5.9.12

Grécia: o Movimento Sofista e as questões da virtude



A ética aristocrática do guerreiro grego, firmada nos Tempos Homéricos, sofreu o seu primeiro abalo com a emergência do Movimento Sofista, a partir do século V a.C., em Atenas. Até então, era comum crer que somente uns poucos eleitos, a gente de escol (elite), podia ostentar ter a Aretê, a virtude, a excelência. Acreditavam que era um atributo que desde o berço fazia parte do ethos de um jovem aristói, jamais do politikos, do cidadão comum da cidade-estado.

Os tempos, todavia, mudaram. Atenas, na transição do período arcaico ao clássico, tornou-se o que Montesquieu denominou de 'cidade comercial' e se democratizou, graças a uma série de reformas começadas por Sólon, entre os séculos VI e V a.C., seguidas por Clístenes, e aprofundadas por Péricles e Elfíates.

A antiga concepção de virtude aristocrática assumiu ares anacrônicos. Então vieram se estabelecer os sofistas. Eram os sábios ou mestres-de¿ensino que, originários dos diversos cantos do mundo helênico, se viram atraídos para a grande metrópole para nela abrir 'escolas'. Estavam preocupados em transmitir as artes da oratória e da retórica ao maior número possível de candidatos que mostrassem interesse por adquirir tecné, algum tipo de habilidade.

Na democrática cidade, a política passou a depender do logos (a palavra) e não mais necessariamente da força (da aristocracia guerreira) ou do genos (a linhagem ou clã a que os indivíduos pertenciam).

A paisagem urbana ateniense agora estava tomada por metecos (mercadores estrangeiros) e seus descendentes (negociantes, marinheiros de todos os quadrantes, artesãos, construtores, artistas, ceramistas, e aventureiros de todas as espécies). As verdadeiras batalhas travadas na democracia se davam tanto nos espaços públicos (praças, ginásios, estádios) como nas instituições oficiais da polis (assembléia popular, tribunal popular, areópago, etc.).

Democracia, o império da palavra
No novo regime implantado pelas reformas de Clistenes, a partir de 508 a.C., a cidade-estado se tornou uma espécie de soberana informal e a grande educadora e formadora dos homens-livres que nela habitavam. Como bem observou o famoso sofista Górgias sobre o extraordinário poder de arrebatamento provocado pela palavra (in Elogio à Helena § 8-14):

"A palavra é uma grande dominadora, que com corpo pequeníssimo e invisível cumpre as obras mais divinas, porque pode fazer desaparecer o temor e tirar as dores, infundir alegria e inspirar piedade. Torna-se produtora de prazer e alija a dor, pois o poder de encantamento ... arrebata-a, persuade-a, transformando-a mediante sua feitiçaria ... faz com que o incrível e o invisível apareçam aos olhos da crença. ... Pois assim como os diferentes remédios expulsam do corpo de cada um diferentes humores, e alguns fazem cessar o mal, outros, a vida, assim também entre os discursos uns geram aflição, outros deleite, uns amedrontam, outros excitam à ousadia os que ouvem, outros envenenam e fascinam a alma por meio da persuasão malvada." (cit. por R. Mondolfo, pág. 131).

Deste modo, os sofistas (não se sabe ao certo quanto eles somavam, talvez uns 100 ou 200 atuando em pontos diversos de Atenas), tais como Trasímaco, Cálicles, Hípias, Próticos, Górgias e Protágoras, o mais celebrado de todos, não tardaram em reunir um séquito de admiradores. Jovens curiosos em aprender as artimanhas e truques que lhes possibilitassem vencer as polêmicas ideológicas e discussões políticas, habilitando-os à vida pública. Naturalmente que tais ensinos davam uma razoável ou boa remuneração ao mestre (o que para Sócrates era um insulto negociar com o ensino e o conhecimento).

A atração exercida pelos sofistas em grande parte se devia a que o discurso convencional da filosofia corrente em Atenas insistia na sofrosine, na moderação, num comportamento prudente, condizente, que exigia certa reflexão antes da ação.

Poucos jovens, sedentos por aventuras e em busca de feitos estavam dispostos a conformar-se com isto. A expressão de tranquilidade e indiferença para o que ocorria ao arredor era o apanágio das estátuas e não de quem se lançava na vida com certa voracidade.

Nem a religião com seus cerimoniais de sacrifício aos deuses, profecias e consultas oraculares, ensinava alguma coisa, tão pouco a poesia que no máximo passava como um exercício de memória e encantamento. Coube aos sofistas darem aulas de iniciação à matemática, às noções de música e às ciências e a tudo mais que estava ao alcance deles.

Protágoras, maior de todos
"O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são das coisas que não são, enquanto não são". Protágoras de Abdera

Próximo a Péricles, Protágoras de Abdera (falecido provavelmente em 415 a.C.) tornou-se o mais autêntico símbolo vivo do movimento sofista. Sua contribuição principal foi ter-se voltado contra os costumes arraigados e o pensamento dogmático. Relativista, afirmou que qualquer situação tem dois lados da questão (no seu tratado "As Antilogias"), não havendo, por conseguinte "verdades absolutas".

Ele, além de ter sido um dos primeiros filósofos envolvidos diretamente com a educação no sentido mais amplo possível, foi considerado um dos precursores do pensamento crítico, negador dos valores absolutos. O que se mostrou ao longo da história no mais eficaz antídoto à ortodoxia, ao pensamento único e ao fanatismo.

Entre as dificuldades entre a crença e a descrença, por exemplo, ele propôs uma solução antropocêntrica: o homem-medida (no tratado "A Verdade"). Isto é, é o homem - e não as forças sobrenaturais - quem afinal define o que lhe parece certo ou errado, dando-lhe assim enorme autonomia de escolha e discernimento, quando não a plena autarquia (palavra inventada pelos sofistas). Acusaram-no de subjetivismo.

Protágoras é tido, também, em razão da sua celebração da importância da consciência humana, como um dos patriarcas do Humanismo Ocidental. Foi um dos poucos intelectuais daquele tempo a se mostrar simpático à democracia e defensor de uma posição mais positiva das mulheres na sociedade.

Mesmo Platão, inimigo declarado dos sofistas, rendeu-lhe reconhecimento (in Protágoras). Atitude que, séculos depois, foi retomada por G.W.F. Hegel. Justamente por retirar das divindades o papel de árbitro das coisas transferindo-o para o homem, terminou sendo punido.

No ano de 444 a.C., ele foi acusado de ser indiferente aos poderes sagrados (hoje, diríamos agnóstico, expressão inexistente naquele tempo) e condenado ao desterro. Ele publicamente proclamara que "A respeito dos deuses não saberia dizer se existem ou não, pois muitas coisas impedem este conhecimento, tanto a obscuridade do assunto mesmo como a vida do homem, que é tão breve" (citado por Diógenes Laércio IX).

Numa cerimônia tétrica, todos os seus escritos foram incinerados em público (Atenas, em geral liberal e tolerante, era eventualmente possuída por surtos obscurantistas). Pouco depois, em 431 a.C, o mesmo sucedeu com os textos de Anaxágoras que também teve que marchar pela estrada do exílio.

A reação antissofista
Como não poderia deixar de ser, a agitação dos sofistas e sua aberta e proclamada irreverência frente aos valores tradicionais (fossem, os da religião, do mito ou da filosofia), provocaram forte desconforto seguida de contundente reação entre outros pensadores.

Este papel central de opositores dos sofistas foi assumido por Sócrates e pelo seu discípulo Platão. Ambos conseguiram transformar a expressão sofista junto ao público ocidental, culto e interessado em algo que não merecia a confiança dos autênticos estudiosos.

Primeiro, porque a sofística estava associada a mestres-de-ensino que desprezavam as certezas e tendiam à superficialidade no que toca à busca do verdadeiro conhecimento. E, em segundo, acentuou Platão, não se preocupavam com a technai, isto é, com as 'atividades genuinamente científicas', mas apenas com o palavrório vazio senão que charlatanesco.

Era uma prática "espúria", digna apenas de "um mercador do ensino", de "um falsificador da filosofia", não de um verdadeiro "amigo da sabedoria".

Trataram de desqualificar o sofista como um mestre em falácias, e com sucesso. Desde então, pelos dois mil anos em diante, a palavra foi associada a uma prática intelectual e moralmente desprezível, coisa de aproveitadores, de gente pouco séria, voltada ao engano para fazer dinheiro com prestidigitações verbais, como se fossem mágicos tirando argumentos das mangas. Com o cristianismo, as acusações sobre eles pesaram ainda mais, pois os patriarcas da Igreja os acusaram de corromper e degenerar a juventude grega.

A virtude está ao alcance
Um dos aspectos que por mais incomodou os filósofos "clássicos" foi a questão da Aretê, a virtude. Os sofistas pregavam que ela estava ao alcance de qualquer politikós, do cidadão comum. Não se prendia às raízes arcaicas que a identificavam exclusivamente como um atributo dos aristói. Ela podia ser ensinada sim, mesmo aos que não possuíam sangue nobre nem pertenciam às castas históricas.

A estas alturas, Aretê passou a ser entendida como ação do eleuthérios, do homem-livre que se identificava com os assuntos públicos, o que ativamente participava dos temas coletivos profundamente envolvido no destino da cidade-estado. Ser virtuoso era ser engajado. Alguém atento aos acontecimentos em geral e que procurava neles atuar de um modo qualificado, digno, que revelasse seu amor à pátria e não apenas aos seus interesses privados ou dos seus familiares.

Por vezes, ainda que imperasse entre os sofistas, como em qualquer outra atividade humana, grupos de mal intencionados, de embusteiros e impostores, o objetivo geral do movimento foi positivo. Particularmente no sentido de abalar o domínio quase absoluto que a nobreza exercia sobre as ideias e os assuntos públicos, abrindo caminho para uma democracia que fosse mais representativa da população em geral.

Para tal, difundiram os critérios, regras e técnicas, que se faziam necessários para tornar alguém um bom orador, bem como dotá-lo de certo nível de cultura que não o inibisse no desejo de se expressar frente a indivíduos de origem social mais elevada e que tivessem maior intimidade com as expressões eruditas. (*)

(*) As opiniões políticas dos sofistas não eram uniformes, Longe disto. Ménon, por exemplo, um discípulo de Górgias, era abertamente antidemocrata, defendia que a justiça era o direito do mais forte e que pela lei natural o mais dotado necessariamente tinha que liderar os mais fracos e fazê-los obedecer. (ver E. Zeller, pág.97)

Ainda a questão da virtude
Como observou G.B. Kerferd, é enganadora a simples tradução da palavra Aretê por virtude. O seu entendimento para os gregos era bem mais amplo: "De modo geral, a virtude denotada por Aretê compreendia todas aquelas qualidades que, no homem, contribuíam para o seu sucesso na sociedade grega e que seguramente garantiam admiração dos seus concidadãos, sendo acompanhada em muitos casos, por substancial recompensa material" (ver O Movimento Sofista, pág.224 ).

E, neste caso, a extensão do conceito de Aretê, de virtude, ao maior número possível de cidadãos, abriu-lhes as portas para ingressarem nas instituições maiores da polis. Ela era a chave do sucesso e da ascensão pessoal. (*)

(*) Um entendimento mais favorável aos sofistas, que haviam sido banidos da história da filosofia, começou historicamente em tempos mais recentes, particularmente no século XX, como o surgimento de uma cuidadosa revisão ou reavaliação feita por uma nova geração de helenistas europeus, entre os quais se destaca o britânico W.K.C. Guthrie e G.B.Kerferd, entre tantos outros. Em parte, influenciados pelas Lições sobre a História da Filosofia, que G.W.F. Hegel publicou post-mortem, em 1833. Para o filósofo alemão, seguindo sua lógica dialética, não haveria Sócrates nem Platão sem a existência prévia dos sofistas. Sendo que o maior exaltador deles foi o helenista George Gote, que, em sua A history of Greece; from the earliest period to the close of the generation contemporary with Alexander the Great. (História da Grécia), escrito entre 1846-56, classificou os sofistas como "campeões do progresso intelectual".

Fonte: VOLTAIRE SCHILLING