5.5.12

O existencialismo em Jean-Paul Sartre

Influenciado pelas guerras e mudanças que marcaram o mundo no século XX, Sartre formula uma nova teoria existencialista na qual o homem tem total responsabilidade por suas escolhas

POR ISAIAS KNISS SCZUK




Jean-Paul Sartre nasceu em 1905 em ean-Paul Sartre nasceu em 1905 em Paris e morreu em 1980. Viveu 75 Paris e morreu em 1980. Viveu 75 anos do século X X, anos estes em anos do século X X, anos estes em que o mundo foi marcado, de modo que o mundo foi marcado, de modo geral, por inúmeras transformações, as geral, por inúmeras transformações, as quais contribuíram para a construção de quais contribuíram para a construção de um novo modo de ser da humanidade. um novo modo de ser da humanidade.



De 1914 a 1918 ocorreu a Primeira Guerra Mundial, período de muitas mortes. Nesse momento surgem armas sofisticadas, tais como gases asfixiantes, balas explosivas, metralhadoras, tanques e canhões. Fo i o p eríodo da juventude de Sartre.

Com 15 anos, em 1920, Sartre sai de casa para estudar. Os seus 20 anos foram de grande entusiasmo e florescimento da v ida social, numa Europa que acabava de sair de uma guerra. Em 1924, Sartre ingressou no curso de Filosofia da Escola Normal Superior, que, além de formar professores secundários, constituía um centro de discussão filosófica e política. Sartre foi um aluno muito interessado, especialmente pelas aulas de Alain (1868–1951), que dedicava atenção particular à discussão do problema da liberdade. Nos corredores da escola ou nos cafés, travavam-se apaixonados debates entre estudantes. Nesse ambiente, o jovem Sartre conheceu Simone de Beauvoir (1908–1986), “uma moça bem comportada”, a qual foi uma das figuras mais importantes de sua v ida e que o acompanhou até a morte.

Declarar-se existencialista implicava um “não-seiquê” de provocação, de escândalo, um pouco como uma rebeldia, uma indisciplina





Ao término do curso de Filosofia, em 1928, Sartre prestou ser viço militar, na cidade de Tours, exercendo a função de meteorologista. Depois disso, em 1930, voltou a Paris. Após uma breve estada na capital francesa, obteve uma cadeira de Filosofia numa escola secundária do Havre, cidade portuária. Atraído pela Fenomenologia, Sartre solicitou uma bolsa de estudos para passar um ano em Berlim (1933), onde, além da doutrina de Husserl, o jovem professor francês investigou as teorias existencialistas de Heidegger, Karl Jaspers e Max Scheler, que aprofundavam as idéias de Kierkegaard sobre a angústia e o vazio da existência humana. No espírito de Sartre, começava a amadurecer uma nova Filosofia, misto de Fenomenologia e Existencialismo. Em Berlim, Sartre presenciara a ascensão de Hitler e do nazismo. De volta à França encontrara uma atmosfera agitada; pouco depois, assistia à vitória da Frente Popular e à crise política social de 1936. Nesse mesmo ano, explodia na Espanha uma guerra civil (1936–1939). Nessa época, os existencialistas reuniam- se nos cafés, exprimindo seu ódio ao nazismo e ao fascismo.

Sartre estudou teorias existencialistas que aprofundavam as idéias de Kierkegaard (imagem) sobre a angústia e o vazio da existência humana


Ao eclodir a Segunda Guerra Mundial (1939–1945), Sartre tinha 34 anos e foi convocado para servir como meteorologista, atuando no fronte de Lorena. Em 21 de junho de 1940, fora tomado como prisioneiro, ficando encarcerado até o fim de março de 1941, quando conseguiu escapar, graças a um estratagema. Sartre falsificou seus documentos, fazendo-se passar por um doente crônico. Diria depois que descobriu o sentido real da liberdade quando se encontrava por trás das cercas de arame farpado. A experiência de prisão produziu efeitos marcantes na mente de Sartre (sendo que, antes dessa crucial experiência, porém, suas idéias já tinham começado a sofrer modificações). Pela primeira vez sentia uma profunda comunhão com os outros homens. A perspectiva individualista, que até então mantivera, dissolvia-se numa idéia mais ampla de ação comum contra o opressor.

Em 1945, no término da Segunda Guerra Mundial, Jean-Paul Sartre emergia como uma das grandes figuras intelectuais e políticas da libertação. Nesse mesmo ano, seu movimento Socialismo e Liberdade é dissolvido, pois correspondia apenas a uma necessidade da resistência. A nova tribuna passou a ser a revista Les Temps Modernes, fundada por Sartre, Merleau-Ponty, Raymond Aron, Simone de Beauvoir e outros nomes de projeção nas letras francesas. Para Sartre, tomar uma posição política implica respeitar a concepção existencialista da liberdade. Na famosa conferência O Existencialismo é um Humanismo (1946), Sartre explica que a liberdade do indivíduo não deve permitir uma fuga das responsabilidades políticas; ao contrário: justamente por ser livre, o homem é responsável e deve ser julgado por seus próprios atos.

Imagens da Primeira Guerra Mundial. Sartre (1905-1980) teve a infância marcada pela guerra, com muitas mortes e armas de destruição. Logo depois do confronto, sai de casa para estudar e encontra o entusiasmo da vida social em uma Europa em reconstrução


A produção intelectual de Sartre foi muito marcada pela Segunda Guerra Mundial e pela ocupação nazista na França. Ele foi um exímio integrante do grupo da Resistência francesa, agiu sobre uma concepção política de engajamento. A noção de engajamento significa a necessidade de um determinado pensador estar voltado para a análise de situação concreta em que ele vive, tornando-se solidário nos acontecimentos sociais e políticos de seu tempo. Pelo engajamento a liberdade deixa de ser apenas imaginária e passa a estar situada e comprometida na ação.

SARTRE E O EXISTENCIALISMO

Terminada a Segunda Guerra Mundial, surge na Europa, como um esforço de sua reconstrução, o Existencialismo. Na segunda metade da década de 1940, dizer-se “existencialista” não era pouco. Era bem mais que professar uma Filosofia, um credo, era, sobretudo, adotar uma atitude. Não é difícil compreender que a geração que acabava de conhecer horrores da guerra fosse naturalmente pessimista, ao mesmo tempo inconformada. Declarar-se existencialista, implicava um “não-sei-quê” de provocação, de escândalo, um pouco como uma rebeldia, uma indisciplina. As pessoas, mesmo sem entender o termo, sentiam-se provocadas e lhe atribuíam apanágios negativos, entendiam o Existencialismo como atitude proibida e profana.

Sartre, em sua conferência, O Existencialismo é um Humanismo, proferida e publicada em 1946, defende, diante das questões de alguns católicos e marxistas, que o Existencialismo não se trata de uma Filosofia pessimista, contemplativa e passiva. Sartre concebe o Existencialismo como uma doutrina que torna a vida humana possível e, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana. Ele diz que a maior parte das pessoas que utilizam o termo “Existencialismo” ficariam bem embaraçadas se tivessem que explicá-lo, pois essa palavra tinha assumido uma tal amplitude e extensão que já não significava absolutamente nada. Mas Sartre afirma que o Existencialismo é uma doutrina menos escandalosa e a mais austera; e destina-se exclusivamente aos técnicos e aos filósofos. No entanto, pode definir-se facilmente.




Fenomenologia
O termo provém de duas palavras gregas, phainomenon e logos. Seu sentido primeiro é ciência ou estudo dos fenômenos. A Fenomenologia foi empregada em diversas acepções ao longo da história da Filosofia, mas ganhou vigor no pensamento de Edmund Husserl. Sartre, atraído pela Fenomenologia, foi estudar a doutrina de Husserl em Berlim. O método fenomenológico é uma volta às coisas mesmas, isto é, aos fenômenos, aquilo que aparece à consciência, que se dá como objeto intencional. A busca da Fenomenologia é chegar à intuição das essências, ao conteúdo inteligível e ideal dos fenômenos, captado de forma imediata


Há duas espécies de Existencialismo: de um lado há os cristãos, entre os quais Sartre inclui Jaspers e Gabriel Marcel; e, de outro lado, há os existencialistas ateus, entre os quais Sartre inclui Heidegger, os existencialistas franceses e ele próprio. Nessas duas espécies, o que há em comum é simplesmente o fato de admitirem que a existência precede a essência ou que se deve partir da subjetividade. Para mostrar o que deve ser entendido por “existência que precede a essência”, Sartre dá um exemplo: “Consideremos um objeto fabricado, como um livro ou um corta-papel; esse objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou num conceito; tinha, como referenciais, o conceito de corta-papel assim como determinada técnica de produção, que faz parte do conceito e que, no fundo, é uma receita. Desse modo, o corta-papel é, simultaneamente, um objeto que é produzido de certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida: seria impossível imaginarmos um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que tal objeto iria servir. Podemos assim afirmar que, no caso do corta-papel, a essência — ou seja, o conjunto das técnicas e das qualidades que permitem a sua produção e definição — precede a existência; e desse modo, também, a presença de tal corta-papel ou de tal livro na minha frente é determinada. Eis aqui uma visão técnica do mundo em função da qual podemos afirmar que a produção precede a existência” (SARTRE, 1987:5).

