28.3.10

Ética e Política

As decisões políticas devem ser tomadas em foro intimo, por meio de um grupo reduzido de privilegiados, ou, ao revés, estar em aberta sintonia dos agentes políticos para com a opinião pública? Esta é a reflexão feita pelo professor de filosofia da UNICAMP Roberto Romano exposta a seguir

Política, a flauta de Pan

Prof. Roberto Romano
Política já foi definida como a “arte do engano”, ofício específico do demagogo, dos que enganam ou seduzem os votantes com sua retórica especial. Atuam como se soprassem a flauta de Pan, atraindo os incautos para o seu redil, emitindo apenas os sons maviosos que os ouvidos deles gostam de ouvir. Por tanto a mentira passou a ser questão da análise da ciência política em todos os tempos, sempre sendo um problema atual.

Para Roberto Romano, professor de filosofia e ética, por exemplo, não se pode separar eleição da mentira, das estratégias de falsidade usadas pelos que desejam ser escolhidos nas campanhas eleitorais.


Como que para melhor ilustrar sua opinião, invoca a um dos diálogos de Platão, o famoso “Górgias” (escrito em 392-1 a. C.), o qual reproduz a contundente crítica que Sócrates fez exatamente ao uso escandaloso da mentira para fins políticos. Prática a qual os demagogos recorriam com absoluta falta de cerimônia. O pior, para o filósofo ateniense, era que a adulação irresponsável estragava o povo ainda mais, aviltando-lhe o censo de ética.


A Perplexidade de Sócrates

Neste mesmo diálogo ele narra a perplexidade de Sócrates, o mais sábios dos gregos, em seu debate com Górgias, Pólo e Calicles, seus três contendores, para com o comportamento político do povo. Se bem que qualquer cidadão procure sempre o melhor profissional ou um bom especialista quando deseja que lhe prestem um serviço (arrumar uma porta, concertar o telhado da casa, fazer-lhe um móvel, construí-lhe um navio), ou ainda recorre ao mais competente dos médicos para cuidar da sua saúde, quando se trata de fazer as escolhas eleitorais (aeresis em grego), ele não age com o mesmo discernimento nem com a mesma responsabilidade.


Deixa-se, em geral, levar pelo canto da sereia dos candidatos demagogos e acaba dando o seu voto aos tipos menos qualificados que se oferecem na praça.


Exatamente no momento em que tem que indicar para o leme do estado aquele que fosse o mais sábio, o de maior conhecimento e habilidade para o cargo, o artesão do estado por ele escolhido era o contrário disso tudo. Quem vencia o pleito na democracia era o mentiroso, o do discurso mais enganoso. Esse foi um dos motivos para que Platão designasse o regime da maioria como uma “teatrocracia”.


E tudo isso em função do que? Qual seria o motivo desta irracionalidade das coisas da política? Para ele, a resposta a essa escolha geralmente equivocada feita no sistema democrático estava no fato de que do mesmo modo que qualquer um tem apreço por sua liberdade, devota o mesmo encanto por si mesmo.


Isso é que faz com que lhe agrade ser bajulado deixando-se seduzir pela lábia dos espertos. Por conseguinte, é essa paixão infantil dos indivíduos pelo seu próprio ego (hoje diríamos narcisismo) que os conduzem ao auto-engano, refugando por isso os verdadeiros estadistas que apresentam “remédios amargos” para curarem as mazelas da sociedade.

Infantilismo do povo

Numa democracia, o povo é igual a uma criança sempre pronta a se deixar levar por um oportunista ou por um aventureiro que lhe oferece confeito envolto com palavras de mel. Mas então Platão bane da política qualquer tipo de mentira?


Não. Numa situação pelo menos ele a aceita: no caso da “mentira nobre”. Isso se o governante for por acaso o rei-filósofo, o sábio regente idealizado por ele no diálogo “A República”, que conduz as coisas do estado com eficácia e sensatez.


As decisões mais importantes, por força das circunstâncias, devem ser tomadas na intimidade do poder, circunscritas a um grupo fechado. São acertadas por uma pequena cabala em conciliábulos ou em gabinetes secretos e que não devem chegar aos ouvidos do povo. E isso ocorre em benefício do próprio povo, pois somente o magistrado magnífico, assumindo-se como “autoridade oculta, misteriosa”, é quem realmente sabe o que é e o que não é do interesse público.

