Discursus:
Aristóteles (384-322 a.C.) morreu há mais de 2300 anos, mas suas teses e concepções são discutidas até hoje. Platão, seu principal preceptor, considerava-no a própria inteligência encarnada, apesar de sua gagueira. Durante a Idade Média, ele era tido, nada mais, nada menos, como o filósofo. Foi só a partir da era moderna, sobretudo depois de Thomas Hobbes e René Descartes, que seu prestígio foi empalidecido, muito por causa do ataque direcionado à doutrina escolástica medieval, verdadeiro alvo das críticas Iluministas. O século XX tratou de reabilitar as teorias mais importantes do antigo filósofo macedônio, graças ao desapontamento com as promessas racionalistas de amadurecimento da humanidade, mal cumpridas pela modernidade.
O projeto pedagógico de esclarecimento das idéias, característico dos filósofos modernos, não obteve o êxito esperado e, de fato, as atrocidades cometidas em nome da razão: o advento da guerra de extermínio e a possibilidade real de extinção da espécie humana, por obra de suas próprias invenções, puseram em xeque as "nobres" pretensões de autores da altura de John Locke, David Hume, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant. Assim, o ceticismo a respeito do projeto emancipatório da modernidade proporcionou o resgate de pensadores que se pretendia terem sido superados. Entre os antigos, aquele que obteve maior atenção dos chamados filósofos pós-modernos foi justamente o estagirita Aristóteles.
A retomada da filosofia aristotélica permitiu que se enfrentasse diretamente as teorias pedagógicas modernas, ponto dos mais caros para o Esclarecimento. Por ser um escritor completo, em Aristóteles também podem ser encontradas idéias próprias sobre como educar as gerações, embora o fato de ser estrangeiro (meteco) entre os helenos, não autorize seu vínculo a uma perspectiva típica da educação (paideia) helênica, propriamente dita. Porém, esse é um detalhe que, na maioria das vezes, se ignora no estudo da filosofia clássica.
Aprendendo a Ser Bom:
O ensaio "Aristotle on Learning to Be Good" (Sobre o Ensino do Bem em Aristóteles), de M.F. Burnyeat, incluído na coletânea Essay on Aristotle's Ethics (Ensaios sobre a Ética de Aristóteles), editada por Amélie Oksenberg Rorty, não se detém a esse "por menor" para traçar a pedagogia aristotélica do ensino da ética. A Ética a Nicômaco é o texto básico na apreensão da doutrina educacional de Aristóteles, mormente se levado a sério a lenda que diz ter sido essa obra escrita para seu filho Nicômaco. Talvez seguindo essa linha de raciocínio, é que Burnyeat se apoie exclusivamente no principal texto da ética aristotélica, com o objetivo de saber se, diante da imperfeição humana, é possível estabelecer uma prática de ensino que fomente o desenvolvimento moral, através do conhecimento da virtude.
A possibilidade de ensino da virtude e sua própria compreensão fora tema da filosofia clássica desde Sócrates -para quem aquela não poderia ser adquirida sem antes ser conhecida. Já no Platão da teoria das reminiscências, a virtude só poderia ser conhecida pela visão atenta que a alma teria de sua forma, num mundo das idéias ulterior. Só um contínuo ciclo de reencarnação possibilitaria a compreensão plena do bem por seres humanos imperfeitos. A alma platônica seria ainda dividida em três partes distintas responsáveis pelo movimento de áreas específicas do corpo: a superior relacionada com a cabeça, a média com o tronco e a inferior, os membros.
A meta de Burnyeat, diante desses antecedentes, é caracterizar a postura aristotélica como aquela que admitiria a possibilidade de seres humanos imperfeitos serem capazes de, em vida, vislumbrar o bem por meio de um desenvolvimento moral ao longo do tempo. Nesse sentido, sua interpretação parte dos conceitos de bem humano e fraqueza de vontade (akrasia), embora essa última não seja exaustivamente explorada. Visa-se, portanto, encontrar a matéria-prima que precisa ser trabalhada para o amadurecimento moral, além dos desejos e sentimentos que motivam uma pessoa responsável a refletir sobre sua vida como um todo, ao qual o seu comportamento atual está integrado. Essa investigação histórica da vida de uma pessoa, de um certo modo, contrasta com o ponto de vista intelectual, cuja preocupação está voltada apenas para as razões e o raciocínio que levam alguém a ser considerado responsável moralmente.
