18.9.12

Alexander Burnes e as guerras afegãs





"Se você foi ferido e deixado nas planícies do Afeganistão/ E as mulheres se aproximarem para cortar as tuas partes/ Role em direção ao rifle e expluda os teus miolos/ E vá para o Além/ Como um soldado"(Rudyard Kipling, 1901)

Alexander Burnes, um exuberante agente da Companhia Britânica das Índias, era um tipo e tanto. Bonitão, loquaz, apaixonado pelos dialetos do Indostão, os quais dominava com destreza, era também um incorrigível femeeiro. Adorava meter-se nas tendas dos paxás e nos palácios dos rajás, sempre em intrigas mil, com o olho guloso despindo as Sherazades.

Atendendo a empresa, em 1838, Burnes foi incumbido por Lord Aucland, o governador-geral de Calcutá, de ir sondar as possibilidades de uma aliança com Dost Mohammed, o Emir do Afeganistão, a fim de atrair aquele líder das montanhas do Hindu Kush, para um pacto com o Império Britânico. Ele adorou a missão, mas frustrou-se ao chegar a Cabul, a capital, porque lá também estava, com a mesma tarefa, o Conde Vitkevitch, um legatário da Rússia.

Aquele monte de pedras e vales inóspitos que era o Afeganistão, economicamente não valia o soldo de uma só sentinela inglês, mas estrategicamente a situação era outra. Naquelas circunstâncias, onde o Império da Rainha Vitória disputava, metro a metro, com o Império do Czar Nicolau I o controle da Eurásia, o pobre pedregulho afegão, a meio caminho entre o Cáucaso e a Índia, apartando o Irã da Turcomênia, passou a ter equivalência a pepitas de ouro.

Foi então que a arrogância inglesa pôs tudo a perder. Lord Aucland, ao saber do russo ter deitado nas almofadas do Emir, tragando um bom tabaco no naguilé do afegão, exigiu em carta, furioso, que Dost Mohammed expulsasse o conde do Palácio mandando-o de volta ao czar. Burnes viu todo o seu trabalho ser posto fora. O charme fora em vão. Retornou então a Índia. Mas por pouco tempo.

A Companhia e Lord Aucland se decidiram dar uma lição no chefe afegão. No ano seguinte, em 1839, uma coluna militar de 16,5 mil homens, ingleses, indianos e dissidentes afegãos, com o pomposo nome de Army of the Indus, abriu caminho pelo Passo de Bolan. Junto, dois camelos carregavam os cachimbos e o fumo dos oficiais ingleses. Parecia um passeio em meio a picos nevados. Tomaram Cabul. Dost Mohammed rendeu-se em novembro de 1840 e foi remetido preso à Índia.

Os oficiais britânicos, acampados no fortim de Bala Hissar, se deliciaram. Burnes exagerou: solto em Cabul, fez da sua morada um bordel informal. Em pouco tempo, ele e seus próximos devastaram os véus das afegãs. Não houve um só chador ou burka que as mãos libidinosas e heréticas dos invasores não profanassem. Em pouco tempo, formou-se uma multidão de maridos enganados. Irados, humilhados e ofendidos, no dia 2 de novembro de 1841, eles cercaram a residência de Burnes no centro da capital. Correra o boato que lá dentro havia ouro. Nem os tiros dos Cipaios que guarneciam a mansão seguraram o povo de Cabul incitado pelos maridos traídos. Burnes morreu esquartejado pela turba.

O comando militar petrificou-se. O general Elphinston, uma lamentável relíquia das guerras contra Napoleão, acovardado, encaramujou-se com suas tropas por um bom tempo no fortim, perplexo com a fúria dos afegãos que o cercavam. Aquela altura a rebelião alastrara-se. Akbar, o filho de Dost Mohammed, recém-chegado a Cabul, deu garantias de que se os ingleses se retirassem do Afeganistão não teriam o que temer. No dia 2 de janeiro de 1842, uma arrastada coluna britânica, desmoralizada, começou a mover-se de volta à fronteira da Índia.

No caminho, ao atravessarem o passo de Khoord-Cabool, tudo desabou sobre os retirantes. Milhares de afegãos de todas as tribos reuniram-se no alto dos cimos para transformar a retirada inglesa num tormento de lazarentos. Pedras em avalanchas, tiros de jezails, o fuzil de cano longo afegão, misturavam-se às flechas e lanças que vinham em chuva do alto. Os caídos, agonizantes, tinham destino pior. As vivandeiras afegãs, com pequenos punhais que tiravam de dentro das blusas coloridas, com seu estripar e degolar tornaram a paisagem um festim para os corvos.

Ao fim do décimo dia, de toda a tropa, só restou vivo um médico, o Dr. Brydon, que escapou com um cavalo de um guarda indiano mortalmente ferido. Atrás dele, nas aberturas das rochas e no fundo dos vales afegãos, desmembrados e pilhados, estavam os cadáveres dos 16 mil e tantos invasores. Dera-se lá a maior derrota militar do Império Britânico na Ásia. Em Jalalabad, cidade da fronteira, dominada pelos ingleses, a guarnição deixou durante dias uma fogueira acesa sobre o Portão de Cabul para oriental à distância os possíveis sobreviventes. A lenha se foi, a brasa apagou, e ninguém mais voltou vivo dos altos do Hindu Kush.

Por desconhecer este histórico de resistência dos afegãos é que tanto os soviéticos ( 1979-1989) como os norte-americanos e seus subordinados da OTAN (a partir de 2001), mergulharam em longas e infelizes ocupações que além de fazerem padecer morte e destruição a um dos povos mais pobres e carentes de toda a Terra não tiveram qualquer resultado a ser exaltado.

Fonte: VOLTAIRE SCHILLING