O Estado Absolutista

Esta prerrogativa, respaldada por um grande nome da filosofia como o de Platão, dado ao governante, ainda que ilustrado, abriu caminho para que a mentira dita em nome do bem geral do estado e da comunidade se transformasse com o tempo na famosa Razão de Estado, a tão exaltada Raizon d´Etat, defendida pelo Cardeal de Richelieu, primeiro-ministro de Luis XIII guardião do Estado-Forte na França do século XVII, que desculpava até os crimes feitos pelo executivo (ver: O Príncipe de Maquiavel e o Testamento Político do Cardeal de Richelieu).
Virou um pretexto para que os ministros ou chefes do executivo lançassem mão dela para não dar explicações públicas dos seus atos. Toda estrutura do poder do Estado Absolutista ancorou-se então na premissa de que o soberano e aqueles que o servem não devem explicações a ninguém, senão que “somente a Deus”.


Ao concentrar em si todas as deliberações importantes e também as menos importantes, fez do segredo de estado uma arte do bem governar. Era um estado controlado por uns poucos selecionados apoiados nas largas costas do Todo-Poderoso e que conduzia os súditos como um pastor faz com suas ovelhas.

O Principio da Responsabilidade

Oliver Cromwell, líder da revolução puritana
Este comportamento – o das decisões secretas - dominante em boa parte da Europa na época do auge do absolutismo, entre os séculos XV e XVII, sofreu um formidável abalo com a Revolução Puritana na Inglaterra (1642-1649), liderada por Oliver Cromwell, pois ela introduziu a semente de uma idéia que mais tarde iria se efetivar na república norte-americana (difundindo-se então para todos os demais regimes políticos similares que surgiram na modernidade).

Os ingleses a denominaram de accountability, isto é, o conceito da responsabilidade, justamente para afastar a cortina que cobria os atos governamentais e as decisões tomadas na calada da noite.

Cabia ao governante, chefe do executivo ou ministro, dar satisfações públicas dos seus atos. Apresentar ao povo nos foros indicados, em geral por um pronunciamento dado frente ao parlamento, quais eram as medidas por ele tomadas e qual sua motivação ou razão de ser.
Com isso invertia-se a situação anterior na qual as autoridades não apresentavam nenhuma justificativa do que faziam ou pensavam fazer. Para legitimar sua posição - o cargo que ocupavam, no executivo ou no legislativo - dali em diante eles tinham que dizer a verdade ao povo. Governar com transparência tornou-se uma obrigação. Alargou-se então o caminho para o Estado Democrático dos nossos dias.

O Estado no Brasil

Todavia no Brasil, o verdadeiro estado fundou-se ao contrário desse principio da responsabilidade adotado pelas nações anglo-saxãs. A corte de D.João VI, fugida de Lisboa. implantou por aqui, desde sua chegada em 1808, o Estado Absolutista. Isto é, uma força antiliberal e antidemocrática: antipovo em suma.


Quando se deu a independência, D.Pedro I em seguida, pela Carta outorgada de 1824, deturpando a idéia do Poder Moderador (concebido por Benjamin Constant, famoso constitucionalista francês), instituiu um estado que parecia uma cópia do Estado Absolutista.
Para Constant, aquele quarto poder, além de ser neutro, deveria impedir que os demais poderes (executivo, legislativo e judiciário), cometessem qualquer tipo de abuso ou escorregão tirânico.
Pois no Brasil, o Poder Moderador simplesmente foi entendido como algo bem acima dos outros, estando inteiramente à disposição do imperador, tornado-o constitucionalmente um ser superior a todos os outros: o “protetor perpétuo do Brasil”.


D.Pedro I, na verdade, ao pairar como se fora um astro-rei sobre a sociedade e suas instituições, colocou-se na posição da mais absoluta irresponsabilidade visto que não tinha que responder senão que “ao Divino” sobre seus atos ou decisões.


O resultado disso ao longo da história nacional (sendo que muito disso seguiu incorporado pela Republica de 1889), foi que o poder central, quase sempre forte e centralizador, interferiu sistematicamente nos estados, tornando letra morta o principio do federalismo (uma das razões da proclamação da república). No concreto, o país é dominado pela conjunção de interesses formados pelo Exército, pela Diplomacia e pelas Oligarquias regionais, que se consolidaram como sendo os autênticos três poderes do Brasil.


Além disso, numa aberta rejeição ao conceito da responsabilidade, as diversas constituições mantiveram o principio do “foro privilegiado”, dando imunidade aos altos escalões políticos e administrativos, prerrogativa idêntica a que os aristocratas gozavam antes da Revolução Francesa de 1789. Formam, portanto, uma casta de irresponsáveis, visto que não precisam explicar-se para ninguém.


Por conseguinte, segundo Roberto Romano, “somos uma federação que não é uma federação, nós somos uma democracia que não é democracia, nós somos uma república que não é república, porque num estado que existem seres superiores não há república.”


Nota: a exposição acima é uma síntese da intervenção realizada pelo professor R. Romano numa das seções do Fronteiras do Pensamento realizada em Porto Alegre-RS.

Fonte:História por Voltaire Schilling