O autor admite que, apesar de simples, a teoria do desenvolvimento moral aristotélica, ao propor um crescimento moral por meio de estágios cognitivos e emocionais, ajuda a fornecer uma interpretação inovadora sobre a fraqueza da vontade. O ponto de partida de Aristóteles está na definição do que é o bem humano, ou seja a felicidade. Aquele que, de início, já possui esse potencial poderá por intermédio do ensino vir a saber o porque de sua necessidade. O homem ótimo já possui isso que é chamado bem e conhece o porque de sua necessidade. O homem bom sabe o que é esse bem, mas não o porque. A este a aprendizagem das práticas adequadas poderá ser útil para explicar e justificar a existência desse bem.
As coisas nobres e justas são um pré-requisito para o esclarecimento do que é tal bem. As ações que concordem com as virtudes viabilizam esse conhecimento. Entretanto, não será apenas pela aplicação geral de regras que isso ocorrerá. Além disso, faz-se necessária uma certa percepção orientada para reconhecer e praticar as virtudes em circunstâncias específicas. Para tanto, o iniciante deve ser introduzido aos bons hábitos. O método a ser empregado, então, não será o indutivo ou meramente perceptivo, mas de o de uma prática intensiva que acostume a pessoa a uma conduta nobre e justa. Essa prática ativaria o potencial cognitivo de aprendizagem moral. Gradualmente, a dificuldade inicial do jovem iria ceder ao desejado estado de engajamento no processo de formação, adquirindo um maduro senso de valores.
O aprendiz avançaria, assim, em estágios de internalização do entendimento do que é bom, fazendo com que o hábito aprimore a sabedoria prática do porque o bem é o ponto de partida e algo a ser buscado como fim último. O aprendizado do bem não simplesmente habilita a pessoa a nomear o nobre e o justo, mas guia a conduta na descoberta da verdade. O entendimento do porque complementa a correção e a perfeição final da percepção subjetiva do que é bom. Desse modo, para entender a teoria pedagógica de Aristóteles, dever-se-ia ter em mente que só alguns terão acesso aos benefícios de seu argumento em favor do bem. Outros precisarão ter a alma cultivada. Enquanto restará ainda aqueles que, só pela força, se deixarão ser guiados pela razão e não pela paixão.
A quem faltar o gosto pelas coisas nobres e justas não poderá conhecer a virtude. Esta só pode ser ensinada ou encorajada aos que tiverem inclinação para tal. A nobreza de caráter é o ponto de partida para o desenvolvimento moral de uma pessoa, pois o amante da nobreza é nobre. Ao longo do tempo, o prazer que alguém sente pelas ações nobres e justas cresce com seu cultivo e prática.
O sentido fraco de ensino como aquisição de informação deve ser suplantado por um mais forte em que o engajamento de cada um faz com que o prazer cresça à medida que o conhecimento é internalizado. A virtude da temperança permite que se distinga a justa medida dos prazeres, em detrimento do prazer animalesco exagerado. Com isso, surge o prazer de aprender a agir virtuosamente, por meio de uma correta educação. O caráter de cada prazer forma a conduta virtuosa ou a viciosa. Só o prazer das virtudes conduz às ações nobres. O seu cultivo faz com que se aprenda por si mesmo o prazer das boas ações na prática.
Contudo, a aquisição do prazer das ações nobres por si mesmo não garante o entendimento, apesar de fornecer o ponto de partida para educação moral. Além do mais, é preciso que haja um sentimento de vergonha para que o ensino pleno da virtude possa ser internalizado. Caso ele falte, só a punição externa e a dor farão com que a pessoa se abstenha das coisas erradas. A vergonha é o sentimento responsável pela recepção da educação moral(1).
Incontinência:
Em Platão, a condição tripartida da alma explicava o fato das motivações pelas coisas nobres e justas estarem na parte média, durante a juventude. Quando as avaliações da motivação são ainda irrefletidas ou precipitadas. Nesse sentido, tanto para Platão, como para Aristóteles e os antigos helenos em geral, só o cultivo contínuo alavancaria essa motivação na direção do desenvolvimento da deliberação correta sobre a coisa certa a fazer. A avaliação das ações dependeria, então, das suas fontes motivacionais. Para cada uma delas há um objeto ou razão respectivos, o que leva à consideração da fraqueza da vontade, no instante em que o desenvolvimento moral da pessoa não permitir que ela faça a relação adequada entre motivos razoáveis, objetos e ações nobres e justas.
O desenvolvimento integrado da sabedoria prática e da virtude depende, por conseguinte, de uma atribuição racional de valores. Pois os desejos, como diz Aristóteles, devem estar em consonância com os princípios racionais(2). E quem não tiver o ponto de partida necessário deve ser submetido por sanções externas. O amadurecimento do sentimento interno da vergonha proporciona à vontade um motivo novo e mais refletido para a conduta virtuosa. Afinal, a meta do estudo da ética é a ação e não meramente o conhecimento do bem humano(3).
O tema da fraqueza da vontade é introduzido, aqui, a fim de explicar o porque do entendimento se inclinar ora para os desejos corporais, ora para a virtude da temperança, que o relacionamento social molda. Para Aristóteles, a ética não serve ao incontinente, pois este se deixa levar diretamente pelas paixões(4). Porém, quanto à formação dos desejos, há dois tipos de pessoas e modos diferentes de condução. A deliberação é o procedimento prático que articula o bem geral desejado com uma ação particular que todos têm o poder de realizar. Esse desejo pelo bem é concretizado pela visão racional da boa vida. Ele é escolhido após uma deliberação do que está ao alcance da pessoa realizar. Isto é, os desejos são formados à luz de um raciocínio orientado pelo bem.
Nesse contexto, a incontinência consiste na influência de um desejo contrário ao desejo racional, o que caracteriza a imaturidade da pessoa. Doutro modo, a fraqueza de vontade pode ser resultado de uma confusão, ou deliberação equivocada. Neste caso, a precipitação é que produz o erro de raciocínio e não os apetites. Para agir bem, é preciso pensar nas conseqüências. Tais erros são evitados quando a vida da pessoa é encarada como um todo, envolvendo a compreensão do bem humano.
A fraqueza de vontade é um fato da natureza humana. O homem continente é aquele que, ao contrário do incontinente, está habilitado a escolher o melhor silogismo que oriente uma ação virtuosa. Os incontinentes agem segundo o momento e suas ações são isoladas. Mesmo, assim, eles são considerados responsáveis pelos seus atos. A natureza humana deve ser forjada por um hábito de longo prazo.
Tal como o que é bom, as paixões estão na raiz do crescimento das pessoas. Desejos e sentimentos fazem parte das categorias necessárias para educação, motivando as mudanças nas diversas etapas do desenvolvimento moral. Segundo Platão, as três partes da alma teriam concepções diferentes sobre o desejo a ser perseguido. O conflito entre elas seria a incontinência. Em Aristóteles, no entanto, as três categorias de valor -nobreza/vilania; prestígio/injúria, prazer/dor-, ao serem relacionadas com as três partes da alma, explicariam porque os continentes e incontinentes encontrariam o bem e o prazer em ações incompatíveis. Destarte, o papel da educação seria mostrar o que é nobre, justo e a concepção de bem a ser seguida racionalmente. O caráter do continente é firme e seguro. Por isso, o homem bem formado não pode ser incontinente(5).
Referência Bibliográfica:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; trad. Leonel Vallandro e Gerd Borheim. - São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BURNYEAT, M. F. "Aristotle on Learning to Be Good", in RORTY, A.O.(Ed.). Essay on Aristotle's Ethics. - Berkeley: University of California Press, 1980.
Notas:
1. Veja BURNYEAT, M.F. "Aristotle on Learning to Be Good", pp.69-79.
2. Veja ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 3, 12, 1119b 13-18.
3. Veja BURNYEAT, M.F. Op. Cit, pp. 79-81.
4. Veja ARISTÓTELES, Op. Cit, 1, 3, 1095a 2-11.
5. Veja BURNYEAT, M. F. Idem, pp. 82-88.
Fonte:
http://www.discursus.hpg.ig.com.br/antiga/burnyeat.html