Aníbal e seu exército - O inferno de Roma Uma inesquecível derrota ensinou aos romanos que a inteligência é uma arma quente contra a força bruta. Uma extraordinária vitória mostrou aos cartagineses que humilhar o grande pode custar caro em longo prazo
Verão de 216 a.C. Havia quase dois anos, Roma e Cartago se enfrentavam na região da bacia mediterrânea ocidental. O exército de Aníbal, um dos maiores estrategistas militares da história, saiu da Península Ibérica, passou pelos Pirineus e pelos Alpes e acabou na planície do Pó, onde triunfou sobre três legiões que Roma enviara para derrotá-lo. As batalhas ficaram conhecidas como Ticino (novembro de 218 a.C), Trebia (dezembro de 218 a.C) e Trasímeno (junho de 217 a.C).©JASTROW (2006)/CREATIVE COMMONS O grande estrategista: triunfo sobre três legiões e, mais tarde, sobre um exército inteiro Aníbal contando os anéis dos romanos mortos durante a batalha, escultura, Sebastien Slodtz, 1704, Louvre
Depois de perder 20 mil homens na batalha de Trasímeno, os romanos decidiram protelar. A ordem era assediar o exército de Aníbal para enfraquecê-lo aos poucos, mas sem lutar. Em resposta a essa estratégia, Aníbal multiplicou os ataques de surpresa e as pilhagens, espalhando fogo e devastação por toda a Península Itálica.
Daí em diante, os romanos não puderam mais ficar inativos, num jogo de suposta inteligência que fracassou diante da força. O inimigo desafiou sua potência, até mesmo diante de aliados. Por isso o Senado de Roma decidiu enviar seus exércitos ao encontro de Aníbal. O general cartaginês queria batalha? Pois teria, mas com uma amplidão que nem imaginava! Assim pensavam os então perdedores, ávidos por uma vitória que os redimisse da humilhação recente.
Assim, na manhã de 2 de agosto de 216 a.C, oito legiões e auxiliares, num total de quase 100 mil soldados, acampou na planície de Cannes, na costa adriática, sob o promontório de Gargano. Foi o maior exército reunido por Roma até aquele momento.A batalha final: um feito cartaginês contado e retratado século após século Escudo do rei Henrique II da França, estampado com cena da batalha de Cannes; aço banhado de prata e ouro, relevo atribuído ao ferreiro Etienne Delaune, Metropolitan Museum, Nova York
Na véspera, Aníbal havia oferecido combate. Chegou a alinhar suas tropas perto do rio Aufides (atual Ofanto). O cônsul Paulo Emílio, que comandava os romanos naquele dia, preferiu deixar suas legiões entrincheiradas nos seus campos. Já o cônsul Varrão estava decidido a não perder essa oportunidade. Os cartagineses queriam combater na margem esquerda?, indagou. Pois os romanos iriam esperá-los na margem direita! A idéia era não dar ao adversário a escolha do local do confronto.
Era exatamente o que esperava Aníbal, que sabia, por informantes, da ordem de lutar dada aos romanos. A margem direita significava terreno ainda mais favorável às evoluções de sua cavalaria, que constituía a grande vantagem do exército cartaginês.
É verdade que a infantaria púnica, com 40 mil homens, tinha bem menos da metade do tamanho da infantaria dos romanos. Essa superioridade numérica era a chave do moral dos senadores, quando decidiram reagir a Aníbal: estavam certos de esmagar rapidamente o inimigo, com sua massa inumerável e seus infantes.
Na aurora daquele dia, as trombetas ressoaram no campo romano. Sem tardar, soldado por soldado, legião por legião se alocaram na margem direita do Aufides. Algumas centenas de metros à frente, um grupo de cavaleiros inimigos subiu a galope uma pequena colina perto da cidade de Cannes. Era Aníbal e seus oficiais, que foram observar o inimigo. Sem ouvir as ordens dadas pelos líderes, eles só viram o formigueiro humano, que tomou aos poucos a forma de uma fita de Os longos escudos romanos, marca registrada de um exército que se julgava invencível Detalhe do monumento Ahenobarbus, Museu do Louvre, Paris
Em torno de Aníbal, a tensão aumentou. Por mais experientes que fossem os chefes cartagineses, nenhum jamais havia visto tamanho exército. Curiosamente, porém, o general pareceu mais relaxado. Ele queria aquela batalha. Tinha então a convicção de ter o adversário à sua mercê na planície de Cannes, que percorreu em todos os sentidos durante um mês, para conhecê-la no detalhe. E ele ordenou o desdobramento de seu exército.
OTIMISMO Entre os romanos, as colunas vinham próximas umas das outras, para aumentar-lhes, na hora certa, a força do impacto. Havia uma febre otimista entre os homens – jovens e velhos. Roma inteira estava ali, todo o Lácio também e todas as cidades aliadas. De uma fileira à outra, os do bairro do Esquillino e os que moravam perto do mercado de bois, os nativos de Tibur e os de Prenestino, todos se interpelavam e se encorajavam com uma alegria barulhenta. Ali, pensavam eles, não mais seria possível uma emboscada, não haveria mais uma neblina como a de Trasímeno!
Os dois exércitos ficaram frente a frente na planície de Cannes. À esquerda, os romanos colocaram sua cavalaria, comandada pelo próprio Paulo Emílio. No centro, a imensa massa da infantaria legionária vinha comandada pelos cônsules Minucius Servilius. O cônsul Varrão liderou a cavalaria da ala direita.
O exército púnico estava a aproximadamente mil passos. À esquerda, gauleses e espanhóis obedeciam a Asdrúbal, irmão de Aníbal. No centro, junto com o mítico general, estavam 22 mil infantes espanhóis, acompanhados de celtas e ladeados por dois corpos da reserva, cada um com 5 mil líbios, chamados africanos. À esquerda, Hannon, sobrinho de Aníbal, liderava a cavalaria da cidade de Numídia.Revide romano 70 anos depois: a Cartago de Aníbal é totalmente destruída Cartago queimada e sitiada, Mathäus Merian, século XVII
Assim, dos dois lados, os generais se colocaram onde seus dispositivos pareciam mais fracos: Varrão e Paulo Emílio com sua relativamente pequena cavalaria; Aníbal no meio de seus infantes, marchando em número menor que o exibido pelo inimigo.
Começou, então, a batalha. Os atiradores formaram fileiras: arqueiros e lançadores de dardos surgiam e voltavam correndo, fazendo chover projéteis nas fileiras adversárias. Os cavaleiros entraram na luta. Os esquadrões de Asdrúbal atacaram os homens de Paulo Emílio, jogando-os no chão. No centro, à maneira de duas muralhas de ferro, as infantarias pesadas começaram a se dirigir uma contra a outra e, no confronto, tomou conta do local o barulho ensurdecedor de espadas batendo em escudos.
A carnificina foi terrível, mas o moral dos romanos se manteve, e a imensa infantaria aumentou a violência diante da expectativa de uma vitória próxima. Subitamente, o front cartaginês tomou a forma de uma grande cavidade, um arco de círculo, para o qual convergiram, ébrios de furor, todos os romanos. Esgotados pelos combates que tinham acabado de travar, os veteranos procuravam, com os olhos, as unidades que revezariam com eles. O que viram mudou o desfecho desse combate, que parecia tão certo minutos antes.
Colunas de soldados, munidos de longos escudos romanos, passaram a girar em torno dos legionários. Cego pelo suor e pelo vento alto, o tribuno Gnacus Lentulus compreendeu: esses soldados, cuja tez morena ele distinguiu sob os capacetes, não eram romanos, mas sim os africanos de Aníbal, equipados com as armas dos mortos de Trasímeno!
Era tarde demais para reagir. Colunas líbias bloquearam as saídas, e os legionários ficaram presos na armadilha, vendo o inimigo se reorganizar velozmente e partir para a ofensiva. A saída da emboscada seria providenciar uma formação em quadrado, mas os cavaleiros de Asdrúbal entraram em cena e impossibilitaram a manobra.
O exército dos cônsules ficou totalmente cercado, em desespero. Muitos tentaram lutar, mas caíram um a um. Alguns se mataram. Outros foram tomados pela loucura. A tropa de elite sucumbiu, Paulo Emílio morreu, e o massacre foi total.
Ao fim de nove horas de combates, Varrão levou a Roma a notícia de sua mais sangrenta derrota: morreram na planície de Cannes três cônsules, 80 senadores, mais de 30 oficiais superiores e nada menos que 60 mil soldados. Pelo menos 10 mil homens foram feitos prisioneiros.
A batalha, para sempre foi vista como caso exemplar da vitória da inteligência sobre a força bruta. Os romanos jamais a esqueceram e tiraram dela suas lições. Mais tarde, também os cartagineses aprenderiam que certas vitórias resultam em alto preço a pagar em longo prazo.
Aníbal não sabia, mas seu invejável desempenho como general tornou impossível qualquer acordo futuro com Roma. Muitos anos depois, em 146 a.C, a destruição final e total de Cartago foi a conseqüência do que aconteceu na batalha de Cannes.
UM GENERAL ANTIIMPERIALISTAPertencente à poderosa família dos Barcides, Aníbal era filho de Amílcar, conquistador de boa parte da Península Ibérica. Desde a infância, foi animado por uma vontade indomável de dar a Cartago uma revanche, por causa da derrota na primeira guerra púnica (254-241 a.C).
Militarmente, Aníbal foi formado pelos métodos helenísticos, introduzidos em Cartago em 240 a.C., e sua estratégia é semelhante à de Alexandre, o Grande: superar a inferioridade numérica em relação ao adversário, graças a uma guerra clara, com foco no centro do poder inimigo. Aníbal foi também inovador: vez por outra, criava unidades pequenas e móveis em seu exército, capazes de manobras complexas no campo de batalha.
Segundo Mhamed Hassine Fantar, professor universitário de história antiga e arqueologia na Tunísia, é provável que Aníbal tenha sentido o perigo de uma Roma que era a única potência do Mediterrâneo em meados do século III a.C. Nessa hipótese, teria se levantado contra o imperialismo, com o objetivo de obter uma política de equilíbrio regional que incluísse, pacificamente, cartagineses, romanos e gregos. – A. G.
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