3.9.09

Portugal, do piloto ao engenheiro

Em sua fase inicial de expansão marítima, entre os Quatrocentos e os Quinhentos, na época do Renascimento, quando o reino de Portugal constituiu dois impérios, um ao Oriente e o outro ao Ocidente - forjando as primeiras rotas da globalização – era o piloto das naus quem predominou. Mais tarde, num outro momento, nos primeiros decênios do século XVIII, por altura dos começos do Iluminismo, etapa da desbravação dos sertões e da efetivação da ocupação territorial, foi a vez do engenheiro–cartógrafo.

O predomínio da latitude

O piloto alcançando praias desconhecidas
Criadores da ciência náutica, dados a aventuras temerárias para bem longe das suas costas, os portugueses inauguraram a Era dos Descobrimentos orientando-se apenas pelo sol e pelas constelações conhecidas. Era lá em cima, nas configurações estrelares, é que estavam os sinais que os apontavam quais eram os caminhos do mar. Eles lhes permitiram a escrever as cartas náuticas e a fixar a localização dos continentes a partir do Equador. Com Vasco da Gama alcançaram as longínquas Índias, com Cabral, cruzando o Atlântico, chegaram ao Brasil, com Fernão de Magalhães deram a volta na Terra. Todas essas aventuras foram celebradas por Camões (‘Os Lusíadas’, de 1578) e por Fernão Mendes Pinto (‘Peregrinação’, publicada pós mortem , em 1614), e que vieram a exaltar o que o historiador Jaime Cortesão chamou de a ‘cultura da latitude’. Era uma época que enfatizou a expansão em si. Eminentemente quantitativa. Trava-se de cobrir mais e mais distâncias, de avançar por milhares de milhas náuticas, de dar atendimento e satisfação ao assombro.


Daí os exageros da literatura de viagem e dos relatos duvidosos dos nautas com suas narrativas de aparições de monstros e outras fantasmagorias do mar. O marinheiro lusitano, nascido na aldeia medieval, assustado pelos mitos góticos, solto no desamparo do oceano, era atormentado por visões tétricas de peçonhas gigantes que saltavam das ondas para vir destruir as naus, ou ainda por tempestades atordoantes de Netuno que num minuto estraçalhavam as velas e punham tudo a pique.


Neste cenário, projetou-se o piloto, um qualificado homem do Renascimento de coragem admirável, um faz-tudo que com ventos favoráveis podia chegar a bom tento em qualquer canto da Terra. Como, graças a sua vocação estratégica, a desenhar e a mandar construir um forte logo que desembarcava numa praia deserta para ali fincar a bandeira do rei de Portugal.


Estes homens extraordinários, os pilotos das naus lusitanas e de outras origens, que se orientavam por bússolas e astrolábios, eram cosmopolitas. Um tanto como os condottieri da Itália Medieval e Renascentista colocavam a sua habilidade a quem se dispusesse em mantê-los e pagá-los. Punham-se a serviço da sua majestade ou de qualquer outro príncipe que lhes apreciasse o valor. Cristóvão Colombo, ainda que genovês, ofereceu-se ao soberano português e depois à rainha Isabel de Espanha; Giovanni Caboto, nascido na comuna de Gaeta, no Lazio italiano, tornou-se John Cabot a serviço de Henrique VII, o rei Tudor da Inglaterra; Fernão de Magalhães, um luso da região do Douro, pôs-se à disposição da Casa da Contratação de Sevilha para dar uma volta ao mundo às expensas do rei espanhol. Ainda que esses pilotos tivessem por detrás sábios cartógrafos com foi o caso de Colombo inspirando-se em Ptolomeu e em Paolo Toscanelli, e de Fernão em Rui Faleiro, o mérito todo era do navegante audaz, pois era ele quem enfrentava o mau humor da tripulação, os desaforos dos tempos e a inconstância dos ventos. De certo modo era um aventureiro sem-pátria e sem-lar que se deixava levar pelas correntes marítimas ao sabor do destino.

O predomínio da longitude

Fernão de Magalhães, piloto-cosmopolita (1480-1517)
Feito o mapeamento do mundo, percorridas as latitudes, ocupadas as margens do império português, o piloto-cosmopolita desapareceu pelas alturas do Século das Luzes. Ainda que existissem desbravadores como o britânico capitão Cook e o francês Bougainville, o que passou a predominar foi o engenheiro-cartógrafo, um técnico forjado pelas exigências científicas do iluminismo que tinha como missão realizar levantamentos topográficos. Não se tratava mais de seguir os caminhos do céu como faziam os antigos cosmógrafos, mas olhar para a terra, para fixar os limites de cada reino.


D.João V, ao redor de 1720, introduziu então em Lisboa os serviços da moderna astronomia e da matemática. Mesmo que fosse para efeitos esotéricos e de palácio, a fim de aumentar o orgulho e a soberba real, a inclinação dele em seguir os princípios da ciência e não mais do acaso tornaram-se evidentes.


O cidadão do mundo, representado pelo piloto-cosmopolita, um potencial desertor do seu rei, cedeu espaço ao profissional competente e patriota. Um não tinha limites na sua atividade, era pura expansão, o outro ao contrário, veio para delimitar. Amparado numa parafernália de instrumentos geomensores (fio-de-prumo, baliza etc..), o engenheiro ou o geógrafo era inteiramente dedicado ao serviço do seu rei.


No caso daqueles que foram despachados para o Brasil por D.João V e pelo Marques do Pombal – precedidos pela missão dos Padres Matemáticos, de 1729 (*) - a sua tarefa centrava-se em encontrar os acidentes lindeiros que serviriam para separavam as possessões portuguesas das terras do rei de Espanha. Até onde os bandeirantes e outros buscadores de ouro podiam adentrar no sertão brasileiro sem que os soberanos ibéricos tivessem que travar guerra.


Como personalidade exemplar desta simbiose de técnico, de político e de organizador, a serviço da Coroa, Cortesão escolheu o brigadeiro José da Silva Paes, um construtor de fortalezas, um cartógrafo que ‘funda províncias’, e que, a partir de 1737, tornou o presídio de Rio Grande o ponto de ocupação daquela que viria a ser a Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul, a mais meridional do Império Português no Novo Mundo.


Pois tais engenheiros vieram construir um país que ninguém sabia exatamente onde acabava nem que dimensão tinha. Procuraram então acidentes, rios largos, serras ou morros em que pudessem traçar uma fronteira. O ilustre historiador assegurou que tal introdução na Corte Lusitana do ‘ espírito racionalista, experimental e matemático’, foi de importação. Ainda assim elas – a moderna astronomia e sua aliada a matemática - tornaram insustentável a aceitação de que a imprecisa risca que separava os interesses dos portugueses e dos espanhóis fosse aquela traçada em 1494 pelo papa Alexandre VI em Tordesilhas. Por conseguinte, se Tordesilhas estimulou os pilotos luso-espanhóis a avançarem por tudo, será o Tratado de Madri – obra do espírito iluminista - que determinou o que é de quem no Novo Mundo ibérico.


(*) Os Padres Matemáticos eram dois jesuítas: Diogo Soares, português, e Domingos Capasso ou Domenico Capacci, italiano, que foram enviados ao Brasil em novembro de 1729 com missão de estabelecer os primeiros estudos topográficos e delimitatórios da nova capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul. Em 1737 eles deram por concluído o levantamento das coordenadas dos principais portos lusitanos no extremo sul da colônia Brasil.

Bibliografia

História por Voltaire Schilling

Fortaleza construída por Silva Paes (Santa Catarina)

Fonte:
Cortesão, Jaime – O Tratado de Madri. Brasília: Senado Federal, 2001, 2v.

Rodrigues, Francisco - História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, O Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1938-1950, 4 Tomos em 7 Vols.

Rupert, Arlindo – História da Igreja no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCR