3.9.09

Ricardo Coração de Leão



RICARDO CORAÇÃO DE LEÃO

Ricardo I (1157-1199), terceiro filho de Henrique II, rei da Inglaterra, recebeu aos onze anos o ducado de Aquitânia, na França, do qual tomou posse em 1169, mas a partir de 1173 a 1188, manteve-se constantemente em guerra, ou aliado aos irmãos contra o pai, ou contra os seus próprios irmãos. Com a morte destes tornou-se herdeiro dos tronos da Inglaterra e Normandia, tendo sucedido a seu pai em setembro de 1189.

Em princípios de 1191 ele atendeu ao apelo papal e aliou-se a Filipe Augusto, rei da França, organizando um exército de 8.800 homens com os quais embarcou em cem navios com destino a uma cruzada (a terceira) visando retomar Jerusalém. No caminho conquistou Chipre, e em seguida colaborou para a queda de Acre, cidade fortificada e porto de mar que desde 1187 estava em poder de Saladino, sultão do Egito e da Síria.

Ricardo o derrotou num segundo combate, e por duas vezes avançou até os muros de Jerusalém, mas desentendimentos entre os próprios cruzados, que culminaram com a saída do exército de Filipe Augusto da campanha, além das más notícias chegadas da Europa, dando conta que seu irmão havia se apossado do trono com a ajuda do rei francês, fizeram-no assinar em 1192 um tratado de paz com o príncipe oriental, segundo o qual os cristãos ficavam com as cidades costeiras da região e o direito de visitar o Santo Sepulcro.

Retornando à Inglaterra, seu navio naufragou no mar Adriático em dezembro de 1192, mas ele conseguiu salvar-se. Para evitar a entrada em território francês Ricardo tentou atravessar a Alemanha sob disfarce, porém foi reconhecido, preso, levado a Viena e entregue ao imperador daquele país, com o qual negociou um resgate no valor de 150.000 marcos para recuperar a liberdade. Solto em março de 1194, chegou no mesmo mês à Inglaterra, entrando em Londres sob aclamação popular.

Depois de derrotar João sem Terra, que havia se apossado do trono, foi coroado novamente como rei dos ingleses, e então, reunindo o dinheiro que pôde, preparou suas forças para combater na Normandia a Filipe Augusto, cúmplice do irmão usurpador, mas após quase cinco anos de lutas assinou com ele, em janeiro de 1199, um tratado de paz.

Cerca de três meses depois, ao disputar com o visconde de Limoges um tesouro encontrado no castelo de Chaluz, foi atingido por uma flecha no ombro. O ferimento gangrenou, e ao perceber que sua sorte estava selada Ricardo proclamou o irmão João como herdeiro, decretando o perdão para o arqueiro que o alvejara. Dos dez anos de seu reinado, o rei também conhecido como Coração de Leão pela bravura e desassombro demonstrado em suas ações, conseguiu viver apenas alguns poucos meses em seu país.

Uma das passagens mais significativas, mas também pouco conhecida, da vida de Ricardo Coração de Leão, aconteceu na batalha do Acre, durante a Terceira Cruzada, convocada pelo para Gregório VII para libertar Jerusalém das mãos dos muçulmanos. Situada na região da Galiléia, num promontório ao norte da Baía de Haifa, na costa do Mediterrâneo, a cidade é um porto histórico rodeado por muralhas e povoada desde o tempo dos fenícios (a parte antiga da cidade é considerada patrimônio da humanidade pela ONU).

Em 1110 a cidade foi invadida pelos cruzados, sendo reconquistada por Saladino em 1187. Quatro anos depois (1191) quando avançava para Jerusalém, Ricardo Coração de Leão retomou a sua posse e domínio após um cerco que durou trinta dias, tendo nessa ocasião aprisionado cerca de 3.000 combatentes inimigos. Segundo consta, uma vez terminada a batalha, o soberano inglês propôs a Saladino a libertação dos prisioneiros mediante o pagamento da importância de 200 mil dinares, tendo o comandante árabe apresentado uma contra-proposta: o dinheiro seria entregue em duas prestações, mas a libertação da maioria dos aprisionados precisaria ser feita tão logo a primeira parcela fosse satisfeita. Ricardo não gostou do que ouviu, e por isso ordenou a morte dos 3.000 prisioneiros, o que foi feito em campo aberto, defronte à cidade e bem em frente das tropas de Saladino.

