Americanos fazem vigília em homenagem aos mortos no massacre de Aurora: tiroteio deixou 12 mortos
Foto: Reuters
Quincy Skinner, um dos eméritos de Cambridge, diz-nos que a moderna teoria da resistência à opressão resultou da Reforma Protestante. Cansados de se verem perseguidos pelos príncipes católicos, quando não literalmente caçados e mortos como hereges, como ocorreu na Noite de São Bartolomeu em 1572, teólogos calvinistas, como Ponet e Knox, mandaram às favas a tradição cristã da total submissão ao braço de César.
Um rei mau que "exceder o poder que lhe foi conferido por lei" tinha que ser detido e até derrubado do trono. A fé de cada um era um assunto pessoal, e nada, nem mesmo o soberano poderia intervir nisso. Resistir era para eles, antes de tudo, uma questão de moral religiosa.
Coube ao Dr.Locke, o patriarca do liberalismo, pelos seus ensaios e tratados de 1690, secularizar o que herdara da teologia rebelde. Para ele, o direito à revolta configurava-se especialmente no caso do em que "governo age contrariando seu fim", deixando de proteger a liberdade e a propriedade dos súditos. Os reis ingleses sentiram o efeito disso na própria pele quando a Revolução Puritana decepou o ilustre pescoço de Carlos I em 1649, e, depois, ao correrem com o seu neto Jaime II, em 1689.
A ideia de ser justo recorrer às armas em caso da opressão da parte dos reis ser intolerável atravessou também o Atlântico. Quando os primeiros peregrinos aportaram o Mayflower na América do Norte, em 1620, traziam em seus baús, em meio aos livros santos, o sagrado direito à insurgência. Um século e tanto depois, seus descendentes não se contentaram em se amotinar contra outro rei inglês, Jorge III, mas também ousaram criar, concluída a Revolução de 1776, um novo sistema político: a República Presidencialista, sedimentada pela Constituição de 1787.
Temerosos, porém, em dar-se um retrocesso que fizesse com que um neomonarquismo, de inspiração inglesa, voltasse a ser implantado, os democratas insistiram em dois pontos: impedir a formação de um exército permanente que servisse de suporte a um futuro Cromwell americano, e legalizar a posse de rifles, mosquetes e pistolas em mãos do homem comum, do cidadão americano. Determinação que terminou consagrada pela Segunda Emenda à Constituição, aprovada em 1791.
Acreditavam que com a difusão do porte de armas aquela era a melhor maneira de preservar-lhe a liberdade e ao mesmo tempo meter medo em qualquer autoridade futura com inclinação autoritária. Faziam ver a quem ambicionasse alçar-se à tirania que não teria pela frente ovelhas mansas prontas para a tosquia. O povo americano era livre porque todos tinham armas.
Locke já, bem antes, pensara nesta situação e afastara qualquer temor. Ao contrário de Hobbes, ele não via perigo nos súditos, eventualmente, ensarilhar baionetas se o magistrado era bem intencionado, visto que o povo é intrinsecamente conservador. Em hipótese nenhuma subverteriam um governo benigno e legítimo, ainda que incompetente ou inoperante.
Além disso, perambular arcabuzado nas colônias americanas era uma realidade. Na conquista de um Continente desconhecido, enfrentando nativos hostis e animais ferozes como os pumas e os ursos ferozes, era um absurdo supor-se que algum lavrador ou rancheiro e seus familiares pudessem sobreviver sem uma boa carabina com uma porção de pólvora e chumbo à sua disposição.
Isto nos faz entender a razão de todo o herói popular americano ser um homem destro nelas, nas armas. Daniel Boone, David Crockett, General Custer ou o velho Búfalo Bill eram peritos em tiro e faca. Veneram-se entre eles os revólveres e os rifles. São os instrumentos de trabalho e afirmação de um povo expansionista e dominador.
Logo, não se trata apenas do poderoso lobby da Associação Nacional do Rifle, nem o charme do seu líder o ator Charlton Heston, que impede os humanitários de fazerem aprovar uma lei mais rigorosa contra o tráfico das armas, que, diga-se, tanto infelicitam os jovens e seus pais. É que ela tem contra si algo bem mais profundo: o imaginário de toda uma nação alargada, mantida e esculpida, à balaços. Os indicadores calculam que circulam pelo país, nas mais diversas mãos, mais de 200 milhões de armas que, desde 1960 para cá fizeram mais de meio milhão de vítimas. Mais do que os Estados Unidos perderam na Segunda Guerra Mundial e na Guerra do Vietnã.
Todavia, estes massacres que começam a proliferar por todo o país (que tiveram início mais recente, em 1999, com o infeliz ataque no Instituto Columbine, Jefferson, Colorado, ocasião em que 13 estudantes e professores foram mortos e mais 21 feridos com disparos), se devem a outros motivos. Em nenhum outro país, dito civilizado cultiva-se tanto a violência como os EUA.
Nos dias que correm, são raros os filmes de ação que não contém cenas de extrema brutalidade, crueldade e sadismo. São explosões sensacionais, tiroteios incríveis, disparos a queima-roupa, sangue para todos os lados, cadáveres retalhados ou perfurados à bala, viraram presença constante na filmografia hollywoodiana.
Os duelos são simplesmente orgiásticos. Neles correm rios de sangue e mutilações de todo o tipo. Sente-se que a intenção dos produtores e diretores de Hollywood não é repudiar a violência (como eles cinicamente gostam de afirmar), mas torná-la sedutora, senão que sensual, para deste modo atrair mais público às sessões e dinheiros para as bilheterias.
Calcula-se que uma criança norte-americana esteja exposta a seis mil ou mais assassinatos por semana na mídia voltada ao entretenimento.
A mídia e a celebração da violência
Um ator, Arnold Schwarzenegger, justamente apelidado como "O Exterminador", que se projetou na sua carreira por matar a socos, tiros ou com espadas mais de oito mil personagens nos filmes que participou, foi eleito e reeleito governador da Califórnia, entre 2003 a 2011 (não só isto, em maio de 2004 e 2007, foi nomeado como uma das 100 pessoas que "ajudaram a moldar o mundo", pela revista Time.).
Outro seu parceiro no gênero da exaltação da boçalidade criminosa, Sylvester Stallone, ex-ator pornográfico, praticamente foi transformado em herói nacional ao fazer papel de ex-assassino a serviço das Operações Especiais que se vê injustamente perseguido pelo estado (Rambo, seu personagem, um fora da lei injustiçado, teve direito a quatro filmes seguidos, entre 1985 e 2008).
Proliferam nas principais redes de TV seriados policiais de toda ordem explorando o generalizado temor que a classe média tem da bandidagem e dos assassinos seriais psicopatas (vilões absolutos de praticamente todos os seriados). Corpos humanos são vistos nas mesas dos laboratórios retalhados para fins de autópsia e seus órgãos submetidos à análises detalhadas. É a tecnologia colocada a serviço do aparelho policial ajudando-o a desvendar os crimes, etc. A banalização da morte ou até seu fascínio são produtos que parecem atrair um sem fim de expectadores.
Então, é de se perguntar, como qualquer indivíduo psicologicamente perturbado poderá resistir a este apelo constante à barbárie e ao sadismo? É um bombardeio que não cessa nunca, nem tende a arrefecer, sendo que a busca desesperada da audiência faz com que gradativamente os princípios éticos sejam desconsiderados ou simplesmente ignorados. O que vale é o que os Institutos de Aferição detectam.
Ausência de restrições
A falta de controle ou supervisão maior sobre os negócios das armas que se soma a ausência de qualquer mecanismo restritivo à mídia em geral, é uma das maiores perversões que as leis libertárias já sofreram ao longo da história americana.
Aquilo que viera para assegurar os direitos dos indivíduos num continente selvagem, particularmente o da autodefesa, tornou-se dois séculos depois quase numa licença para o assassinato em massa. E a proibição de qualquer tipo de alerta à produção televisiva e cinematográfica, em nome do direito à livre expressão, fez dos meios de comunicação norte-americanos se projetarem como uma moderna e sanguinária arena romana.
Se Lee Oswald, o atirador que matou John Kennedy, em 28 de novembro de 1963, adquiriu seu fuzil pelo Correio, James Holmes, o jovem estudante de medicina autor do massacre de Aurora, em Denver, Colorado, ocorrido em 20 de julho de 2012, tal como os assassinos do Columbine (Eric Harris e Dylan Klebold) comprou seu arsenal - mais de seis mil cartuchos - pela Internet.
O resultado: 12 mortos e 59 feridos. Mas nada disto abalará o poder da NRA (National Rifle Association of America / Associação Nacional Americana do Rifle) na sua intransigência em jamais aceitar qualquer regulação na venda de material de tiro. Tudo seguirá como dantes.
Fonte:VOLTAIRE SCHILLING