Segundo Sartre, o raciocínio do exemplo acima não pode ser atribuído aos seres humanos. Para compreendermos a razão disso é preciso lembrar que o Existencialismo sartriano é ateu. Não há um Deus criador para conceber o homem e para lhe dar uma finalidade prévia, tal como o artífice faz com o corta-papel, então o homem simplesmente existe, e sua essência será apenas aquilo que ele fizer de si mesmo, aquilo que ele se projetar. Vê-se aqui que o projeto é fruto de uma liberdade que faz do homem uma espécie de deus criador do seu mundo e o torna responsável pelo mundo. Não se pode falar, por isso, em uma natureza humana; pois, se assim fosse, o homem não interferiria em nada em sua existência, deixaria seguir sua ordem natural, sua essência precederia a sua existência. Assim, Sartre diz que há uma condição humana, um modo de ser humano resultante da situação em que cada indivíduo se encontra, ou seja, essa condição designa o conjunto das circunstâncias que se impõem a todo ser humano. Esta condição é individual e passa a haver desde que o homem surge no mundo.

Para o existencialismo sartriano, o homem, partindo de sua condição humana, deve fazer-se, visto que ele nada é enquanto não fizer de si alguma coisa. Esse fazer de si pressupõe um projeto: a existência é um projetar-se no sentido de impulsionar-se para o futuro. O homem é, antes de qualquer coisa, um projeto que vive subjetivamente; nada existe anteriormente a esse projeto. Não há uma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que projetou ser. Não o que ele quis ser, pois, segundo Sartre, o que entendemos vulgarmente por querer é uma decisão consciente e que, para a maior parte de nós, é posterior àquilo que ele próprio fez. Não somos aquilo que queremos ser, mas somos o projeto que estamos vivendo, e este projeto é uma escolha, cuja responsabilidade é apenas do próprio homem. “Eu quero aderir a um partido, escrever um livro, casar-me, tudo isso são manifestações de uma escolha mais original, mais espontânea do que aquilo que chamamos de vontade. Porém, se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro passo do Existencialismo é o de pôr todo homem na posse do que ele é de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência” (SARTRE, 1987:6).





SER EM SITUAÇÃO

Vimos que a existência é entendida como o relacionamento do homem consigo e com o mundo, ou seja, que a existência é um modo de ser em situação, entendendo a situação como realidade concreta em que o homem se acha inserido, condicionando seu modo de ser, ou seja, é o conjunto das condições concretas nas quais se encontra o homem. Com isto, o homem é considerado não como essência inerente, de modo abstrato ao indivíduo, mas na sua realidade concreta, na qual o existente humano se converte numa intersecção das relações sociais. É precisamente isso que significa o homem em situação, como um ser-em-situação, que pode ser autêntica — que leva em consideração a responsabilidade; ou inautêntica — que não leva em consideração a responsabilidade, mas sempre define a condição humana. “O conjunto de limites a priori que esboçam a sua (do homem) situação fundamental no universo. As situações históricas variam: o homem pode nascer escravo numa sociedade pagã — ou senhor feudal ou proletário. Mas o que não varia é a necessidade para ele de estar no mundo, de viver com os outros e de ser mortal” (SARTRE, 1987:16).

Para Sartre, quando se diz que o homem é responsável por si mesmo, não se quer dizer que o homem é apenas responsável pela sua individualidade, mas pela responsabilidade de toda humanidade. Deve-se lembrar que não existe uma natureza humana, ou seja, como não existe um Deus para lhe dar uma essência, o homem não pode ser chamado de ser humano.


Mural de Diego Rivera mostra luta de libertação do povo mexicano. Sartre abandona sua perspectiva individualista em prol de uma idéia mais ampla de ação comum contra o opressor. Para o filósofo, a liberdade do indivíduo não deve permitir uma fuga das responsabilidades políticas. Por ser livre, o homem deve ser julgado por seus atos. Após a II Guerra, ele aparece como uma das grandes figuras intelectuais e políticas da libertação


Sartre diz que o homem é apenas um ser no mundo que pode caminhar em várias direções. Assim, há uma condição humana, e isso faz que o homem seja responsável pelo todo. Ao dizer que o homem é responsável por si mesmo, é notável que o Existencialismo transcende a idéia do subjetivismo individualista. O homem, no ato de fazer uma escolha, não escolhe somente a si mesmo, mas escolhe toda a humanidade. Ou seja, ao escolher o homem que deseja ser, ele está julgando como todos os homens devem ser. Como afirma Sartre: “O homem está condenado à subjetividade humana. O homem é responsável por toda a humanidade”.

RESPONSABILIDADE E ANGÚSTIA

Assim, o projeto existencial pensado por Sartre não implica a subjetividade no sentido tradicional, que é a escolha do sujeito individual por si próprio, pois nem mesmo se pode dizer que o eu seja essência predefinida do homem. O homem tem uma dimensão subjetiva, que é a própria projeção de si, e pode ter plena e autêntica consciência disso; assim, podemos chamar de subjetividade como a consciência de ser consciência. Mas, segundo Sartre, é preciso que esta consciência de ser consciência se qualifique de algum modo; e ela só pode qualificar-se como intuição reveladora, caso contrário nada será.

O homem que é responsável por alguma coisa não tem como escapar da angústia. Mas ela não o impede de agir. É, ao contrário, condição da ação


Deve-se tomar ciência de que o homem, não sendo responsável apenas pela sua individualidade em seu projeto existencial, ao escolher-se escolhe todos os homens, o que, segundo Sartre, o leva a deparar-se com angústia, desamparo e desespero. “O homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. É fato que muitas pessoas não sentem ansiedade, porém nós estamos convictos de que essas pessoas mascaram a ansiedade perante si mesmas, evitam encará-la; certamente muitos pensam que, ao agir, estão apenas engajando a si próprios e, quando se lhes pergunta: mas se todos fizessem o mesmo?, eles encolhem os ombros e respondem: nem todos fazem o mesmo. Porém, na verdade, devemos sempre perguntar-nos: o que aconteceria se todo mundo fizesse como nós? E não podemos escapar a essa pergunta inquietante a não ser por uma espécie de má-fé. Aquele que mente e se desculpa dizendo: nem todo mundo faz o mesmo, é alguém que não está em paz com sua consciência, pois o fato de mentir implica um valor universal atribuído à mentira. Mesmo quando ela se disfarça a angústia aparece” (SARTRE, 1987:7).

Imagem da Resistência Francesa, movimento que não aceitava a submissão da França aos nazistas. Sartre foi membro ativo do movimento. Influenciado pelo período, desenvolveu pensamento engajado, solidário aos acontecimentos sociais e políticos de seu tempo





Martin Heidegger (acima) foi uma das fontes de inspiração para o pensamento de Sartre. Quando foi estudar em Berlim, Sartre investigou as teorias existencialistas de Heidegger, assim como de Jaspers e de Scheler


Sartre mostrou que o homem que é responsável por alguma coisa não tem como escapar da angústia. Essa angústia não impede o homem de agir, é ela própria que constitui a condição da ação, pois ela pressupõe que o homem encare a pluralidade dos possíveis e que, ao escolher um caminho, ele se dá conta de que não tem nenhum valor a não ser o de ter sido escolhido. O homem de má-fé, que tenta escapar de sua responsabilidade, dissimulando-a por si e por toda humanidade, consegue disfarçar a angústia, mas o próprio ato de mentir implica uma escolha. Ao atribuir a responsabilidade a outro, estamos escolhendo a mentira não só para a nossa própria existência, como para a de todos os homens.

O desamparo que Sartre apresenta diz respeito ao fato da não existência de Deus — “estou só! Abandonado”. Não no sentido de permanecer desamparado e passivo em um universo hostil, mas de que me deparo sozinho e sem ajuda, comprometido em um mundo pelo qual sou completamente responsável. “Dostoiévski escreveu: ‘se Deus não existisse, tudo seria permitido’. Eis o ponto de partida do Existencialismo. De fato, tudo é permitido se Deus não existe, e, por conseguinte, o homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dele nada a que se agarrar. Para começar, não encontra desculpas. Com efeito, se a existência precede a essência, nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza humana dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade” (SARTRE, 1987:9).

A idéia de que a existência precede a essência permite outros desdobramentos. Como vimos, o homem não pode responsabilizar a sua existência a natureza alguma. Não há nada que valide seu comportamento, não há nada que o determine. O homem faz-se a si próprio, é livre, ou seja, tem total liberdade para escolher o que se tornar, é responsável por sua paixão. Assim, não há nada que justifique seus atos. O homem está desamparado, condenado à sua própria escolha.





EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO - SARTRE E A LIBERDADE



Queremos definir o ser do homem na medida em que condiciona a aparição do nada, ser que nos apareceu como liberdade. Assim, condição exigida para a nadificação do nada, a liberdade não é uma propriedade que pertença entre outras coisas à essência do ser humano. Por outro lado já sublinhamos que a relação entre existência e essência do homem não é igual no homem e nas coisas do mundo. A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível: a essência do ser humano acha-se suspenso na liberdade. Logo, aquilo que chamamos de liberdade não pode se diferenciar do ser da “realidade humana” (SARTRE, 2005:68).

Partindo da proposta existencialista sartriana, de que o homem é construtor de si mesmo e que a existência precede a essência, presente no texto Existencialismo é um Humanismo, podemos afirmar que o homem é causa de si, se faz mediante suas escolhas. Essa escolha, segundo Sartre, está fundamentada na liberdade, e isso leva o homem a ser fruto da liberdade. Assim percebe-se que a liberdade não é algo que pertence à essência do ser humano, mas dá suporte a sua essência. Se supusermos que a liberdade pertence à essência do homem, poderemos supor também que o homem pode escolher sua existência. A liberdade, assim, teria um poder indeterminado, ou seja, a noção sartriana de condição humana e de situação não teria valor.

Portanto, dado que o homem é causa de si, no sentido de que é ele que constrói seu modo de ser, para Sartre, a liberdade é absoluta e incondicional, sem limitações, ou seja, a liberdade é a escolha que o homem faz de seu próprio ser e do mundo. Não se pode encontrar para a liberdade outros limites além dela mesma. O homem faz-se afirmando suas escolhas livres, assim, ele é produto de sua liberdade, pois é na ação livre que o homem escolhe seu ser, ou seja, que se constrói o sujeito.




Deve-se ficar claro que o homem não escolhe a liberdade, pois ela precede o ser, o homem é lançado nela, se pensarmos diferente teremos que supor também que o homem pode escolher sua existência, sua classe social; volta-se novamente à questão da liberdade como um poder indeterminado que escolheria o ser no mundo da fantasia. Como a liberdade não é indeterminada, e sim um fazer de um ente alguma coisa, abandona-se o quietismo, o homem se engaja, assume uma posição no mundo, tomando partido e assumindo os riscos inerentes a esta atitude.

Isso significa que eu deva abandonarme ao quietismo? De modo algum. Primeiro, tenho que me engajar; em seguida, agir segundo a velha formula: “não é preciso ter esperança para empreender”. Isso não quer dizer que eu não deva pertencer a um partido, mas que não deverei ter ilusões e que farei o melhor que puder. Por exemplo, se eu perguntar a mim mesmo: a coletivização, enquanto tal, será um dia implantada? Como vou saber? Sei que farei tudo que estiver ao meu alcance para que ela o seja; eu o farei; para além disso, não posso contar com mais nada. O quietismo é a atitude daqueles que dizem: os outros podem fazer o que eu não posso (SARTRE, 1987:13)

Melancolia, de Charpentier. Para Sartre, o homem está fadado a deparar-se com angústia, desamparo e desespero. Isto porque ele não é responsável apenas por sua individualidade em seu projeto existencial, mas, ao escolher-se, escolhe o destino de todos os homens



O exercício da liberdade nas ações de escolher o que fazer é sempre intencional, ou seja, é sempre movido por uma vontade consciente dos princípios norteadores dessa escolha e dos fins e conseqüências dessa ação. Na ação livre, o homem é consciente dos princípios de sua ação, no entanto, não existem princípios prontos que sirvam de guia para a escolha humana, não existem valores morais nos quais se possa fundar a ação humana.

