1868, o artista retoma sucessivamente as mesmas paisagens de Santa Catarina, revestindo-as de um tratamento superficial, quase bordado, que resulta de modos esquemáticos de grafar pormenores, como a vegetação pontilhada e os veios das pedras.

Em outros desenhos, realizados sobre a colônia alemã, o artista elabora a vegetação com o mesmo efeito pontilhista que se observa na pintura. Ele estaria preso à sua maneira e suas características artesanais atendem ao esquema do que se denomina paisagem dita “ingênua”, mais fiel aos conceitos mentais que visuais e por isso surpreende que tenha dado aulas na Academia de belas Artes de Copenhague antes de chegar ao Brasil.

São registros visuais que permitem identificar a cidade e a Lagoa da Conceição, já descoberta como uma vista extraordinária.

Em Santa Catarina a situação pouco muda em relação ao século XVIII. As mudanças se darão apenas na transição do século XIX para o século XX, com a entrada em cena de Victor Meirelles. No século XIX, a princípio, o naturalismo documental e iconográfico domina, deixando para o final do período o naturalismo pictórico, que impõe uma estética neoclassicista que atinge inicialmente o Brasil, Argentina e Chile, depois todos os outros países da América Latina. No século XX, os pintores são substituídos pelos fotógrafos. Todavia, em Santa Catarina e em especial na ilha de Santa Catarina, Florianópolis, muito do que se trata de imagem, território e imaginário urbano se volta para a paisagem. Nossos maiores pintores a ela se dedicaram. Os viajantes iniciaram uma tradição de paisagem que nos legou muitas e consistentes obras de arte.

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VAZ, Nelson Popini. O centro histórico de Florianópolis: espaço público do ritual. Florianópolis: FCC Edições; Editora UFSC, 1991.

VEIGA, Eliane Veras da. Florianópolis: memória urbana. Florianópolis: Ed. da UFSC; Fundação Franklin Cascaes, 1993.


[1] Ulisses, Rei da Ítaca, era filho único de Laertes e Anticléia. Fazia dois anos de casado com a bela Penélope quando estourou a Guerra de Tróia. Tudo fez para não seguir para a guerra, mas foi obrigado a partir. Quando Tróia caiu, Ulisses rumou para Ítaca, porém a fortuna lhe foi adversa durante dez anos. Arrojado pelos ventos à ilha de Ogigia onde reinava a ninfa Calipso, filha do Oceano, esta prometeu torná-lo imortal se prometesse esquecer para sempre Ítaca e ali quisesse acabar tranqüilamente seus dias. Ali passou dias, meses e anos até que, por fim, auxiliado pelos deuses se fez rumo à pátria aonde chegou são e salvo.

[2] 1 - A orientação alemã: Os alemães são profundamente influenciados pelas idéias do grande naturalista Alexander Von Humboldt, o primeiro a visitar a América espanhola no início do século XIX (mesmo sem ter autorização dos portugueses). Incute-lhes seu projeto de paisagem ideal do novo mundo, que pudesse passar tanto a impressão geral provocada pela natureza tropical, enquanto todos os seus elementos fossem precisamente representados. Almejava uma visão abrangente da natureza dos trópicos.

2- A orientação inglesa: Os ingleses carregavam na bagagem intelectual uma marcada influência dos estudos sobre o pitoresco na pintura de paisagem, que teve grande divulgação em seu país no final do século XVIII, em trabalhos que sobrepõem princípios pictóricos sobre a observação direta na natureza.

3- A orientação francesa: Os franceses que aportam no Brasil, geralmente ignoram as sugestões de Humboldt e não carregam princípios tão claros quanto à busca sistemática do “pitoresco” quanto seus colegas ingleses. As influências mais claras que trazem na pintura da paisagem são ainda os preceitos clássicos de Poussin e Claude Lorrain, herdados da tradição do século XVII e com influências da escola do vale do Loire, de maior contemplação.

[3] A palavra grega panorama, visão do todo, não esteve restrita aos artifícios da paisagem circular e aos seus derivados. Também foi adotada para designar o amplo alcance do campo perceptivo, e seu uso generalizado abrangeu muitas modalidades de vistas panorâmicas, que se tornou modelo popular no século XIX. Robert Baker, inglês, é considerado o inventor do panorama, enquanto pintura ilusionista, circular e contínua.

[4] La Pérouse, Jean-François Galaup.“Voyage de La Pérouse autour du Monde”.Paris, edição de Milet Mureau,1797. (o relato neste livro, relativo a Santa Catarina inicia-se à página 32. A tradução que aqui consta é de Gilberto Gerlach e faz parte do livro de Berger, Paulo. ILHA DE SANTA CATARINA - Relatos de viajantes estrangeiros (séculos XVIII e XIX). Florianópolis: UFSC e Lunardelli, 1984, pág.112 a 116.

[5] KRUSENSTERN, Adam Johann von. Reise um die Welt in Jahren 1803,1804,1805 und 1806... Berlin, bei Haude und Spener, 1811 (ed.original alemã.). Ed inglesa, London, 1813. O relato neste livro, relativo a Santa Catarina, na edição inglesa de 1813, encontra-se às páginas Cap. IV, pág. 68 a 81; cap. V, pág. 82. A tradução que aqui consta é de Alfredo Gentil Costa e está no livro de BERGER, Paulo. ILHA DE SANTA CATARINA - Relatos de Viajantes Estrangeiros (séculos XVIII e XIX). Florianópolis: UFSC e Lunardelli, 1984, pág.132 a 145.

[6] Turistas mantêm imagem de paraíso. Diário Catarinense, Florianópolis, 6 mar. 1996, p.10. In DC Documento. Florianópolis - Origens e Destino de uma Cidade à Beira Mar, nº 27.

[7] CHORIS, Louis. Vues et paysages des régions équinoxiales, recueillis dans un voyage autour du monde. Paris. Imprimé chez Paul Renouard, rue Garencière, nº5. 1826. O relato neste livro, relativo a Santa Catarina, encontra-se nas páginas 9, 10, 11, 12 e 13, e as pranchas nº 2, 3, 4 e 5 referem-se à Santa Catarina. A tradução que aqui consta é de Gilberto Gerlach e consta do livro de BERGER, Paulo. ILHA DE SANTA CATARINA - Relatos de viajantes estrangeiros (séculos XVIII e XIX). Florianópolis: UFSC e Lunardelli, 1984, pág.242 a 246.

[8] Conforme ROSSATO, Luciana. Imagens de Santa Catarina: arte e ciência na obra do artista viajante Louis Choris. Revista Brasileira de História, vol.25. nº. 49. São Paulo. Jan./June 2005. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882005000100009&script=sci_arttext>. Acesso em 28 jul. 2010.