Para justificar o seu ato Ricardo alegou que não teria como alimentar os três mil prisioneiros, e além do mais, caso os libertasse, eles retornariam às suas tropas e voltariam a lutar contra ele. Por isso o soberano optou pela ordem de execução, medida extrema curiosamente repetida seiscentos anos depois por Napoleão Bonaparte, que em 1799, quando avançava em direção ao Egito, fez 4,000 prisioneiros na mesma cidade de Acre, e não podendo alimentá-los, também autorizou o massacre de todos os prisioneiros.

Em revide à atitude de Ricardo, Saladino, determinou que qualquer cristão aprisionado deveria ser morto imediatamente, medida que não era nenhuma novidade porque já havia sido praticada por ele anteriormente: na batalha de Hattin, travada quatro anos antes, todos os Templários e Hospitalários aprisionados pelos muçi,manos foram decapitados.


Ricardo Coração de Leão, o leão das batalhas

A origem do conflito secular entre França e Inglaterra está nas rivalidades e nos interesses políticos e econômicos. Um jovem educado na França virou rei inglês e foi protagonista dos combates iniciais entre as nacões


Quando O rei inglês Eduardo III declarou guerra ao monarca francês Filipe VI, em 1337, estava fazendo mais do que dar início à série de conflitos que seria chamada de Guerra dos Cem Anos. Ele sacramentava mais de 400 anos de ressentimentos entre França e Inglaterra. A guerra mais significativa do período medieval, que trouxe mudanças que vão desde as armas e estratégias de batalha até a estrutura socioeconômica feudal – propiciando o nascimento das nações européias –, tem raízes em 911. Foi nesse ano que, após várias batalhas contra a tribo viking do gigante Rollo, o rei francês Carlos, o Simples, entendeu que os bárbaros do norte queriam apenas um lugar para viver. Concedeu a eles um território, que ficou conhecido como Normandia. Em 150 anos, os normandos já haviam criado uma nação e ajudavam os ingleses do outro lado do canal contra outros vikings. Em 1066, os normandos se rebelaram e tomaram as ilhas sob o comando de Guilherme I, o Conquistador, autoproclamado rei da Inglaterra. Por mais 150 anos, os anglo-normandos descendentes de Guilherme I reinaram tanto sobre a Normandia quanto sobre o solo inglês. Em 1216, porém, a Normandia voltou para mãos francesas, o que nunca mais seria esquecido pelos nobres ingleses. Começava aí uma disputa de direitos e brios nacionalistas que culminaria na Guerra dos 100 Anos – e, antes de ela começar, um nobre inglês seria o personagem principal da crise entre a Inglaterra e a França.

A mãe tenta derrubar o pai

A história de Ricardo Coração de Leão é intricada, porém fascinante. Seu pai, Henrique II, foi rei inglês. Coroado em 1154, em seus 35 anos de reinado englobou nacos da Escócia e da Irlanda, herdou as províncias de Anjou e Normandia e ainda conquistou o coração e as terras de Eleanor de Aquitânia, antes casada com o rei Luís VII da França.

Além de a bela rainha não ter dei-xado herdeiros ao rei francês, ainda le-vou seu dote, a Aquitânia (região do sudoeste da França), para as mãos de Henrique II. Terceiro filho do casal, Ricardo não tinha a menor perspectiva de se tornar rei, mas tinha uma vantagem: era o predileto da mãe. Em 1173, ela traiu o marido como cérebro de uma conspiração que envolveu os três filhos mais velhos, Henrique, Ricardo e Geoffrey. Eleanor queria derrubar o rei através de uma guerra civil. Não conseguiu. A rebelião destruiu a confiança de Henrique nos filhos, principalmente Ricardo. O caçula, João, o único a não participar do plano, se tornou o favorito à sucessão. Eleanor terminou presa por ordem de Henrique.

Foi nesse período que Ricardo desenvolveu um forte vínculo com o jovem Filipe Augusto, o herdeiro que sua mãe não dera a Luís VII. Filipe era filho de Luís VII com a terceira esposa dele, Adèle de Champagne. Foi assim que, apesar de inglês, o jovem Ricardo foi viver na França. Teve ironicamente uma educação francesa e cresceu aprendendo a chamar a França de lar. Essa amizade entre Filipe Augusto e Ricardo seria essencial em 1188, quando Henrique II tentou tomar a Aquitânia para o filho caçula, conhecido jocosamente como João sem Terras. Ricardo, já um soldado e um nobre que sabia a-tuar como político, se aliou a Filipe com a promessa de lhe conceder a Normandia e Anjou pela ajuda. Um ano depois, derrotado, Henrique II resignou-se e concedeu a Ricardo o título de herdeiro – e morreu meses depois. Um dos primeiros atos do novo rei inglês foi tirar sua mãe da prisão.

Ricardo não cumpriu sua promessa com Filipe, que nunca esqueceu o incidente. Em 1190, a convocação para libertar a Terra Santa de mãos muçulmanas na Terceira Cruzada juntou novamente Ricardo I, da Inglaterra, e o agora rei Filipe II, da França. A coragem do rei Ricardo como general nessa cruzada lhe valeu o título de Coração de Leão – mas ele ganhou também a fama de matador de árabes. Filipe via algo a mais que a Terra Santa em jogo. A historiadora austríaca Ulrike Kessler diz que Filipe tentava “tanto selar a derrota de Ricardo quanto evitar seu retorno. Para ele, não havia motivo para tomar Jerusalém. Sabia que a vitória seria creditada somente a Ricardo”.

Castigado pela disenteria, o monarca francês abandonou a cruzada. “Filipe era ardiloso. Ele iniciou a desconstrução do reino e da imagem de Ricardo assim que voltou à França”, afirma Paul Halsall, professor de história medieval da Universidade Fordham, em Nova York. Enquanto isso, a força de Eleanor de Aquitânia como regente começava a esmorecer diante do poder aliado de seu filho João sem Terras e de Filipe II. No caminho de retorno da cruzada, Ricardo acabou capturado pelo duque Leopoldo V da Áustria, ficando prisioneiro do rei germânico Henrique VI. Ricardo só se libertou com o pagamento de 150 mil marcos, o equivalente a dois anos dos dividendos da coroa inglesa. Filipe e João se uniram para oferecer a mesma quantia para que Ricardo continuasse preso.

Não conseguiram deixá-lo encarcerado. De volta à Inglaterra, em 1194, Ricardo precisou apenas de algumas semanas para recuperar os castelos tomados por João. Dos dez anos de reinado, Ricardo não passou mais do que seis meses nas ilhas britânicas – estava sempre em combate. Em 1199, quando foi pessoalmente recuperar uma botija de ouro em uma rixa, levou uma flechada no ombro esquerdo de um jovem arqueiro de nome Peter Basil. Estava sem armadura e usava apenas capacete e escudo. A falta de cuidados médicos condenou o rei guerreiro à morte aos 41 anos. Ricardo só teve tempo de ordenar a divisão de seu reino. Três quartos de suas terras ficariam para seu irmão João. O corpo embalsamado foi enterrado no Mosteiro de Font-Evrault, aos pés da tumba de seu pai. Para a Inglaterra, o Leão não deixou nada, mas os ingleses entoariam suas façanhas para aumentar o sentimento patriótico na guerra que viria depois contra os franceses – um conflito que teria como motivo as mesmas regiões disputadas entre Ricardo, João, sua mãe e Filipe.

A Guerra dos Cem Anos começou 123 anos após a morte de Coração de Leão. A lã inglesa foi o estopim. É que, por volta de 1320, a região de Flandres (atual Bélgica) era uma grande produtora de tecidos. Os comerciantes apoiavam os ingleses, de cuja lã dependiam. Mas o território estava sob vassalagem francesa e, em 1329, o rei francês Filipe VI decidiu intervir, levando o inglês Eduardo III a suspender a venda de lã para a região e a retirar o juramento de fidelidade ao monarca – e ainda por cima exigir seu trono. Deu-se então o impasse que finalmente le-vou a Inglaterra, onde nasceu Ricardo Coração de Leão, a entrar na mais longa das lutas contra a França.


Fonte:Aventuras na História, uma publicação da Editora Abril