Elena Filatova é uma das pessoas que mais escreveram sobre o tema.
'A pior coisa de Chernobyl é que ela não deixa esperança', diz.
A ucraniana Elena Filatova, em Pripyat, conhecida como cidade fantasma (Foto: Divulgação)
Vinte e três anos atrás, uma pequena cidade no norte da Ucrânia estava escrevendo uma das páginas mais negras da história. Em 26 de abril de 1986, a explosão do reator número 4 da usina nuclear de Chernobyl despejava no ar e na terra uma quantidade enorme de resíduos altamente radioativos. Junto com milhares de inocentes, o planeta iria pagar por uma série de erros - que tiveram início na complexa construção do reator e culminaram na simples falta de comunicação entre os técnicos do turno da noite. Era o começo de um pesadelo radioativo, tantas vezes previsto, mas até então inimaginável.
Elena Filatova, ou "KidOfSpeed", é uma das pessoas que mais escreveram sobre a "Zona Morta" - área de aproximadamente 30 km² criada após o acidente de Chernobyl - na Ucrânia e na Bielorrússia. Alguns anos atrás, seu site virou sensação no mundo por mostrar um passeio pela região em uma moto, lembrando o que, para muitos, estava enterrado sob o sarcófago. A ucraniana trouxe novamente à tona a mórbida paisagem que sofre os efeitos da radiação. A explosão, cem vezes mais radioativa que as bombas de Hiroshima e Nagasaki juntas, deixou, além de um legado de mortes, um perigo invisível, silencioso e cruel: os raios gama, o pior e mais letal forma de ionização.
"A radiação gama é cumulativa, vai somando-se com o tempo. Humanos podem se expor a uma quantidade X de raios gama durante sua existência. É como se você recebesse dinheiro suficiente para gastar durante toda a sua vida", explica Filatova. "Você deveria gastá-lo de forma sábia. Os cientistas que trabalham no sarcófago de Chernobyl podem desperdiçar seu 'capital' em algumas horas. Em Chernobyl, como na vida, alguns gastam em um lugar o que outros fazem durar por anos. E sintomas como vômitos e náusea significam que a 'falência' está muito próxima."
Os primeiros bombeiros que chegaram para apagar o incêndio na usina simplesmente desintegraram depois de algum tempo. E ainda hoje, 23 anos depois, há bolsões de radioatividade altíssimos na cidade de Pripyat, que abrigava os trabalhadores da usina e seus parentes. Os maiores deles estão dentro dos prédios, na floresta chamada "Madeira Vermelha" (que, segundo dizem, tem esse nome por ter brilhado no escuro após a explosão) e nos cemitérios da "Cidade Fantasma", como é conhecida Pripyat.
Nova Pompéia
O grafite usado para extinguir o fogo no reator foi enterrado neste local, considerado um dos mais tóxicos do planeta. Hoje, a "Zona Morta" volta à vida, mas de uma forma estranha. Por ano, centenas de turistas pagam cerca de US$ 400 por um dia de passeio pela sinistra região, segundo o Chernobylinterinform. E muitos dos guias também cobram "extras" pelo serviço.
E o que jaz sob o sarcófago de concreto que cobre o reator 4 da usina de Chernobyl vai permanecer ativo por mais de 100 mil anos. "As pirâmides do Egito duram 6 mil anos. Chernobyl é nossa contribuição para a História da Humanidade. É uma Pompéia dos tempos modernos", lembra Filatova.
Aliás, a própria ucraniana é acusada de ser um "subproduto da radiação": ela nunca teria ido de moto à região. Uns simplesmente ouvem os guias, que falam o que for preciso para desacreditá-la. Outros, culpam o governo pelo que chamam de "tentativa de silenciar a verdade". Os céticos dizem que seus relatos - e seu passeio de moto - são inverossímeis, enquanto os idealistas dizem que o propósito de Filatova é simples: usar a internet para não deixar a tragédia cair no esquecimento, mesmo que o preço seja sua reputação. "É inútil questionar se algo ou alguém é real ou não. Quem não é real, vai dizer que é. E quem for, vai silenciar. Exatamente como Chernobyl", finaliza a ucraniana.
G1 - Você contou em quantas cidades mortas já esteve?
Elena Filatova - Antes que eu perdesse a conta, eram cerca de 180 cidades e vilas mortas, mas isso foi há alguns anos e eu visitei muitos lugares após isso. No total, na Ucrânia, Bielorrússia e Rússia, o acidente de Chernobyl 'matou' cerca de 2 mil cidades e vilas. Um quarto desse total era de grandes cidades e grandes vilas. O resto eram fazendas, vilarejos ou povoados muito pequenos, que nós chamamos de 'hutors'.
G1 - O que ucranianos e bielorrussos dizem ou leem sobre a tragédia hoje em dia? Parece que as pessoas se acostumaram e permanecem muito calmas a respeito.
Elena Filatova - Bielorrussos não podem falar muito, não têm liberdade de expressão e falar a verdade pode ser perigoso. Na Bielorrússia, alguém que publique uma pesquisa verdadeira sobre Chernobyl será preso ou simplesmente irá sumir. Assim, não há quem fale a verdade.
Na Ucrânia, após a Revolução Laranja, falar a verdade não é proibido, muito embora ucranianos falem pouco dessas coisas. O que parece um paradoxo, mas não é. Nietzsche disse uma vez que a verdade encontra mais defensores onde falar a verdade é perigoso e encontra menos defensores onde falar a verdade é tedioso.
G1 - Você viu muito da maior tragédia da Humanidade. O que é, na sua opinião, a pior coisa sobre o acidente?
Elena Filatova- A pior coisa de Chernobyl é que ela não deixa esperança. Eu disse uma vez que em um dos portões de Chernobyl escreveria o que Dante escreveu na entrada de seu Inferno: 'Todas as esperanças abandonam aqueles que entram aqui'.
Em todas as línguas, temos ditados como 'a esperança é a última que morre' ou 'onde há vida, há esperança'. A desesperança rouba nossas forças enquanto caímos em torpor. Nenhum homem pode se mover sob desesperança. As pessoas apenas dão as costas ao problema, sem esperança, já que estão apenas tentando esquecer.
G1 - Você sempre comenta a tragédia com citações filosóficas ou religiosas. Você acha que, em lugares como Pripyat, Chernobyl ou qualquer outra zona morta, há espaço para religião?
Elena Filatova - É, definitivamente, religião. Eu sempre soube que Chernobyl havia sido prevista na Bíblia, mas nunca liguei. Até o dia que tive um momento de grande compreensão sobre essas profecias. Isso aconteceu perto de uma fazenda, na zona morta, bem perto da usina. De repente, eu percebi que a profecia da minhoca e a verdade sobre as seguintes passagens se tornaram claras para mim:
Isaías 13:21,22 - Mas as feras do deserto repousarão ali, e as suas casas se encherão de horríveis animais; e ali habitarão as avestruzes, e os sátiros pularão ali. As hienas uivarão nos seus castelos, e os chacais nos seus palácios de prazer; bem perto está o seu tempo, e os seus dias não se prolongarão.
Isaías 34: 10 - Nem de noite nem de dia se apagará; para sempre a sua fumaça subirá; de geraçäo em geraçäo será assolada; pelos séculos dos séculos ninguém passará por ela.
Fonte: G1