25.10.09

Guerra da Maria Antônia

A rua do centro da cidade de São Paulo foi palco da famosa briga entre alunos da USP e do Mackenzie. Envolvidos pelo clima tenso da ditadura militar, os estudantes universitários pegaram em armas e o conflito resultou na morte de um jovem

Por Gilberto Amendola

ILUSTRAÇÃO: DIEGO FERREIRA
Briga entre estudantes na rua Maria Antônia, no centro da cidade de São Paulo

A vida transbordava em 1968. Foi como se alguém esquecesse o leite da história fervendo sobre o fogão do mundo. Na França, em maio de 1968, a Universidade Sorbonne foi ocupada; nas ruas, passeatas, greves e barricadas estudantis. Milhares protestavam contra o governo de Charles de Gaulle (1890-1970). No Japão, protestos contra a chegada do submarino atômico USS Enterprise. Clímax no Vietnã. O movimento Panteras Negras. A Apollo 8. Tanques soviéticos invadiram a Tchecoslováquia. Acabou a primavera de Praga. Martin Luther King (1929-1968) e o senador Robert F. Kennedy (1925-1968) foram assassinados.

No Brasil, naquele ano, a situação também era tensa. O presidente era Costa e Silva (1899-1969) e a ditadura militar apertava o cerco contra os movimentos sociais. Tudo indicava que as coisas ainda poderiam piorar. Por influência dos irmãos, o então operário Luís Inácio Lula da Silva entrou para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

Na cidade de São Paulo, todos esses conflitos que ganhavam as atenções do mundo inteiro podiam ser vistos na Rua Maria Antônia, localizada no bairro da Vila Buarque. Foi nesse pequeno espaço, com menos de 500 metros de extensão, que o País se reconheceu em 1968. A rua resumia a alma daquele ano tão intenso. As revoluções políticas e culturais e a Guerra Fria eram vizinhas naquele microcosmo.

ARQUIVO CCS/JORNAL DAS USP
Fotos dos momentos de ataque e violência na rua Maria Antonia, com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo ao fundo
ARQUIVO CCS/JORNAL DAS USP
Prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antônia, antes da reforma. A faculdade iniciou suas atividades nesse endereço em 1949
ARQUIVO NACIONAL BRASILEIRO
Em meio à ditadura militar e ao golpe de 1964 (foto), pessoas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) se infiltravam em universidades, como o Mackenzie

DOIS MUNDOS, UMA SÓ RUA

Quis o destino que a Rua Maria Antônia abrigasse duas importantes instituições de ensino. De um lado, ficava o prédio da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH); do outro, o Mackenzie. Os dois gigantes da educação estavam tão próximos fisicamente, mas absolutamente distantes do ponto de vista ideológico. A definição mais instigante (e provocadora) da localização das duas faculdades é do professor de Filosofia Política, João Quartim de Moraes: "vindo da [rua] Consolação, o prédio da Faculdade de Filosofia ficava do lado direito. Do lado esquerdo, estava uma das alas da Universidade Mackenzie. Situação topográfica oposta, nessa perspectiva, à posição político-cultural das duas instituições. Mas tudo é questão de ponto de vista: vindo da [avenida] Higienópolis, restabelecia-se a correspondência entre a orientação espacial e ideológica".

A Faculdade de Filosofia foi criada em 1934, mas começou a funcionar na Maria Antônia em 1949. Na época, não havia, no Brasil, recursos humanos suficientes para exercer a docência em uma faculdade com disciplinas tão específicas e diversas. A solução foi buscar esses professores na Europa. Os europeus que vieram lecionar na USP eram já renomados ou se transformaram, depois, em referência mundial nas suas áreas de conhecimento. Um bom exemplo disso é o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss.

Já o Mackenzie é uma instituição presbiteriana, regida pela fé cristã evangélica reformada, que começou suas atividades com um casal de missionários, George e Mary Chamberlain, em 1870. Em 1952, por meio de um decreto assinado pelo então presidente Getúlio Vargas, o Mackenzie foi reconhecido como uma universidade. Mais tarde, em 1965, a instituição teve a primeira mulher reitora em uma universidade brasileira, Esther de Figueiredo Ferraz (1915-2008).

Mas não era só a Filosofia e o Mackenzie que faziam da Maria Antônia uma espécie de Cidade Universitária espontânea daquela época. Outras faculdades se espalhavam pelo quarteirão e por outras ruas da região. Tinha a faculdade de Economia e Administração lá na Rua Dr. Vila Nova (um pátio ligava a faculdade de Economia à Filosofia); a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), na Rua Maranhão; a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e a Santa Casa, na Cesário Mota Júnior; e a Faculdade de Medicina, na Dr. Arnaldo.

Nos momentos mais amenos, alunos da USP não podiam estacionar seus automóveis do lado do Mackenzie. Assim como os do Mackenzie não deveriam parar no lado oposto da rua. Quem atravessasse a fronteira imaginária costumava ter seu carrinho riscado.

"Não podia mesmo. Nem frequentar os mesmos lugares a gente frequentava. Não assistíamos aos mesmos shows, não sentávamos nas mesmas mesas. Éramos adversários nos esportes e tudo mais. Aquilo tinha tudo para terminar do jeito que terminou", disse o escritor Mário Prata, ex-aluno da faculdade de Economia.

Guerra da Maria Antônia
A rua do centro da cidade de São Paulo foi palco da famosa briga entre alunos da USP e do Mackenzie. Envolvidos pelo clima tenso da ditadura militar, os estudantes universitários pegaram em armas e o conflito resultou na morte de um jovem

Por Gilberto Amendola

COMANDO DE CAÇA AOS COMUNISTAS

Para ingressar no grupo formado por membros da classe média, o candidato tinha de responder a perguntas sobre sua opção sexual, religiosa, livros que já havia lido e até cantar o Hino Nacional inteiro

A estimativa é que só no Estado de São Paulo, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) contava com mais de 5 mil membros. No meio universitário, eles habitavam, principalmente, o Mackenzie, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco e a Pontifícia Universidade Católica (PUC).

O grupo surgiu em 1963 como uma reação ao avanço da esquerda no Brasil - nesse período de Guerra Fria, muitos temiam a chamada ameaça vermelha. O CCC era formado basicamente por "capangas" da classe média e por gente disposta a subir na hierarquia policial ou militar. Alguns candidatos a delegados, integrantes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e membros da direita religiosa, como Opus Dei e TFP (Tradição Família e Propriedade).

Para pertencer ao CCC, o interessado passava por uma série de testes. Sua vida era revirada do avesso. A cúpula do CCC queria saber de tudo: quais livros o interessado já tinha lido, sua opção sexual e religiosa, se sabia cantar o Hino Nacional inteiro e o quanto ele odiava os esquerdistas. Só depois de três meses, convencidos da identificação ideológica do candidato, é que ele recebia treinamento militar.

Com o golpe de 1964 e o endurecimento da ditadura, o CCC ficou responsável por parte do trabalho sujo do regime. O grupo agia de forma truculenta dentro das universidades. Seus membros andavam quase sempre armados pelos corredores do Mackenzie e de outras instituições de ensino. Sua intenção era mesmo a de intimidar. Outro importante papel dos homens do CCC era o de agir como delatores. A ação mais famosa do CCC (antes do conflito da Maria Antônia) foi a invasão do teatro Oficina durante a peça Roda Viva, de Chico Buarque, em 17 de junho de 1968.

É claro que a rixa entre eles subiu de temperatura depois do Golpe de 1964. A esquerda morava na Filosofia e a direita residia na universidade presbiteriana, o Mackenzie. Mesmo na clandestinidade, as principais entidades estudantis (UNE e UEE) dominavam os centros acadêmicos da USP. Células da Ação Popular (AP), do Partido Comunista e de grupos armados também começavam a frequentar seus corredores. Já no Mackenzie, policiais civis e militares misturavam-se aos universitários. O curso de Direito era o mais procurado por aqueles que sonhavam, por exemplo, tornar-se delegados.

A esquerda enraizava-se na USP, grupos paramilitares de direita encontravam abrigo no Mackenzie

Da mesma forma que a esquerda enraizava-se na USP, grupos paramilitares de direita encontraram abrigo no Mackenzie. Nessa universidade, estudavam membros da Frente Anticomunista (FAC), do Movimento Anticomunista (MAC) e do mais famoso e estruturado grupo, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC). A presença deste foi decisiva para o confronto que será narrado a seguir.

Dos dois lados da trincheira, grupos antagônicos. A turma da faculdade de Filosofia e os estudantes de esquerda eram comandados pela UNE (União Nacional dos Estudantes) e pela UEE (União Estadual dos Estudantes). O controle dessas entidades era da Dissidência, grupo formado por estudantes filiados ou simpáticos ao partido comunista. Na década de 1960, a UEE (mais atuante em São Paulo do que a própria UNE) era presidida por um jovem líder, bonito e carismático, vindo da Pontifícia Universidade Católica (PUC). Seu nome era José Dirceu.

Do lado do Mackenzie, o CCC também tinha seu homem-símbolo: Raul Nogueira de Lima, vulgo Raul Careca. Tratava-se do membro do CCC mais empenhado em delatar, prender e prejudicar os "terroristas" da Maria Antônia. Sua fixação pela esquerda estudantil beirava à psicopatia. Era uma perseguição quase religiosa. Raul Careca é descrito por muitos estudantes como um sujeito paranoico: "O Raul Careca era um homem com ar de quem nunca tomou sol. Carequinha, baixinho e de bigode, uma figura triste mesmo. Sempre de paletó e gravata. Ele era bem mais velho do que a média dos estudantes. Já devia ter uns trinta e tantos anos. O Raul também era policial e atuava no Dops [Departamento de Ordem Política e Social]. Resumindo, ele era um personagem trágico", lembrou Lauro Pacheco de Toledo Ferraz, ex-aluno do Mackenzie e presidente de esquerda do Centro Acadêmico da Universidade.

AS OCUPAÇÕES NAS UNIVERSIDADES

Em outubro de 1968, o clima entre os dois lados da rua era o pior possível. Meses antes, faculdades do País inteiro iam sendo tomadas pelos estudantes. Na pauta de reivindicações, temas como a autonomia universitária e o repúdio às tentativas de privatização. Agora, a ideia mais ousada era a da paridade. Segundo essa proposta, alunos, professores e direção teriam o mesmo peso no planejamento da reestruturação universitária - tanto das questões administrativas quanto naquelas que diziam respeito ao currículo de cada curso.

Centro Universitário Maria Antônia e Instituto de Arte Contemporânea durante a reforma pósguerra. A Faculdade de Filosofia deixou o endereço depois do embate. O Mackenzie continua no mesmo local

A primeira faculdade a ser ocupada foi a de Filosofia, na Maria Antônia. Os estudantes não tiveram dificuldades para tomar o prédio inteiro (andar por andar). Até porque os professores demonstraram simpatia pela pauta de reivindicações. No prédio da Maria Antônia, os alunos pichavam as instalações, fechavam entradas com tijolos e espalhavam óleo pelos corredores, escadarias e salas de aula. O derramamento de óleo tinha uma função tática importante: caso a polícia decidisse atirar bombas contra os prédios invadidos, um incêndio de grandes proporções poderia destruir tudo.

Como parte dos professores estava do lado dos estudantes, aulas livres eram ministradas durante a ocupação. Cursos sobre marxismo, revolução, Filosofia, estética e História da Arte fizeram parte do cotidiano das ocupações. Os próprios alunos eram responsáveis por algumas das disciplinas - sobretudo aquelas que ensinavam a fazer coquetéis Molotov.

Não era raro algum artista também ser convidado para dar o ar da graça lá no prédio da Filosofia. O cantor Sérgio Ricardo aparecia sempre com seu violão. Atores do Oficina e do teatro de Arena também eram bem-vindos. Caetano Veloso e Gilberto Gil não tinham a mesma sorte. Parte do movimento estudantil ainda torcia o nariz para as inovações tropicalistas. Alunos do País inteiro vinham para São Paulo vivenciar a experiência da Maria Antônia.

"Acredito que a ocupação do prédio da Filosofia foi o embrião do movimento hippie no Brasil", comentou Percival Maricato, que na época era estudante de Direito no Largo São Francisco, mas frequentava, diariamente, a ocupação da Maria Antônia.

A vítima da Maria Antônia

José Guimarães, que morreu no meio da briga entre os estudantes, ainda era tão jovem que nem tinha uma ideologia política formada

O garoto José Guimarães tinha 20 anos e cursava o terceiro colegial na escola Professora Marina Cintra, localizada perto da Rua da Consolação, próxima à Maria Antônia. Ele morava na Rua Loefgreen, esquina com a Coronel Lisboa, na Vila Mariana. Desde o final de setembro de 1968, Madalena Topolovsk e seus filhos, José Guimarães e Maria Eugênia, haviam se mudado da Rua Pedro Taques para lá. Nesses dias, Guimarães dedicava-se com prazer à pintura da casa nova.

No dia 2 de outubro de 1968, o estudante ficou com a família, entretido na mudança e planejando a pintura da casa. Além disso, tinha programado com uns colegas de escola uma festa de despedida da casa velha. No sábado próximo, ele receberia os amigos para um bailinho na casa, já vazia, da Rua Pedro Taques.

Mas é claro que, apesar da pintura e dos planos para o fim de semana, o garoto se arrependeu de não ter visto a tal briga entre os universitários de perto. Guimarães queria estar lá também. Embora já tivesse participado de duas ou três reuniões do movimento estudantil no prédio da Filosofia, ele não se interessava muito por marxismo, revolução, Che Guevara. Era exclusivamente um ouvinte. Mas, se perguntado, responderia com certeza que estava do lado dos estudantes da Filosofia. Bem mais por simpatia pessoal do que por qualquer ideologia.

José Guimarães gostava mesmo de dançar (dizem que não sabia, mas gostava mesmo assim) e de pintar. Não paredes - como estava fazendo na manhã do dia em que morreu, em 3 de outubro de 1968. Seu negócio era a pintura de quadros abstratos.

É certo que sua mãe, dona Madalena, não deixaria que ele fosse até a Maria Antônia para dar uma "espiadinha" no que estava acontecendo. Guimarães inventou uma desculpa para assistir a briga, disse que ia comprar cartolina em uma papelaria. Ele estava no meio da Rua Maria Antônia, assistindo à briga dos universitários, quando foi atingido por um tiro, grosso calibre. A bala entrou pela orelha direita e saiu pelo lado esquerdo. O rapaz caiu na rua, entre o prédio do Mackenzie e o da USP. Ele chegou a ser levado para o Hospital das Clínicas, mas não resistiu. Hoje, sua família vive em Poços de Caldas, Minas Gerais, e não fala sobre o assunto.

Dentro das ocupações e, principalmente, no interior do prédio da Filosofia da USP, discutia-se o futuro do movimento estudantil. Os agentes da ditadura tinham especial interesse em saber onde seria o 30º Congresso da UNE. Muitos apostavam que os estudantes aproveitariam as ocupações para a realização desse congresso no próprio prédio da Maria Antônia (hipótese que não foi confirmada. O desastrado congresso da UNE só aconteceria em novembro, em Ibiúna - e terminaria com a prisão dos principais líderes estudantis da época).

"Acredito que a ocupação do prédio da Filosofia foi o embrião do movimento hippie no Brasil"

Além disso, a turma do CCC não suportava o liberalismo comportamental que vinha do outro lado da rua, as meninas de minissaia, os cabeludos, a música e as drogas. Para o CCC, aquilo já tinha ido longe demais. Acabar com o prédio da Filosofia era desarticular a esquerda estudantil. Como isso seria feito?

O ESTOPIM DO CONFLITO

No dia 2 de outubro de 1968, o pedágio dos estudantes secundaristas, ligados à Ubes (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), começou cedo. Às 10h30, um grupo parava os carros que passavam nas ruas Maria Antônia e Itambé. O motivo da abordagem era arrecadar dinheiro para o 30º Congresso da UNE.

Estudantes de 15 e 16 anos pediam dinheiro para um congresso que supostamente teria de ser clandestino. O pedido era feito sem meias palavras. Os secundaristas pareciam não ter medo da polícia e do pessoal do CCC.

Alguns estudantes do Mackenzie, que foram parados no pedágio dos secundaristas, reagiram com indignação. Houve quem ameaçasse descer do carro e partir para briga. Quando tudo ainda estava na base da troca de insultos, eis que surge um ovo. Um ovo podre que saiu do prédio do Mackenzie e seguiu direto para a cabeça de uma das garotas da Filosofia que participavam do pedágio. Imediatamente depois, vieram pedras e tijolos.

Não tardou para que as pedras direcionadas aos estudantes, que estavam na rua, ganhassem um novo destino: o próprio prédio da Filosofia, do outro lado da rua. Dentro dele, os principais líderes, José Dirceu, Luiz Travassos e Edson Soares, demoraram um pouco para entender o que estava realmente acontecendo.

ARQUIVO CIÊNCIA E VIDA / FOTO: JOI ITO
Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos do movimento tropicalistas, não tiveram suas inovações musicais e estéticas bem aceitas em nenhuma das duas universidades da Maria Antônia

Mas, em minutos, um grande contingente de estudantes saiu do edifício da Filosofia. E seguiu para o portão do Mackenzie. A partir desse momento, a palavra mágica virou invasão. Os dois lados da Rua Maria Antônia tinham certeza de que a qualquer momento suas respectivas universidades seriam invadidas, tomadas de assalto.

Enquanto os mackenzistas se protegiam atrás do muro ou atirando pedras das janelas da universidade, estudantes da faculdade de Filosofia partiam para a luta no meio da rua, em campo aberto. Coquetéis Molotov atingiram o pátio do Mackenzie, mas ninguém foi ferido.

Os dois lados da rua se revezavam em ataques e contra-ataques. Era só uma turma dar alguns passos para trás para o outro grupo assumir uma postura mais agressiva. Eram ondas de fúria e valentia. Quase uma briga com coreografias. Quando a Filosofia parava para tomar fôlego e se reabastecer de pedras, o Mackenzie vinha para cima com tudo o que estivesse à mão.

Com a confusão instaurada, o CCC conseguiu dar um passo adiante em termos de agressão. Professores de Química abriram o laboratório para que alguns membros do grupo conseguissem atirar tubos de ensaio com ácido sulfúrico sobre os estudantes. Com bombas, ácidos, pedras e repórteres, a situação foi ficando insustentável. Com raiva, a turma da Filosofia avançava sobre os portões do Mackenzie. Nem a chuva de ácido assustava mais.

Foi nesse momento que a reitora do Mackenzie, Esther de Figueiredo Ferraz, pegou o telefone para fazer uma importante ligação. Em contato com o governador Abreu Sodré, Esther solicitou a presença da polícia. Nesse telefonema, ela dizia que a universidade estava prestes a ser invadida e que o patrimônio seria depredado.

Bem relacionada com as altas esferas de poder, Esther foi atendida prontamente. Após o pedido, a polícia que andava ausente apareceu (diziam até que a polícia não iria interferir, porque seus homens estariam participando de uma greve branca). Um contingente com mais de cem homens da Guarda Civil dirigiu-se à Maria Antônia.

Na década de 1960, Dirceu em luta contra a ditadura, na época em que presidia a União Nacional dos Estudantes
FOTO: JORGE BUTSUEM
O político e ex-líder estudantil José Dirceu.

A tropa de choque da guarda surgiu por volta das 14 horas. Segundo ex-estudantes, o "kit-repressão" era composto por cassetetes, bombas de efeito moral, máscaras contra gás e gás lacrimogêneo. Assim que a Guarda chegou, os estudantes da Filosofia perceberam algo muito estranho.

Centenas de homens da guarda entram no Mackenzie e perfilam-se por toda sua extensão. Eles posicionam-se em cima do muro, perto dos portões e por todo o pátio. Aparentemente, a força policial não estava lá para apartar uma briga de estudantes, mas para proteger o patrimônio de um dos envolvidos na briga, o Mackenzie.

Os policiais, em pé sobre o muro do Mackenzie, foram hostilizados, mas permaneceram impassíveis por quase 40 minutos. Aos poucos, os estudantes de esquerda recuaram. Não havia como enfrentar o CCC e a polícia de uma só vez. A Guerra da Maria Antônia tinha acabado? Ainda não.

O DESFECHO TRÁGICO

A madrugada foi de tensão para os dois lados da rua. Imaginava-se que qualquer movimento podia levar a uma invasão. As reuniões duraram a noite inteira. No prédio da Filosofia, os estudantes decidiram dar um basta na briga. Consideraram que aquele entrevero só interessaria à ditadura. "Aquela não era uma briga de estudantes da USP contra os do Mackenzie. Mas uma briga do movimento estudantil contra a ditadura e os integrantes do CCC", disse José Dirceu.

Quando a Filosofia parava para se reabastecer de pedras, o Mackenzie vinha para cima com tudo

Seguindo essa diretriz, alunos da USP penduraram duas faixas na entrada da faculdade: "CCC, FAC e MAC = repressão" (Caça aos Comunistas, Frente Anticomunista e Movimento Anticomunista) e "Filosofia e Mackenzie contra a ditadura". Os cartazes foram arrancados por membros do CCC. A ação foi rápida e arriscada. A ousadia foi tão grande que aqueles que estavam dentro da Filosofia nem tiveram tempo de reagir.

A guerra recomeçou. Dessa vez, coquetéis Molotov acertavam o prédio da Filosofia. Os estudantes tinham dificuldade de apagar os pequenos focos de incêndio. Não demorou para que a quantidade de explosivos provocasse uma sensação de que a qualquer momento o prédio da Filosofia estaria em chamas. E isso já estava começando a acontecer. Estranhamente, a polícia não intervinha na batalha. A rua estava cercada, mas ninguém fazia nada (mais um indício de que a destruição do prédio da Filosofia era de interesse de muita gente).

A tragédia começou a se desenhar quando alunos do Mackenzie disseram ter visto o cano de uma espingarda saindo de dentro do prédio da USP. Nenhum estudante que lutou ao lado da Filosofia confirmou que houvesse alguém armado entre eles. O argumento usado por quem brigou do lado da Filosofia é que se essa arma realmente estivesse lá, ela teria sido usada. Ainda assim, a espingarda, real ou imaginária, teve um efeito devastador sobre o pessoal do Mackenzie. Imediatamente, os mais radicais, os homens do CCC, carregaram suas armas. Para os caçadores de comunistas, já não era mais necessário esconder sua artilharia.

Sob o comando de Fábio Tortucci, presidente do diretório acadêmico da faculdade de Direito do Mackenzie, os alunos de sua universidade se espalharam. Uma parte dos estudantes foi para a esquina da Maria Antônia com a Itambé. Esse grupo reforçou o portão do Mackenzie com fios de alta tensão. Quem se arriscasse pôr a mão ali, estaria correndo enorme risco de ser eletrocutado. A outra turma seguiu para a Consolação.

Um time mais selecionado, composto exclusivamente por quem estava portando armas de fogo, subiu nos telhados dos prédios da Economia e Engenharia do Mackenzie - além de se posicionar estrategicamente em um prédio em construção ao lado do Mackenzie. E foi exatamente de um edifício que estava sendo levantado ali ao lado que foi disparado o tiro que matou José Guimarães, de 20 anos, aluno secundarista do colégio Marina Cintra. A versão mais difundida é de que a bala partiu do estudante de Direito do Mackenzie e membro do CCC Osni Ricardo. Mas as investigações foram abafadas tão logo a chamada guerra da Maria Antônia acabou. Ricardo, já falecido, nunca foi considerado culpado pelo assassinato, mesmo tendo sido reconhecido por muitas testemunhas.

FOTO: OSWALDO JOSÉ DOS SANTOS/JORNAL DA USP
A cerimônia de devolução do prédio da Maria Antônia para a USP, realizada em 1991, na reitoria da instituição. Na ocasião, a construção foi tombada como patrimônio histórico

Com a morte de Guimarães e o prédio da USP em chamas, a guerra chegava ao seu ápice. Zé Dirceu, com a camisa ensanguentada de Guimarães nas mãos, convocava os estudantes a sair da Maria Antônia e ganhar às ruas da cidade. Não foi uma decisão aceita por todos. Sair de lá seria entregar a vitória ao CCC. Houve discussão. Mas não havia mais como salvar o prédio e o orgulho da esquerda estudantil.

O edifício da Filosofia estava em chamas. Simpatizantes do CCC cantavam o Hino Nacional em comemoração. Os poucos alunos da USP que decidiram ficar na rua respondiam cantando Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa.

Simultaneamente, Zé Dirceu comandava a mais violenta passeata que essa cidade já viu. Carros foram virados e queimados. Houve muitos excessos, mas parte da população ficou do lado dos estudantes. Alguns foram presos depois da manifestação. Os principais líderes, entre eles Dirceu, conseguiram escapar da prisão.

Depois da guerra, a Maria Antônia mudou. O sonho de uma "cidade universitária" espontânea morreu. A USP apressou sua mudança para o que hoje conhecemos como Cidade Universitária. O prédio, completamente destruído, só voltou a ser ocupado muitos anos depois¬ - hoje ele é o Centro Cultural Maria Antônia. O Mackenzie ainda fica no mesmo lugar.

Mas o ano de 1968 continuou transbordando. Veio o Congresso de Ibiúna e as prisões dos estudantes; veio o AI-5 e as liberdades foram suprimidas; veio a tortura e uma tentativa de luta armada. A Maria Antônia e o Brasil nunca mais foram os mesmos.

GILBERTO AMENDOLA é jornalista e autor do livro Maria Antônia a história de uma guerra (Editora Letras do Brasil).

Fonte:

Filosofia