Para exemplificar ausência de princípios norteadores da ação, lembramos da passagem do texto O Existencialismo é um Humanismo, no qual um jovem pergunta a Sartre se deve ir para a guerra ou cuidar da mãe. E a resposta do filósofo foi de que não existe uma regra, um valor, um modelo, mesmo uma resposta correta ou um conselho que seja exterior a ele e que sirva de parâmetro para a ação. Ou seja, é de total responsabilidade do jovem a escolha que fizer, pois ele é livre para erigir seus valores. Neste sentido, sendo o homem livre para agir e não existindo valores universais que sirvam de referenciais para nossa vida, cabe tão somente ao homem construir os valores norteadores de sua ação, ou seja, é o ser humano, individualmente, e em suas ações concretas, que deve escolher os valores para sua vida. Assim, percebe-se que para Sartre não existem valores éticos universais para a vida humana, mas somente a construção real e individual dos valores.

O verdadeiro conceito de liberdade, para Sartre, não implica em obter o que se quer, mas em querer autonomamente, determinar-se a querer por si mesmo (querer aqui, evidentemente, não só no sentido de voluntário, reflexivo, mas no sentido largo que envolve toda ação humana). O problema da liberdade, segundo esse mesmo autor, diz respeito ao querer e não ao poder (poder alcançar o que o querer indica). É por isso que o sucesso não importa em rigorosamente nada para a liberdade. Não se é menos livre porque não consegue o que se quer, mas seríamos não-livres (o que é impossível) se nosso querer fosse condicionado. Pode-se dizer então que a liberdade não se refere ao poder, mas ao livre querer.

O homem é causa de si e se faz mediante suas escolhas. Essa escolha está fundamentada na liberdade, e isso leva o homem a ser fruto da liberdade



A liberdade pode ser dádiva ou perdição. Na mitologia, Ícaro consegue asas para fugir do cativeiro, mas, por decidir voar perto do sol, vê a cera derreter e cai. Para Sartre, o homem é condenado às suas próprias escolhas


Assim podemos dizer que a liberdade só é em situação. Não é uma propriedade do homem, como a de ser bípede, não é uma entidade metafísica cravada em seu espírito. Ao contrário, é o ser mesmo do homem, sempre engajado. A liberdade não é uma coisa, mas um ato, o modo da ação humana no mundo, do desvelamento, da significação, da humanização do mundo. Como escreve Sartre: “O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre o ser do homem e seu ‘ser livre’”. Tudo isso nos remete à idéia de que o homem não é um ser pleno, total, com uma essência definida, pois se assim fosse, ele não poderia ter nem consciência nem liberdade. Primeiro, porque a consciência é um espaço aberto a múltiplos conteúdos. Segundo, porque a liberdade representa a possibilidade de escolha, por intermédio dela o homem revela suas aspirações por algo que ele ainda não é. Para Sartre, se o homem não expressasse “um vazio de ser”, sua consciência já estaria pronta, acabada, fechada. E nesse caso, o homem não poderia manifestar liberdade, pois estaria tota lmente preso à realidade estática do ser pleno. Por isso, o homem tem como característica específica o não-ser, algo indefinido e indeterminado.

Como vimos, um dos valores fundamentais da condição humana é, segundo Sartre, a liberdade. É o exercício da liberdade, em situações concretas, que impulsiona a conduta humana, que gera a incerteza, a angústia, que leva a procura de sentidos, que produz a ultrapassagem de certos limites. Por tudo isso, afirmamos então, que não há como escapar da liberdade, “o homem está condenado a ser livre”, e sendo a liberdade o seu próprio limite, ele não é livre de deixar de ser livre. Assim, a realidade humana encontra-se abandonada diante de sua própria construção, necessitando fazer-se ser sem contar com nenhuma ajuda. E ser é escolher-se a cada instante. Não há como buscar ajuda fora de si ou mesmo dentro de si, apelar para Deus, para a natureza, para uma provável natureza humana ou mesmo para a sociedade. Para a realidade humana, ser é sinônimo de agir e “deixar de agir é deixar de ser”. É por isso que Sartre afirma que, na construção do ser, o homem encontrase só e sem desculpas.


REFERÊNCIAS

SARTRE, J. P. O Existencialismo é um Humanismo. (Os Pensadores). 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1987.
PHILIP, T. Sartre, uma introdução biográfica.
Trad. Paulo Perdigão e Amena Mayall. 1.ª ed.
Rio de Janeiro: Bloch Editores S.A., 1973.

Fonte: