20.7.09

Fé e Razão no Ocidente Medieval: Mosteiros, Catedrais e Universidades



Durante os primeiros séculos da ascensão do Cristianismo como religião oficial do Império Romano e depois dos Reinos Bárbaros, a apologia da fé foi o principal motor da Patrística, a teologia da nova crença. Formou-se então um campo próprio: o campo da fé. Com o tempo, e com a consolidação do poder da cruz, um novo território se fez necessário abrir, o do campo da razão.


O Campo da Fé


O desabamento do Reino dos Césares e a “pavorosa revolução” que se seguiu a partir do século V, provocaram profunda e radical mudança nos costumes dos homens e mulheres daquela época. Um querer afastar-se de tudo, um sincero desejo de renuncia da vida tomou conta de boa parte da antiga elite do Império Romano, atitude que contaminou inclusive os germanos recém chegados e recém convertidos ao cristianismo. Multiplicaram-se então os mosteiros e os conventos, considerados como os únicos espaços adequados ao que restava da existência de um cristão na Terra. O monaquismo se espalhou pela Europa bárbara como fogo em palha
Entenderam aqueles edifícios, imponentes construções de pedra que dominavam os altos das colinas e das montanhas de boa parte da Europa, como os únicos habilitados, graças ao ambiente angélico, a promoverem a entrada de um crente no Reino dos Céus.


O mosteiro ou o convento era a Cidade de Deus aqui na Terra, o protótipo humano do mundo da perfeição que certamente os bem-aventurados encontrariam no Além. Chateaubriand, um apologista do Cristianismo, os denominou como “espécies de fortalezas que a civilização se abrigou sob o pendão de qualquer santo(...) sem a inviolabilidade do claustro, os livros e as línguas da Antiguidade não nos teriam sido “transmitidas..”(cit. por Daniel-Rops, pág.407).


Apesar de dotados de farta livralhada, códices, rolos e pergaminhos antigos, as bibliotecas monacais não estavam voltadas para o conhecimento mas para a exaltação e celebração de Deus. Em suas mesas debruçavam-se os copistas, monges laboriosos e pacientes que reproduziam uma a uma, com caligrafia finamente trabalhada, as páginas dos Livros Sagrados ou as dos sábios e literatos pagãos. Impediram assim com seu dedicado labor que os memoráveis preceitos e os diversos estilos do passado viessem a cair no esquecimento, preservando-os para o futuro.

As Ordens Religiosas

A Torre de Babel
Surgem então as primeiras Ordens Religiosas (*): em Montecassino fundou-se a Abadia dos Beneditinos, no ano de 529, por iniciativa de Bento de Núrsia, o prior responsável pela fixação das famosas Regula Benedictique serviriam de modelo para as demais constituições monacais que iriam se formar posteriormente. Entre elas a famosa Ordem Cluniacense ou de Cluny fundada por S.Bernardo na Abadia de Clarivaux, o “Vale da Luz”, na Burgúndia, no ano de 1115. Em 1209 foi a vez de Alberto de Jerusalém legar regras para a Ordem dos Carmelitas, monges que moravam no Monte Carmelo, na Terra Santa.


Neste mesmo ano, Francisco di Boldone, um filho de um bem sucedido comerciante de tecidos da Úmbria que abandonara a família para dedicar-se aos pobres e aos desvalidos, também estabelece as regras para os seus companheiros, os irmãos franciscanos, os Penitentes de Assis, a quem, repetindo o Evangelho de Mateus, teria dito “todo aquele que quiser seguir-me, renuncie a si mesmo e tome a sua cruz” .


Dois anos depois da morte dele, seus seguidores da Ordem dos Irmãos Menores, providenciaram a edificação da monumental Basílica de Assis, em 1228. A Ordem dos Irmãos Pregadores, por sua vez, mais conhecida como Dominicana, autodesignada como a “Milícia de Cristo”, bem mais intelectualizada do que a dos franciscanos, foi fundada pela mesma época ,em 1217 em Toulouse, na França por S.Domingos de Gusmão, o seu primeiro Mestre-Geral. Ainda que sua intenção era combater a heresia dos cátaros, não se descuidou de estar presente em Roma por meio dos conventos de São Sisto e de Santa Sabina.

(*) Ordem, para os romanos chegou a designar um corpo privilegiado isolado do resto e investido de responsabilidades particulares. Também foi percebida como uma organização justa e boa do universo, aquilo que a moral, a virtude e o poder têm como missão conservar. Entenderam-na por igual como “um exército que lutava contra o mal”, com diferentes tarefas e diferentes ofícios hierarquizados.(ver G.Duby - Los tres órdenes.... pág. 99-102)

As catedrais

S.Bernardo de Clarivaux, fundador de Cluny
O Campo da Fé iria reforçar-se ainda mais a partir do Ano Mil com a proliferação da construção de imensas catedrais por toda a Europa. Por primeiro, tidas como “a mais bela expressão da Cristandade”, foram erguidas no estilo românico (séc. X-XI) e depois no estilo Gótico (XI-XV). Monumentos espetaculares que servirão como prova da recuperação do esplendor da vida urbana e testemunho da afirmação coletiva da sociedade medieval em favor da fé cristã.


Ainda que muitas das suas primeiras pedras tenham sido afixadas por monges e por bispos, foi o povo das cidades quem as levou a contento, arregimentando para tanto mestres-construtores, pedreiros, carpinteiros, escultores, pintores e vitralistas, para erguerem suas torres e sinos, esculpirem suas grandes portas e embelezar o interior das suas naves. Para eles a catedral era a Casa de Deus, a morada de Cristo e dos santos, e por isto nada devia ser poupado.


Datam desta época, entre outras, as famosas catedrais de Worms e de Colônia, na Alemanha; o Pórtico Real de Chartres , a de Notre Dame de Paris, a Notre-Dame de Reims, a St. Sernin de Toulouse, a St. Trophyme em Arles, a abadia de St. Madeleine de Vezelay e a Catedral de Autun, todas elas na França. Na Itália, merecem destaque a de Santo Ambrósio de Milão e a Catedral de Pisa.

O Campo da Razão

O mestre e seus discípulos
No medievo, os colégios originavam-se das catedrais, dos palácios ou dos mosteiros. Eram modestos estabelecimentos de ensino voltados para as primeiras letras e para as lições de catecismo. Cada qual atendia sua freguesia, por assim dizer. Somente os colégios-catedrais evoluíram para tornarem-se universidade, abrindo assim espaço para que, em meio as enormes dificuldades da época, o Campo da Razão se viesse a estabelecer.(*)


Primeiramente, é interessante saber o que se entendia então por Universitas, que para seus integrantes era uma agremiação de alunos e professores, um todo formado pelo corpo docente e pelo corpo discente e não uma congregação de faculdades distintas como a definiram posteriormente.

Isto é que nos faz entender que uma universidade do Medievo fosse inteiramente voltada para um só conhecimento: a teologia, a medicina ou o direito,e não para as multiplicidades de ciências como nos dias de hoje. Engendrando preservarem ao máximo sua autonomia, de tudo fizeram para receber a proteção do Papa ou do Imperador do Sacro Império, soberanos que estavam longe, para que não sofressem a ingerência das autoridades locais, fossem os condes, os bispos ou as assembléias e os senados das cidades onde as universidades eram erguidas.
Sua existência decorreu da demanda por quadros de profissionais qualificados para atender os anseios da sociedade medieval atrás de peritos das coisas do Céu (os teólogos), das Regras (os advogados e juízes) e da Saúde (os médicos)

(*) Coube ao papado,a partir do III Concílio de Latrão, realizado em 1179, tomar a iniciativa de determinar que as catedrais fossem dotadas com escolas de ensino gratuito, sendo que o mestre-pedagogo seria dotado de um benefício.


As Universidades e os Doutores

As instituições de ensino superior não poderiam existir sem o surgimento de um novo elemento no quadro social do medievo: o mestre-de-ensino, o doutor acadêmico. Primeiramente eram todos eles egressos dos mosteiros ou das ordens religiosas que recebiam a missão de se dedicarem à causa do conhecimento, mas com o tempo professores laicos foram os substituindo.


Tornaram-se célebres os nomes dos “doutores santos” como Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Siger de Brabante, Alberto Magno, de Guilherme de Ockham e de Jean Duns Scotus: os famosos doutores de Paris como Autrencourt, Buridan, Oresme, o celebrado mestre Abelardo, ou ainda o gramático Mino da Colle que exortava seus discípulos dizendo-lhes; "a posse da ciência pesquisada é superior a não importa qual outro tesouro; ela torna o pobre consciente do seu poder; ela transforma em nobre o não-nobre; ela confere uma reputação ilustre, e permite aos nobres ultrapassarem os não-nobres ao pertencerem a uma elite.”(cit.J.Le Goff - Les intellectuels..pág.144).

Coube a eles, aos doutores escolásticos, enaltecerem em meio a uma sociedade profundamente hierárquica, baseada nos direitos do sangue e da tradição, a excelência de uma outra nobreza que não a conquistada pelas destrezas das armas: aquela obtida pelo conhecimento, pelo domínio das ciências.


Uma nobreza, destra no latim, que arrancava seus títulos a custa do estudo, da pesquisa, da indagação, da destreza na dialética, uma gente precocemente míope quanto não cegada pelo exercício excessivo da leitura, perdida em meio aos alfarrábios e aos tratados dos sábios encontrados o claro-escuro dos desvãos das bibliotecas. Uma Nobreza do Livro enfim.


Seus espaços foram os auditórios e as salas de aula das universidades de Bologna (1088), Oxford (1096), da Sorbonne (1170), de Modena (1175), de Montpelier (1220) de Pádua (1222), de Salamanca (1228), de Coimbra (1290), de Heidelberg ( 1386), etc. onde fizeram nome como artistas da palavra e do raciocínio lógico, desafiando seus alunos e seus rivais da academia para os célebres debates que incendiavam a platéia. Deles é que derivou todos os avanços espetaculares obtidos pelas ciências ocidentais nos séculos que ainda estavam por vir.



Bibliografia

Boehner, Philotheus, Gilson, Etienne, – A História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Editora Vozes, 1988.


Chateaubriand, François-René – O Gênio do Cristianismo. São Paulo: Jackson, 1952, 2 vols.


Daniel-Rops, Henri – A Igreja das Catedrais e das Cruzadas. Lisboa: Quadrante, 1993.


Duby, Georges – Los tres ordenes o lo imaginário del feudalismo.Madri: Editiones Petral, 1980.


Duby, Georges – No Tempo das Catedrais. Lisboa:Estampa, 1978.


Duby,Georges- História Artística da Europa.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, 2 vols.

Gilson, Etienne – Deus e a Filosofia. Lisboa: Edições 70, s/d.


Gilson, Etienne – A Filosofia na Idade Média. São Paulo;Martins Fontes, 2001.


Lê Goff, Jacques – As raízes medievais da Europa.Petrópolis: Editora Vozes, 2006.


Le Goff, Jacques – Les intellectuels au Moyen Âge.Paris:Editions du Seuil,1972.


Pirenne, Henri – As cidades na Idade Média. Lisboa;Europa-América, 1997.


Verger,Jacques – As Universidades na Idade Média.São Paulo:UNESP. 1990.

Fonte: