Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro
Profa. da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB
casimiro@uesb.br
1 CONSIDERAÇÕES GERAIS
Inicialmente, gostaria de considerar sobre a nossa pretensão de contribuir para um primeiro mapeamento do estado da arte para as pesquisas em História da Educação no Brasil colônia, já iniciado pelos estudiosos deste assunto, que ora participam das vídeo-conferências do HISTEDBR, lembrando que algumas colocações preliminares se fazem necessárias:
1 - Não podemos perder de vista que os limites históricos e geográficos deste período iniciam-se, praticamente, nos primeiros anos do descobrimento e, mais precisamente, com a vinda dos primeiros jesuítas liderados pelo Padre Manoel da Nóbrega em 1549. Com a expulsão dos mesmos em 1759, podemos dizer que a Companhia de Jesus atuou no Brasil colônia cerca de 210 anos. Portanto, em um período longa duração;
2 – Dentro dessa idéia de longa duração, e em cada contexto especial, a depender dos bons ventos políticos ou das adversidades que se abateram sobre a Companhia ou sobre alguns dos seus membros, muita coisa aconteceu nos caminhos pedagógicos idealizados por seus líderes. Então, ao falarmos da História da Educação tendo em mente a ação da Companhia de Jesus, vários podem ser os objetos, vários podem ser os enfoques e várias são as literaturas a serem revisadas;
3 – Só a título de ilustração, sabemos que, além de uma educação para os filhos dos fidalgos portugueses e para a formação dos quadros religiosos (que se dava nos colégios e casas da Companhia), os jesuítas desenvolveram um trabalho missionário, consistente e duradouro, por todo o Brasil, principalmente nas regiões de fronteira (neste caso, com claros objetivos políticos), mas, também, próximo aos núcleos urbanos iniciais, como nos mostra as publicações da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina - CEHILA (FRAGOSO, 1992; HORNAERT, 1992);
4 – Desenvolveram, também, pedagogias para tratar da educação/evangelização dos escravos, principalmente dos escravos domésticos, e, ao lado disso, encetaram campanhas pela humanização da escravidão e participaram da elaboração de leis canônicas que garantissem tanto a evangelização desses escravos negros, como as normas que deveriam direcionar o seu trato pelos patrões (CASIMIRO, 2002);
5 – Devemos ter em mente que, além dos Jesuítas, também m outras ordens religiosas, mormente os franciscanos (com suas várias denominações: observantes, conventuais, capuchinhos), os carmelitas, mercedários, dentre outras, também participaram da evangelização em missões, possuíram casas de
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formação religiosa (BOSCHI, 1986; CASIMIRO 1996) e ministraram estudos de evangelho e ‘primeiras letras’, igualmente durante toda a vida colonial (JABOATÃO, 1859; FRAGOSO, 1992);
6 – Lembramos que, no caso das mulheres, algumas ordens femininas começaram a surgir no Brasil, principalmente a partir do século VXII, sendo que as primeiras educadoras cá conhecidas foram as clarissas enclausuradas (franciscanas) que chegaram à Baía de Todos os Santos no dia 29/04/1677 e poucos anos depois construíram o Convento do Desterro em Salvador. Chegaram na segunda metade do século XVII, mas sabemos que, desde o final do século XVI, as famílias baianas já rogavam ao Rei que mandassem freiras para fundarem conventos e internatos para as suas filhas. Pesquisas mostram que muitas vezes os pais preferiam vê-las no convento a vê-las casadas. Isto era feito para deixarem a herança da família em ‘morgado’ como era comum naquela época. Domingo Pires de Carvalho, conseguiu vaga para seis das suas filhas e para algumas netas, mediante generosos dotes para o Convento. (NASCIMENTO, 1994; ALGRANTI, 1993). Sabemos, igualmente, de uma realidade composta de crianças abandonadas, filhos ilegítimos (inclusive filhos de padres) e órfãos, para os quais havia formas de educação distantes do padrão vigente (GUSMÃO, 2000; RUSSELL-WOOD, 1981; PRIORE, 1992).
7 – Assim, dentro de um tema amplo como a História da Educação colonial, se não relacionarmos o nosso objeto de estudo com o contexto histórico imediato onde ocorriam as mencionadas ações, e se não visualizarmos os limites mais amplos do fenômeno, corremos o risco de achatar / enviesar / distorcer o nosso objeto, tomando a parte pelo todo;
8 – Finalmente, reiteramos a importância dos estudos sobre a Bahia, bem como das fontes lá existentes, primeiramente pela defesa de que os estudos regionais devem ser valorizados, como bem colocou o Prof. Dr. Gilberto Alves, no dia 17/03/2005 (no I Colóquio COMUNICAÇÕES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO da Agenda 2005 - HISTEDBR) (Vídeo-Conferência). Em segundo lugar, devido ao fato de que desde o descobrimento até acontecer a mudança da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, a Bahia era a sede do Governo Português, sede do Arcebispado do Brasil em um período em que Igreja e Estado andavam juntos. Assim, mais do que história regional, sua história se confunde com a própria história do Brasil e os seus arquivos guardam ainda muitas fontes primárias que ainda estão por ser exploradas1.
2 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL COLONIAL: INVESTIGAÇÃO E ABORDAGENS
Partimos da observação da realidade em que relações de produção entre os atores/homens, produzindo sua existência, bens materiais e representações mentais, no palco colonial — uns na condição de senhores (a minoria) e outros na condição de escravos (a maioria) — nos evidenciam a intensa polaridade de classes instaurada no Brasil colônia. É bem verdade que, com o transcorrer do tempo, com a diversificação da economia colonial, o crescimento da população, o surgimento de vilas e cidades, e com a miscigenação racial, apareceram, a partir do final do século XVII, novas camadas
1 Conferir, principalmente as obras de Luís Henrique Dias Tavares, Kátia M. de Queirós Mattoso, Hugo Fragoso, Cândido da Costa e Silva, Ana Amélia Nascimento e Maria Helena Flexor. E as obras de época de Sebastião da Rocha Pita e do Frei Antônio Jaboatão, dentre outras.
sociais. Mas, apesar disso, as relações sociais básicas continuaram encetadas, principalmente, entre aqueles que produziam e aqueles que detinham os bens produzidos (CASIMIRO, 2002).
Nessa época de estratificação social muito rígida, baseada na propriedade fundiária e relações escravistas, havia instituições, ideologias e mentalidades que contribuíam para a confirmação do lugar social de cada grupo. A principal dessas instituições era o próprio Estado Português que, visando à exploração da colônia, condicionou a política colonial aos interesses do reino, porém, mantendo um sistema de delegação de poderes aos senhores de terra. Lugar de destaque coube, também, à Igreja Católica que, com seu conjunto de normas, um enorme exército de servidores, uma ideologia ‘da salvação’ e mediante participação constante em todas as instâncias da vida social atuou, efetivamente, na colônia.
Para entendermos a educação naquele contexto, devemos levar em conta o modo como se constituiu o sistema social, quando, tanto em Portugal como em suas colônias, todas as decisões de caráter religioso dependiam do Rei em virtude do instituto do ‘Padroado’2 que conferia ao monarca o lugar de chefe da Igreja. O direito do Padroado identificou-se com os ‘direitos’ de conquista, determinando o caráter evangelizador e colonizador do Brasil e direcionando o modelo cultural e educacional. Logo, como parte mais importante daquela sociedade, obrigando, punindo, doutrinando e educando, estiveram, sempre, agentes da religião católica, permeando todas as camadas sociais, infiltrando-se na vida material e espiritual do povo, de forma obrigatória e com justificativas legais, políticas e espirituais.
A Igreja no Brasil teve, a partir do início do século XVIII, suas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707, pela iniciativa do Arcebispo Dom Sebastião Monteiro da Vide, e foram as diretrizes administrativas, jurídicas, ideológicas e educacionais que confirmaram e legitimaram todo um sistema de poder imposto pelo Estado, cujo Rei comandava a Igreja. As Constituições nos mostram, em todo o seu teor, clara opção pela defesa dos direitos dos portugueses e seus descendentes brancos, em detrimento dos índios, negros ou cristãos-novos (judeus ou filhos de judeus convertidos), seja no que diz respeito à escravidão e às suas conseqüências sociais, seja quanto aos direitos e deveres do clero e dos fiéis ⎯ ou, ainda, quanto à imposição de modelos educacionais, atitudes e comportamentos considerados 'adequados' ou ‘inadequados’ à conduta social.
2 A palavra padroado, geralmente, significa direito de protetor, adquirido por quem fundou ou dotou uma igreja. Direito de conferir benefícios eclesiásticos. No texto, o termo Padroado se refere ao direito de autoridade da Coroa Portuguesa a Igreja Católica, nos territórios de domínio Lusitano. Esse direito do Padroado consistiu na delegação de poderes ao Rei de Portugal, concedida pelos papas, em forma de diversas bulas papais, uma das quais uniu perpetuamente a Coroa Portuguesa à Ordem de Cristo, em 30 de dezembro de 1551. A partir de então, no Reino Português, o Rei passou a ser também o patrono e protetor da Igreja, com as seguintes obrigações e deveres: a) Zelar pelas Leis da Igreja; b) Enviar missionários evangelizadores para as terras descobertas; c) Sustentar a Igreja nestas terras. O Rei tinha também direitos do Padroado, que eram: a) Arrecadar dízimos (poder econômico); b) Apresentar os candidatos aos postos eclesiásticos, sobretudos bispos, o que lhe dava um poder político muito grande, pois, nesse caso, os bispos ficavam submetidos a ele (FRAGOSO, 2000, p.14).
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A ideologia religiosa amorteceu os conflitos sociais latentes e tentou doutrinar os escravos para a obediência aos senhores, mediante ameaças de castigos divinos, promessas de obtenção de indulgências plenárias e vida celestial. Funcionou, no plano normativo, através das constituições eclesiásticas em vigor, e do conceito de ‘direito divino’, de modo insistente e permanente, entretanto, com uma concepção de justiça diferenciada, caso se tratasse do senhor ou caso se tratasse do escravo. Funcionou, na prática, como aparelho repressor, ainda mais temido e eficiente, diante dos atributos do Tribunal do Santo Ofício, sediado na Metrópole. A mentalidade portuguesa arraigada em autoconsciência de povo 'eleito', de 'arautos da fé', reforçada pelas alianças com Roma e pela militância das ordens religiosas, principalmente a jesuítica, impregnou o pensamento dominante e a educação da sociedade colonial. Acreditou-se, na época, que ao índio 'selvagem', ao negro 'inferior' e ao judeu de 'sangue impuro’ antepunha-se, pela vontade de Deus, o português de raça 'pura', cristão e ‘eleito’, portanto, o único e justo merecedor das terras conquistadas, de benefícios materiais e de lugar diferenciado na sociedade, nas escolas, na Igreja e no ‘reino dos céus’ (CASIMIRO, 2002).
Destarte, Igreja e Estado exerceram ação de sujeição ideológica e educativa censurando livros, proibindo veículos de imprensa e manipulando as idéias dos textos clássicos, enfim, ‘ocultando o saber’ e mantendo a ignorância, através da Mesa de Consciência e Ordens. Além disso, incutiam nas consciências noções de pecado, para catalizar os conflitos sociais e para reforçar o sistema jurídico. Assim, ao lado dos crimes de sedição, desobediência civil, lesa-majestade etc., forem acrescentados os pecados correspondentes, de cunho religioso.
Notas subjacentes à educação colonial
No que diz respeito à educação, no sentido lato, desse período, podemos dizer que a Igreja tomou a si o papel principal, oferecendo oportunidades desiguais, manifestando preconceitos e justificando-os, em nome do Evangelho. Uma parcela de brancos freqüentava os colégios e podiam, alguns, fidalgos, ir completar os seus estudos no Reino. Para outros, que faziam parte da maioria da população, os não-brancos, ela proporcionou apenas os rudimentos das primeiras letras, o ensino profissionalizante, a catequese e a cristianização. Documentos nos mostram toda uma legislação eclesiástica discriminando os negros, os índios e os cristãos-novos, para a vida religiosa e, decorrentemente, para a educação, como observamos, por exemplo, nas diligências que se deviam fazer sobre os candidatos à vida religiosa, contidas nas determinações das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia que recusam o candidato: “2. Se [o ordenando] é, ou foi herege apóstata de nossa Santa Fé, ou filho ou neto de Infiéis, Hereges, Judeus ou Mouros [...] 4. Se tem parte da nação Hebréia, ou de outra qualquer raça infecta: ou de Negro ou de Mulato” (VIDE, 1853, p.224).
Subjacente às regras e à práxis religiosa e educacional, como um dos fatores mais importantes no direcionamento, não só da educação, mas da moral, da ética, dos direitos e dos deveres do homem colonial, constatamos, ainda, a presença de uma pedagogia religiosa, cujos contornos não se limitaram à geografia ibérica nem à colonial, mas circunscreveram todo o espaço cristão do Ocidente, partindo do pressuposto básico de que a fonte de tudo era Deus e de que o direito divino deveria subordinar o direito humano. Essa pedagogia religiosa, de contornos imprecisos, foi um dos fatores mais importantes no direcionamento da educação, da moral, da ética, dos direitos e dos deveres do homem
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colonial. Uma pedagogia que impregnou a sociedade colonial em todos os seus espaços, públicos e privados, doutrinando e castigando — em nome da fé — indistintamente, vigilante, e da qual, todos eram, ao mesmo tempo, mestres e alunos. Seus principais ministros foram o clero e as ordens religiosas. Havia, em tal pedagogia, um objetivo comum, que era veicular a mensagem moral de Jesus Cristo. Para esse fim, tomara já diversas formas no decorrer da história ocidental e, a despeito das variações conjunturais, ainda conservava parte da essência pedagógica extraída dos ensinamentos evangélicos. No mundo colonial, teve de contemplar novas necessidades e adquirir contornos específicos de justificação. Continha, em síntese: Conteúdos Teológico-Morais; e Conteúdos Doutrinário-Catequéticos, que se traduziam em uma pedagogia religiosa e em uma crescente atividade evangelizadora, por todo o mundo ocidental. Essa vasta atividade literária e intelectual sofreu variações qualitativas e quantitativas em seus conteúdos, em cada espaço onde se instaurou, a depender das formas a inserção e a intervenção da Igreja, nos diversos lugares e períodos históricos (CASIMIRO, 2002).
A partir do cristianismo, a teologia moral, os conteúdos doutrinários e a pedagogia religiosa se plasmaram com base nas homilias e nos escritos teológicos dos assim chamados Primeiros Padres, cujas fontes inspiradoras foram as Sagradas Escrituras. Ficou conhecida como Teologia Patrística. A seguir, nas diversas etapas da Idade Média, os teólogos, chamados escolásticos, continuaram a interpretar as Escrituras nas suas fontes e, principalmente, fazendo releituras dos textos sagrados, mediante as interpretações dos Padres. Esta vertente ficou conhecida como Teologia Escolástica e subsistiu, praticamente, até os movimentos da Reforma, Reforma Católica e o advento do Iluminismo.
No início do século XVI, particularmente com a cisão da humanidade cristã em protestantes e católicos, a fundação da Companhia de Jesus, em 1540, e as disposições do Concílio de Trento (1545-1563), aqueles conteúdos teológico-morais, doutrinários e catequéticos foram, mais uma vez, re-significados. Era a Segunda Escolástica, também chamada Escolástica Espanhola, herdeira da filosofia escolástica clássica. Esta nova vertente se constituiu adaptada ao enfrentamento dos novos desafios da modernidade e voltada para responder aos problemas advindos da colonização moderna e da evangelização de novos povos.
Nesse novo panorama, a fundação da Companhia de Jesus, foi um fato incontestável, como elemento colaborador das mudanças previstas. O modo inicial como a Companhia organizou-se inicialmente foi pautado, prevalentemente, pelas idéias de Santo Inácio e daqueles companheiros iniciais, que pressentiram as ‘ameaças’ à ortodoxia da Igreja Católica, naquela nova realidade Pós-Reforma. Quando Santo Inácio morreu, em 1556, a Companhia de Jesus, com a liderança do fundador, já tinha elaborado as suas principais regras de sobrevivência, que foram as Constituições da Companhia de Jesus (1547-1551), a Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (1548-1599). E, em pouco tempo, já espalhara sua influência teológico-pedagógica nos principais pontos da Europa e do universo colonial.
Reverberando no Brasil colonial, a atuação da Igreja teve, como premissa básica, essa ‘pedagogia’ que doutrinava, justificava a doutrina, fiscalizava e punia. Isso aconteceu, na maioria das vezes, por intermédio das ordens religiosas aqui instaladas, como as ordens dos carmelitas, mercedários, franciscanos, e, prioritariamente, os jesuítas, principais propagadores da fé e da Igreja Católica em todo o Reino Português. Estes últimos, com uma organização escolar mais ‘eficiente’, tiveram colégios espalhados por todo o Brasil e atuaram, não só na educação, mas, em todas as instâncias da vida colonial até o advento da política pombalina, quando foram expulsos, em 1759 (LEITE, 1938-1950).
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Ao enfocarmos o contexto colonial brasileiro, dividido em classes antagônicas, suscitamos algumas questões que serão, igualmente, norteadoras da presente discussão. Primeira questão: Na nascente sociedade brasileira, como era a vida dos senhores e seus filhos e como se dava, conseqüentemente, a educação que os preparava para a vida? Segunda: Como era a vida dos escravos e qual era a educação que os preparava para a vida? Terceira: De que maneira os religiosos, principalmente os jesuítas — principais agentes da educação brasileira colonial — interferiram na educação de uma significativa parcela da sociedade brasileira: aquela que gerava e reproduzia os bens materiais, ou seja, a classe dos escravos? E, mais: que alterações eles tiveram de fazer em seu trabalho educativo e que respostas tiveram de dar em razões dos novos desafios (geoculturais) da situação colonial?
Antecipadamente, podemos afirmar que na sociedade colonial era ministrada uma ‘educação que preparava para a vida’, completando, contudo, que ‘preparava para a vida que cada classe haveria de viver,’ naquela formação hierárquica e de mobilidade rígida. E reafirmar que havia concepções de educação diferenciadas e subordinadas às condições e ao lugar social de cada grupo. Logo, o processo educacional colonial transcorreu de forma homóloga às outras instâncias da vida social, isto é, com modelos de educação diferentes, caso se tratasse dos portugueses e seus descendentes ou caso se tratasse dos índios, negros, mestiços e cristãos novos. Para os primeiros, os brancos, todos os direitos educacionais3, inclusive o de ingressar no sacerdócio ou nas fileiras das ordens religiosas ou, ainda, de complementar estudos em Portugal. Assim mesmo, era para poucos. Para os outros, havia apenas tipos de aprendizagem que permitiam a prática dos serviços subalternos e a catequese, com o objetivo de cristianização. Também era para muito poucos.
Nesse sistema, gozava de importância fundamental a educação religiosa4, que era ministrada indistintamente a todas as classes, porém com ênfases diferenciadas. Aliás, como já dissemos, além de uma educação religiosa ministrada nas obras da catequese, nas missões e nos colégios, havia, precedentemente, uma verdadeira pedagogia religiosa, que regulava toda a vida colonial. Na Bahia, garantindo a eficácia dessa pedagogia cristã, o ensino doutrinário era matéria prevista a partir de 1707, nas mencionadas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, constituindo-se como prática obrigatória e vigente, em todo o âmbito social, desde a época do descobrimento. Era o fermento e a justificativa maior da existência daquela formação social que se dizia predestinada para ‘Dilatar a Fé e o Império’ católicos. Dilatar a Fé era um compromisso da Igreja, mas era, também, um dever do Reino. Dilatar o Império era um objetivo conquistador do Reino, mas era inteiramente do interesse da Igreja, a qual via ampliar-se o espaço para a propagação da Fé, uma vez que, na visão da conquista, o ‘novo orbe cristão’ era aquele espaço no qual a Fé iria vencer a ‘infidelidade’. Entretanto, na preocupação com a dilatação do Império, muitas vezes a Igreja era atropelada nos seus princípios teológicos e objetivos evangelizadores, e submetida aos interesses temporais, em detrimento dos espirituais. Da
3 Deve-se deixar claro que no contexto colonial também o ‘direito’ dos brancos era limitado. Não havia, diante da nova realidade, direitos irrestritos para os brancos porque tanto era restrita a liberdade de consciência quanto havia instrumentos sociais reguladores da liberdade. Além disso, nem todos os brancos, tinham acesso à escola.
4 Mesmo a educação não-religiosa era informada religiosamente, como por exemplo, a) o conceito de homem com alma imortal e corpo perecível; b) o conhecimento científico subordinado às razões da fé; a censura ideológica às obras dos filósofos modernos etc.
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mesma forma, a Igreja só logrou atuar e crescer, tendo por amparo material e legal o aparato do poder estatal (AZZI, 1987).
Repetimos que mesmo essa educação religiosa era diferenciada, nas leis e na prática, pois, enquanto os filhos da elite eram alvos de uma educação formal, longa e diversificada, preparatória para o poder e/ou para a vida eclesiástica (como parte do alto clero), apenas segmentos restritos das classes populares (brancos, evidentemente) tinham acesso aos rudimentos escolares: isto é, ler, escrever e contar. A educação religiosa dos primeiros, ministrada nos colégios, nos seminários e na Universidade de Coimbra e baseada em gramática, filosofia, humanidades e artes, completava-se com o estudo de cânones e teologia. A educação religiosa dos segundos, negros, índios e mestiços, a maioria da população, ministrada nas missões, nos engenhos e nas igrejas, ensinava apenas o catecismo preparatório para o batismo, para a vida cristã e para cumprir os deveres para com Deus e para com o Estado, e para com os senhores.
Aliás, não poderia ser de outra forma, uma vez que essa situação era reflexo de todo um abismo social, no qual espaços sociais diferentes eram dados para a prática religiosa (irmandades dos brancos e irmandades dos negros); as procissões eram hierarquizadas a partir do lugar social; as missas e, conseqüentemente, os sermões, eram ministrados em espaços diferentes e de forma diferente; e até o tempo livre, para dedicação ao culto divino, era diferente (BOSCHI,). Observamos, entretanto, que apesar de diferenciada a educação religiosa, em ambos os casos, introjetava uma visão de mundo religiosa e esperava (obrigava) que as pessoas se comportassem de acordo com essa visão. As pessoas eram preparadas para fazerem a leitura da realidade de acordo com as idéias religiosas da época, como: ‘sinais do tempo’, ‘castigo de Deus’, ‘desígnios de Deus’, ‘corpo perecível e alma imortal’ etc. Aliados a tais idéias havia mecanismos de controle e punições das transgressões civis e religiosas. E, finalmente, a certeza das sanções divinas para os pecadores e a perspectiva do ‘fogo do inferno’, para quem morresse em pecado mortal (CASIMIRO, 2002).
De modo geral, essa pedagogia religiosa (na sua essência), e essa educação religiosa, (de ordem prática, composta de catequese, normas religiosas impostas e obrigatórias, doutrinação, castigos, representações imagéticas, rituais, cultos e, prioritariamente, a pregação), no Brasil colonial foram, talvez, as formas mais eficientes de ‘educação para a vida’ daquele tempo, pois preparavam, simultaneamente, os senhores e os escravos, os possuidores e os despossuídos, os poderosos e os subjugados, os mestres e os alunos. Educavam, portanto, para a perpetuação da instituição Igreja Católica, para o êxito da empresa colonial, para a manutenção do status quo de um pequeno grupo e para a instauração de formas de mentalidades e representações que ultrapassaram as barreiras daquele período e que perduram, até hoje, como traços característicos da sociedade brasileira. Educavam, enfim, ‘para a maior glória de Deus e da Igreja’.
Os Religiosos e a escravidão colonial
Podemos afirmar que os jesuítas foram os agentes educacionais que mais contribuíram para a eficácia do projeto colonial. Atuando simultaneamente em todo o tecido social, os inacianos educaram, formal
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e informalmente, a partir dos seus colégios, das suas missões, dos sacramentos, da liturgia, da arte que adornava seus templos, e dos sermões proferidos. Educaram de acordo com o lugar social de cada educando, ou seja, nos colégios, nas missões e nas senzalas.
Quando os jesuítas chegaram ao Brasil, não encontraram a escravidão. Mas ela já existia, há séculos, na Europa, principalmente na Espanha e em Portugal. Mas, logo tiveram que enfrentar o problema da escravidão que, no Brasil, foi adotada em larga escala. Nesse sentido, como ficava a consciência desses religiosos, herdeiros dos Exercícios Espirituais inacianos e possuidores de sentimentos religiosos motivadores da evangelização e da educação, diante da existência de uma escravidão intensa, cruel e anacrônica, posto que já inexistente em vários países da Europa? Apresentamos dois enfoques que ajudam a responder a essa questão:
No primeiro enfoque, Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M.M. Mendes colocam a existência da escravidão como condição fundamental para a sobrevivência e êxito da empresa colonial — condição pressentida e aceita por toda a sociedade da época, inclusive pelas falanges religiosas. Dizem os autores que “Nesta fase de desenvolvimento das relações capitalistas de produção a escravidão não é somente condição ideal, mas necessária do processo de acumulação e centralização. Em certa medida, o escravismo colonial, ou o sistema colonial, é a alavanca mais potente do novo modo de produção” (IN: BENCI, 1977, p.16). Isto significa, dizem os autores “que tal sistema foi organizado com o objetivo precípuo de obter o máximo de sobretrabalho ou mais-valia” (In: BENCI, 1977, p.16). Analisando outras obras de religiosos coloniais, Figueira e Mendes observam como os autores Benci, Antonil, Manuel Ribeiro da Rocha e Azeredo Coutinho estabeleceram e evidenciaram categorias como “capital, sobretrabalho, lucro, colônia, metrópole, escravidão, colonização, trabalho necessário e excedente”, reveladas, inclusive com riqueza de detalhes.
Um segundo enfoque para se compreender a convivência das consciências religiosas coloniais com o cativeiro instituído antecede ao descobrimento, aos primeiros anos de colonização e à própria introdução da escravidão colonial no Brasil. Tal escravidão remonta às primeiras conquistas realizadas por Portugal no norte da África, respalda-se nas alianças sucessivas entre o Reino Português e a Sé Romana, na idéia crescente dos poderes divinos do Rei e consolida-se no próprio processo de conquista e colonização. Hugo Fragoso refere-se ao marco inicial para a arrancada conquistadora lusitana afirmando que
A Conquista portuguesa vinha de uma longa caminhada, desde quando em 1415 os portugueses fincaram pé na África (Ceuta), partindo daí a arrancada conquistadora. Essa peculiaridade fez com que a conquista portuguesa assumisse, antes de tudo, o aspecto de uma GUERRA SANTA, ou cruzada contra os maometanos, “inimigos da Fé”. A legitimação da Conquista portuguesa é um desdobramento e ampliação dos princípios estabelecidos no confronto do Orbe Cristão medieval com outros povos, sobretudo, com os povos “infiéis”, adversários da cristandade, que caracterizavam a “guerra santa” (FRAGOSO, 1992.p. 167-200).
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A partir de então, legitimaram a Conquista portuguesa inúmeras bulas papais, das quais uma das mais importantes é, sem dúvida, a Bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1554, na qual o Papa Nicolau V refere-se ao esforço do Infante D. Henrique, para a salvação das almas, como “verdadeiro soldado de Cristo [...] reduzindo à sua fé não só os sarracenos inimigos dela, como também quaisquer outros infiéis, depois da conquista de Ceuta por seu pai [...] e cada vez mais animado do mesmo propósito, povoou de fiéis ilhas desertas onde fez construir igrejas e outras casas piedosas, fez batizar e converter os habitantes de outras, para propagação da fé e aumento do culto divino” (FRAGOSO, 1992. p. 167-200). A Bula descreve o processo de conquista portuguesa, tanto em minúcias geográficas quanto no modo como os habitantes de cada região foram sendo, “Guinéus e negros tomados à força, outros legitimamente adquiridos, por contrato de compra, foram trazidos ao reino, onde em grande número se converteram à fé católica”.
Observamos que essas bulas papais não restaram como ‘letra morta’. Pelo contrário, traduziram-se em códigos de leis e em normas de direito canônico que foram ensinadas e aprendidas nas principais casas de formação religiosa e universidades da época, veiculando-se como mentalidades que não eram privativas da Igreja ou dos jesuítas, mas, que perpassavam toda a sociedade lusitana e mesmo européia, da época. Deram, pois, direção a um processo já em curso. Um dos mais significativos desdobramentos desse ‘direito’, decorre do livro do jesuíta Alonso de Sandoval, que trata da escravatura5. A obra, segundo Serafim Leite, de um autor que não é teólogo, nem entra na discussão da legitimidade da escravatura, interpreta obras de Direito Civil e Canônico como, por exemplo, a obra de Luís de Molina6.
Nestas disputas 34 e 35, Luís de Molina trata da procedência dos escravos (de guerra ou de comércio), e antes, na disputa 32, tratara da escravatura como tal, se era lícita ou não. E responde: “A Escravidão é lícita e justa, se os títulos forem legítimos; o que é manifesto pela opinião comum dos Doutores, pelo Direito Civil e Canônico [...] e também pela Sagrada Escritura” [...] E assim, remetendo-se a Molina, Sandoval não expõe a doutrina nem discute a legalidade da escravatura, e, portanto aceita-a, como a aceita o doutor que alega (LEITE, 1965, p.350).
Esses enfoques justificadores e facilitadores do escravismo colonial — o aspecto econômico, ou seja, a escravidão como meio de sucesso da empresa colonial; e o aspecto jurídico-eclesiástico, ou seja, os documentos papais e canônicos, permitindo a escravidão por guerra justa ou resgate — influenciaram a moral religiosa colonial, ganharam os púlpitos, o homem comum e impregnaram a mentalidade da época. Por isso, os religiosos, com raríssimas exceções, não se posicionaram contra a escravidão como tal. Quando o projeto colonial necessitou de mão de obra para se viabilizar, já estava instaurada, portanto, a escravidão com suas fontes fornecedoras de cativos e suas justificativas legais e religiosas — oriundas dos próprios documentos papais. O aspecto inovador desse tipo de escravidão foi a contradição existente entre a presença religiosa na Colônia trazendo a ‘boa nova’ da evangelização e a presença de uma escravidão planejada, intensa, sistemática e cruel. Neste cenário, os jesuítas tiveram,
5 designado Naturaleza, Policia Sagrada i Profana, Costumbres, Disciplina i Cathecismo Evangelico de todos Etiopes, Sevilha, 1627.
6 De acordo com Serafim Leite, “Na Disputa 34, Molina estuda as guerras, algumas das quais declara justas e portanto legítimos os escravos delas provenientes, nem têm os mercadores e compradores obrigação de consciência de inquirir sôbre o título desses escravos” (LUDOVICUS MOLINA, De Iustitia e Iure. Venetiis, 1594. In: LEITE, 1965, p.351).
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em primeiro lugar, que se posicionar, quanto à existência da escravidão7 e, em segundo lugar, que estabelecer projetos pedagógicos diferentes, caso se tratasse dos senhores, caso se tratasse dos nativos e dos africanos escravizados. Analisando o posicionamento dos religiosos face à escravidão no Brasil, Hugo Fragoso distingue, a priori, três aspectos da escravidão que explicitam como era vivenciado esse problema na época colonial:
Primeiramente, a Escravidão como Instituto. Durante todo período de nossa História, em que vigorou a escravidão, ou melhor, até quase às vésperas da Lei da Abolição sancionada em 1888, havia uma aceitação pacífica, por parte dos homens de Igreja, no que toca à ‘escravidão como tal’ [...] O segundo aspecto da escravidão, que se deve ter em conta, é o da Escravidão fora da Lei, ou a escravidão ‘ilegal’. A Igreja oficial, e com ela os religiosos, sempre condenou unanimemente tal escravidão à revelia da lei [...] A Lei que regulamentava a escravidão era uma ‘norma’ a que se devia submeter [...] E, finalmente, um terceiro aspecto da escravidão, que se deve tomar em conta, é o da Escravidão em seus Excessos8. Foi unânime a condenação dos homens de Igreja aos excessos ou maltratos dos patrões aos seus escravos, sem com isso quererem condenar a escravidão como tal (FRAGOSO, 1992. p. 167-200).
O autor, com base nos textos de alguns religiosos coloniais, defende a idéia de que pouquíssimos9 deles se posicionaram contra a escravidão institucional, ou a chamada ‘escravidão como tal’. Mas, completa, afirmando que pouquíssimos, também, foram os que não protestaram contra aquilo que lhes parecia ser crueldade e excesso da prática escravista vigente. Neste último caso, acrescenta o autor: “Queremos aqui destacar, de modo especial, os religiosos Capuchinhos, por sua peculiaridade no conjunto dos religiosos do Brasil. Vinham eles de outro horizonte e de outra realidade (França, e depois Itália), e por isso seu mundo mental fora plasmado em categorias outras, que não as do sistema colonialista; razão por que se chocavam eles profundamente com a crueldade e desumanidade que revestiam na prática a escravidão negra” (FRAGOSO, 1992. p. 167-200).
Como bem disseram alguns historiadores que hoje se debruçam sobre o passado escravista, o problema não se resumia em aceitar ou não aceitar a escravidão institucional. O problema é que a não aceitação da escravidão significava para os religiosos a impossibilidade de permanência no Brasil. Assim, estudar a educação no Brasil colonial pressupõe compreendermos que havia várias formas de educação, todas influenciadas e decorrentes das posições assumidas pelos principais religiosos que se pronunciaram sobre a escravidão e que impregnava o espaço colonial.
7 Problema que não era específico da realidade colonial brasileira, mas que se levantava em âmbito de todas as colônias do Império Português.
8 Grifos nossos.
9 Sabe-se de uma minoria de religiosos coloniais que foram terminantemente contra a escravidão e a denunciaram contundentemente, sendo considerados como ‘perigosos’ e não puderam permanecer no Brasil. Dentre muitos outros, vale a pena lembrar os nomes dos jesuítas Miguel Garcia e Gonçalo Leite e os franciscanos capuchinhos Frei José de Bolonha e Francisco de Spezzia. Autores, a exemplo de Hugo Fragoso, Eduardo Hoornaert, João Evangelista Martins Terra, têm publicações que relatam mais detalhadamente essa outra face religiosa colonial (In: FRAGOSO, 1992, p. 167-200).
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3 DO MÉTODO À TEORIA PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL COLÔNIA
Devemos delimitar de forma bastante flexível o tempo e o espaço de abrangência das pesquisas que envolvem educação e religião, e uma ‘longa duração’ deve ser contemplada, como necessária à compreensão histórica desses tipos de estudo, que são bastante difíceis de precisar, espacial e cronologicamente. Quando se trata de Educação no Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII, o espaço colonial em questão não pode ser entendido a não ser como parte do reino universal português (Novo Orbe Cristão), uma vez que o que acontecia na Metrópole ressoava nos espaços colonizados (economia, formas organização social, idéias, mentalidades, formas de consciência, representações culturais), porém, com especificidades próprias. Deve ter como fundo, o mundo ocidental (Orbe Cristão) dividido abissalmente pela reforma protestante e pela reação católica; b) o mundo Português, compreendendo um conjunto de partes pertencentes a um mesmo todo, ou seja, o império português, nos séculos XVI, XVII e XVIII, por sua vez compreendendo a Metrópole (centro) e as suas Colônias d’além mar (África, Ilhas, Brasil, Índia, China).
No caso de estudos envolvendo Brasil colonial, educação e religião, mesmo considerando-os como fenômenos situados no campo das representações, devemos buscar as explicações (e estas serão encontradas), primeiramente, na forma como se constituiu a sociedade colonial, tomando como base, é claro, o homem colonial (os primeiros colonos portugueses, os senhores de terra, os nativos, os escravos, o clero, os jesuítas, outros religiosos).
Na pesquisa em questão, devemos, em primeiro lugar, firmar o compromisso metodológico com a pesquisa historiográfica concreta, em oposição à reflexão filosófica abstrata, ou seja, ler, analisar e confrontar os textos da época em foco com dados da realidade concreta; em segundo lugar, dar ênfase na significação do trabalho enquanto transformação da natureza e mediação das relações sociais, o que significa compreender como se davam as relações de trabalho na sociedade colonial e, em terceiro lugar, devemos procurar negar da autonomia das idéias na vida social e compreender o texto no seu contexto histórico. Essa visão não pode anular a importância que deve ser dada ao objeto central da pesquisa, situado no plano das representações. Mas deve, sim, direcionar corretamente a análise, lembrando que “as formas jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas ⎯ também exercem sua influência sôbre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante” (MARX E ENGELS, s/d, p.284).
Compreendemos que, no caso da presente discussão, estes fenômenos aconteceram de maneira mais rápida, por se tratar de uma sociedade que se formou a partir de recortes de culturas já existentes anteriormente, como foi o caso da sociedade colonial, cujos fatores representados foram, basicamente, transplantados da Metrópole, sendo que muitos pertenciam a tradições seculares. Portanto, tendo em vista esse pano fundo sócio-cultural subjacente, ou seja, ⎯ o modo como se deu a organização material e social do Brasil colônia ⎯ devemos pugnar por uma abordagem capaz de analisar o texto,
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no caso a educação colonial, nos seus aspectos imanentes, bem como o contexto, nos seus aspectos transcendentes, à luz da teoria.
Para um estudo de tal natureza, devemos buscar, pois, chaves de leitura que revelarão significados formais e simbólicos que desvendarão capacidades mentais inerentes àquela época. As chaves de leitura principais deverão ser aquelas que nos permitirão extrair as categorias pedagógicas comuns àquele tempo. Estes textos (documentos que informam a realidade e evidenciam hábitos e costumes coloniais) serão buscados tanto na literatura impressa da época delimitada (fontes primárias impressas) e em documentos oficiais, quanto em documentos manuscritos que ainda estão por ser desvelados. Alguns arquivos que guardam documentação colonial estão prenhes deles. Escolhidos os textos, não podemos pensar sobre eles isolando-os das circunstâncias de onde surgiram. Por outro ângulo, não podemos abordá-los contextualmente e desprezar suas relações intertextuais, sincrônicas e diacrônicas. Pesquisar a educação no Brasil colonial pressupõe evitarmos polarizações teóricas maniqueístas e tentar desenvolver um diálogo descritivo e interpretativo com os textos, mediante várias propostas de leitura, capazes de deslindar as teias de relações horizontais e verticais onde se insere o problema10.
Para a eficácia desta análise, serão imprescindíveis dois tipos de abordagem: Em primeiro lugar, uma abordagem pela perspectiva da ‘longa’ duração (visando compreender o fenômeno pedagógico religioso, em épocas mais remotas); e em segundo lugar, outra abordagem englobando a pedagogia religiosa da época colonial, onde devemos tomar, como referência principal, a ação pedagógica da Companhia de Jesus, porém, sem desprezarmos outras formas de educação oriundas de outras ordens ou de outras instâncias da sociedade. Tentaremos desvendar a trama das relações sociais, mediante a teoria. No presente caso, levando em conta tratar-se de um período histórico com especificidades peculiares (barrocas), e com capacidades mentais e formas de representação próprias daquele período.
Para compreender o funcionamento do mundo mental e o espírito da época em estudo, tomamos emprestada a tese de Michael Baxandall (1991) de que “uma sociedade desenvolve suas próprias capacidades e seus próprios hábitos, os quais têm uma dimensão visual [...] e essas capacidades e hábitos visuais tornam-se parte integrante do meio de expressão do artista”. Para esse autor, assim como o olhar ‘renascente’ estaria envolvido pela presença de imagens materiais (formas, cores, medidas, corpos, gestos, figuras, comportamentos, etc.) e mentais (percepção, conhecimento, moralidade, espiritualidade, atitudes etc.), o mesmo se daria com o olhar barroco. Esta tese explica aquilo que alguns autores chamaram de ‘espírito de época’ ao se referirem à homologia existente entre as diferentes modalidades artísticas e os fatos sociais de uma mesma época. Esse espírito é muito sintomático, e quando se trata de identificar as características barrocas, salta à vista.
Faz-se mister utilizarmos a análise e a síntese como fio condutor das pesquisas e para a compreensão dos problemas, e a divisão do todo em partes (mas sem perder a idéia de conjunto), para que estas
10 Felipe Serpa, sugerindo possibilidades para a construção de uma teoria da história, explica como o conceito de historicidade em Marx supera outros conceitos modernos, pela sua capacidade de dar conta, ao mesmo tempo, das relações sincrônicas e diacrônicas do fenômeno a ser estudado. Nesse sentido, acredita-se ser o conceito de historicidade de Marx o mais adequado para dar suporte a esse delicado trabalho de deslindamento das teias das relações sociais. (SERPA, 1991).
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sejam vistas em suas especificidades e em suas relações recíprocas, para verificar os nexos que partem do mais simples para o mais complexo e para sua posterior visão em conjunto. Subentendemos que no caso do presente estudo, a parte não exclui o todo nem a totalidade exclui a parte: a parte colonial subtende o todo mercantilista; o ‘todo’ escravista não exclui o lavrador de cana; a dominância do colonizador não exclui a influência do índio e do negro na cultura, a dominação de classes não exclui a dominação da mulher pelo homem, do filho pelo pai; a perseguição de outras religiões pela Igreja Católica, a perseguição de católicos por outros católicos, o confronto entre as ordens religiosas, ou entre os segmentos hierárquicos da Igreja e, no caso do presente tema, a educação diferenciada.
Devemos estabelecer as semelhanças e diferenças entre os elementos contidos nos textos existentes, sejam aqueles formais e/ou significativos, constantes e/ou esporádicos, abstratos e/ou concretos de que o objeto em estudo é portador. Recomendamos comparar este objeto com modelos e situações, semelhantes e diferentes. Isso deve ser feito sem que percamos de vista que o conhecimento do objeto é obtido a partir da realidade concreta (só com a análise de fontes situadas naquele tempo, se obtém a visão do mesmo). Isto é, fazermos a teoria da educação jesuítica colonial, com os dados fornecidos pelos próprios jesuítas radicados na Colônia, o que não exclui, é claro, o uso de categorias formuladas pela ciência atual. Podemos usar o conceito de ‘modo de produção’ ou de ‘formação social’, porém, não aplicados mecanicamente, mas, observando aquele tempo e vendo como os objetos podem conduzir à formulação da teoria. Devemos, assim, partir da realidade para o conceito, das aparências para a essência; da essência para a teoria.
Nesta perspectiva de abordagem, consideramos que, talvez, Antonio Gramsci tenha sido o autor que forneceu os elementos teóricos mais adequados para a compreensão do presente problema. Seu conceito de ‘bloco histórico’ nos possibilita compreender como se tecia a trama das relações sociais no Brasil colonial, como se processava a dinâmica dessas relações e, sobretudo, tendo em vista a natureza do objeto, compreender qual era a função dos religiosos e dos jesuítas, particularmente, como intelectuais11 daquela formação social.
Observamos na sua obra, que dentre os intelectuais a quem Gramsci atribuiu grande responsabilidade no processo hegemônico, os religiosos, ou melhor, os agentes religiosos da Igreja católica, figuram em primeiro lugar. Para ele, ao considerar-se uma situação histórica global, na qual se distingue, por um lado uma estrutura social (as classes que dependem da relação com as forças produtivas), e por outro lado, uma superestrutura ideológica e política: O vínculo orgânico entre esses dois elementos é realizado por certos grupos sociais cuja função é operar não ao nível econômico, mas superestrutural: os intelectuais. Portelli apresenta Gramsci como o teórico que melhor compreendeu a função do intelectual no bloco histórico A depender do vínculo que o intelectual (ou um grupo deles) detém com a base estrutural e com o topo superestrutural, Gramsci os classificou de “intelectuais orgânicos” ou “intelectuais tradicionais” (PORTELLI, 1977, p.15).
Assim, tomamos os conceitos gramscianos e suas análises teóricas como chaves de compreensão da trajetória da Igreja Católica, tanto no que diz respeito à sua inserção social quanto no que respeita às suas lutas hegemônicas. Sobretudo, por considerarmos os rumos diferenciados que esta Instituição tomou nos países atingidos pela Reforma protestante e nos países ibéricos onde sua função orgânica
11 Mesmo quando, na Europa Moderna, a Igreja começou a perder o papel principal de classe de intelectuais orgânicos, isso não aconteceu em Portugal e na Espanha. Alguns autores dizem que a Idade Média em Portugal foi até o início do período pombalino, no segundo quarto do século XVIII.
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perdurou até meados do século XVIII. Gramsci realizou valiosos estudos sobre essa questão, principalmente sobre o papel e a função orgânica da Companhia de Jesus. Deste modo, suas elaborações teóricas serão imprescindíveis instrumentos para compreendermos o processo hegemônico colonial; e para respondermos sobre a caracterização dos jesuítas como intelectuais ‘orgânicos’ ou’ ‘tradicionais’, no novo orbe cristão português, em vista da perda de poder hegemônico na Europa reformada; e, finalmente, para analisarmos como os jesuítas exerciam a função de intelectuais e identificarmos qual a natureza do instrumental ideológico que eles usavam para tal.
4 IDÉIAS PEDAGÓGICAS NO BRASIL COLONIAL
Como comentamos anteriormente, subjacentes aos currículos e conteúdos permitidos nos colégios e na catequese circularam, nos séculos XVI, XVII e XVIII, não só no Brasil colonial, mas em todo o Império Português, idéias pedagógicas inspiradas na filosofia clássica, no Estoicismo, nas Sagradas Escrituras, na Patrística, na Escolástica e na chamada Segunda Escolástica12. Essas idéias, baseadas em princípios do Antigo Testamento e nos ensinamentos cristãos, no desenrolar da história, foram sendo ressignificadas e adaptadas à compreensão e à conveniência de cada tempo e lugar, por canonistas, teólogos e moralistas, comumente chamados doutores da Igreja. Principalmente a partir de meados do século XVII, até à primeira metade do século XVIII, estas idéias, que eram apresentadas em forma de sermões e livros de reflexões morais, passaram a ser difundidas com mais vigor, mediante a anuência das ordens religiosas e, prevalentemente, com a licença oficial (imprimatur) da Igreja Católica.
Ronaldo Vainfas (1986) examina como e por que os letrados da Colônia, mormente os jesuítas, passaram a ‘problematizar’ o fenômeno da escravidão, exatamente a partir de meados do século XVII. Utilizando o conceito de consciência possível13, Vainfas defende a idéia de que alguns religiosos, nos seus escritos, passaram a propor medidas que tornassem a escravidão mais duradoura (posto que fosse suavizada). Na visão do autor, os religiosos (capitaneados pelos jesuítas), intelectuais e letrados, principais propagadores dessa idéias, contribuiriam para a manutenção do status quo, veiculando ideologias religiosas que teriam como principal função a submissão dos escravizados e, consequentemente, a catalisação de conflitos.
Além de Vainfas, outros estudiosos14 do Brasil colonial nomeiam os principais intelectuais orgânicos que influenciaram e foram influenciados por idéias pedagógicas que estavam a serviço de uma pedagogia da dominação, muitos deles utilizando o conceito de ‘ consciência possível’15. E todos,
12 Ou Escolástica Espanhola (séculos XVI e XVII).
13 Vainfas trata minuciosamente do assunto em Ideologia e Escravidão e retoma o assunto no artigo Deus contra Palmares. As referências constam na Bibliografia.
14 Dentre outros, Luiz Mott, Laura Melo e Souza, Alfredo Bosi, João Adolfo Hansen, Pedro de Alcântara Figueira, Hugo Fragoso etc. (Cf. na Bibliografia).
15 O conceito de ‘consciência possível’ é de Lucien Goldmann que afirma: “Quando tentamos estudar os fatos de consciência coletiva, e mais exatamente o grau de adequação à realidade da consciência dos diferentes grupos que constituem uma sociedade, é necessário começar pela distinção primordial entre a consciência real, com seu conteúdo rico e múltiplo, e a consciência possível, o máximo de adequação ao qual poderia chegar o grupo sem, entretanto, mudar sua natureza”. Para solucionar o enigma de como a consciência cristã pôde conviver com a escravatura durante tantos séculos,
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indistintamente, se admiram de como estes intelectuais foram eficientes no desempenho desse papel. Os mais citados como ideólogos do Império Português foram, sem sombra de dúvida, os jesuítas Antônio Vieira, Jorge Benci, e João Antônio Andreoni (conhecido pelo pseudônimo Antonil); o oratoriano Manuel Bernardes e o Padre Diocesano Manoel Ribeiro Rocha16.
A despeito das diferenças estilísticas e pessoais, as obras desses religiosos tinham muita coisa em comum e mediante a verificação e análise de alguns dos seus textos mais significativos podemos estabelecer comparações sincrônicas e diacrônicas que apontam para influências unilaterais ou recíprocas. Dentre eles, aquele que de fato escreveu um livro com intenção verdadeiramente pedagógica foi o jesuíta italiano Jorge Benci, mas, a despeito das intenções, todos contribuíram, sobremaneira, para as idéias pedagógicas que circularam não só no período colonial, mas adentraram pelos séculos XIX e XX. Começaremos, pois, tentando discutir, tomando o texto de Benci como ponto de partida, de que maneira este Jesuíta pensou uma pedagogia para o Brasil colonial, como foi influenciado por seus congêneres e como influenciou idéias pedagógicas dos seus pósteros.
Jorge Benci (1650-1708)
Benci veio para o Brasil em 1681 e aqui viveu até 1700, ano em que escreveu sua obra Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. Pouco tempo depois, voltou para Portugal. No Brasil, o autor conviveu cotidianamente com o Pe. Antônio Vieira e com o Pe. João Antônio Andreoni (Antonil), e se defrontou, muito de perto, com a dura realidade do mundo colonial, que era nova para ele, mas, certamente, pressentida. No ambiente colonial, Benci pôde perceber, de perto, a atuação da Igreja e a sua função no projeto colonizador e evangelizador, que, no caso do Império Português, andavam juntos, em razão da organização política de Portugal.
A escravização dos negros em larga escala, como era praticada no Brasil, foi o exemplo mais gritante do paradoxo entre a Dilatação da Fé e do Império, uma vez que a escravidão significava a sobrevivência e o êxito da economia açucareira, mas contrariava os princípios fundamentais do cristianismo. Em aqui chegando, Benci teve que se defrontar com esse paradoxo, e mais, teve que se posicionar, assim como fizeram outros religiosos, seus companheiros de hábito. Mas, apesar de alguns religiosos denunciarem o instituto da escravidão como incompatível com o cristianismo, a maioria não chegou a um grau de consciência cristã compatível com os princípios evangélicos. Pelo contrário, muitos religiosos elaboraram idéias justificadoras da escravidão e propostas reformadoras apenas para conter as crueldades cometidas pelos senhores contra os escravos.
Essas idéias foram veiculadas em sermões, livros de teologia, reflexões morais e manuais doutrinários, autorizados pela própria Igreja, e Benci foi um desses ideólogos justificadores e reformadores da
o conceito de ‘consciência’, segundo a visão de Goldmann (1973, p.103) tem sido usado por vários autores. As referências constam na Bibliografia.
16 Segundo Serafim Leite, que certamente fez confusão de nomes, Manoel Ribeiro da Rocha era jesuíta. Na verdade, o Pe. Manuel Ribeiro Rocha, o autor de Etíope Resgatado, era do clero diocesano. Foi ‘arcipreste’ da Bahia (conferir na Introdução à sua obra, por Paulo Suess, na Bibliografia).
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escravidão colonial. Sua obra Economia Cristã, inicialmente formado por quatro sermões transformados em livro, foi autorizado pela Companhia de Jesus e pela Igreja Católica para ser impressa, como elemento catalizador e transformador das relações econômicas e sociais existentes entre os senhores e os africanos escravizados. Para Benci, foi uma árdua tarefa conciliar os seus conhecimentos filosóficos e teológicos, de forte matriz escolástica e plasmados estreitamente dentro das normas pedagógicas da Companhia de Jesus, com aquela realidade adversa, visando a execução de uma obra que tinha por finalidade estabelecer regras, normas e modelos e preconizar uma ‘economia cristã’. Dividido em quatro discursos nos quais ele recomenda o alimento, a doutrina, o castigo e o trabalho para os senhores ‘governarem’ seus escravos, o livro de Benci, aos moldes da sua época, é escrito em linguagem erudita, com mais de trezentas citações dos maiores autores cristãos (CASIMIRO, 2002).
Se comparado com outras obras da mesma época, seu livro não pode ser considerado como uma obra que ultrapasse os méritos políticos e literários das obras de outros autores, como o Pe. Vieira ou o Pe. Manuel Bernardes. Mas, Benci foi o único que apresentou, de forma consistente, uma proposta pedagógica e normas orientadoras no trato com os escravos e propôs uma dupla pedagogia: ao mesmo tempo em que orientava os senhores no trato com os escravos, sugeria uma educação cristã para o africano escravizado. O seu objetivo foi, ao mesmo tempo, colonizador, missionário, moral e evangélico, e sua proposta pedagógica se assemelhou, em alguns aspectos, a outras ministradas na Colônia. Contudo, deteve especificidades próprias, uma vez que foi elaborada com uma finalidade estritamente pedagógica.
O conjunto pedagógico sintetizado por Benci se ampara nos argumentos da Patrística, da Escolástica, dos clássicos greco-romanos, dos estóicos, do direito natural, do direito romano (que ele chama de Direito Imperial), do direito divino dos cânones da Igreja. Mas, seu discurso se ampara, antes de tudo, no referencial bíblico, do Gênesis ao Novo Testamento. Benci se baseou em textos que, apesar de pertencentes a blocos históricos diferentes, fazem parte de um mesmo eixo religioso, possibilitando leituras que explicam a criação do homem, o pecado original, as profecias sobre a vinda do Messias, e a recapitulação em Cristo, com certa unicidade.
Dos Provérbios, o Missionário se refere ao capítulo 31, exemplificando a atitude da Perfeita Dona de Casa, ‘mulher talentosa que vale muito mais do que pérolas’, e tomada como modelo de como se tratar os escravos coloniais. Porém, é no Eclesiástico que vão ser buscadas as premissas da sua essência pedagógica ⎯ com as quais os senhores deveriam tratar os seus escravos. Sobre o trato com o escravo o Capítulo 33 do Eclesiástico diz o seguinte:
Para o asno forragem, chicote e carga; para o servo pão correção e trabalho. 26 Faze teu escravo trabalhar e encontrarás descanso; deixa livre as suas mãos e ele procurará a liberdade. 27 Jugo e rédea dobram o pescoço, e ao escravo mau torturas e interrogatório. 28 Manda-o para o trabalho, para que não fique ocioso, porque a ociosidade ensina muitos males. 29 Emprega-o em trabalhos, como lhe convém, e, se não obedecer, prende-o ao grilhão. 30 Mas não sejas muito exigente com as pessoas e não faças nada de injusto. 31 Tens só um escravo? Que ele seja como tu mesmo, pois o adquiriste com sangue (ECCLI. 33, 25-33).
Benci diz que fundará o seu discurso nessas três palavras que compreendem todas as obrigações que devem o senhor ao servo e que não são poucas. Essa tríade, pão, pano e pau, aparentemente um dito
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tão banal será, na verdade, a quintessência pedagógica do tratado do missionário. Assim, a multiplicidade, de forma e conteúdo barrocos, desenvolvida por Benci vai estar presente em toda a obra, subordinada a essa idéia central do Eclesiástico, e se desdobra em duas vertentes pedagógicas: uma pedagogia destinada aos escravos, que deveria ser providenciada por seus senhores, na qual Benci aconselhou aos senhores, enquanto responsáveis, a ensinarem conteúdos da vida espiritual e da vida material aos escravos, para melhor cristianizá-los e adaptá-los ao cativeiro. Nesta vertente, a sua preocupação se voltou para o escravo que, como educando, deveria ser cristianizado com conteúdos doutrinários e com uma metodologia ‘adequada’ àquela situação. Em outra vertente, Benci preconizou uma pedagogia para os senhores, isto é, ensinamentos de como aqueles deveriam proceder como cristãos e, consequentemente, como educar seus escravos no cristianismo.
O texto nos mostra claramente os argumentos do Jesuíta em prol da vida material (dos bens, dos costumes, do trabalho), e os argumentos em prol da vida espiritual (da doutrina, da salvação, dos castigos divinos). No segundo Discurso (sobre a doutrina), Benci se prendeu à salvação eterna, nos outros três discursos, sua preocupação foi que os senhores soubessem como bem administrar a escravidão, sem cair em excessos que os levassem a ofender a Deus, a perder as suas almas, e, além do mais, a perder os seus escravos (CASIMIRO, 2002).
O Jesuíta foi portador de uma proposta pedagógica cujos princípios se basearam na filosofia cristã, com uma visão que enfocou muito mais os fundamentos interpretativos dos teólogos da Segunda Escolástica e muito menos os princípios evangélicos ou patrísticos. Observando seus discursos e, principalmente os ‘argumentos de autoridade’ que alicerçaram o seu pensamento, percebe-se a predominância de um conjunto de enunciados que fundamentaram ‘filosoficamente’ a proposta pedagógica reformadora pretendida por ele, na orientação para aqueles senhores no trato com os escravos. Benci escolheu, precisamente, as obras que referendavam o seu enfoque, recortando, dentre as idéias gerais de cada autor, exatamente os trechos que referendavam os seus argumentos e, quase sempre, mutilando a idéia do autor como um todo. Isso não foi uma tarefa fácil, pelo contrário, entrou em jogo todo o seu conhecimento erudito, adquirido na exigente formação educacional jesuítica, e mais, o seu talento persuasório.
Ele se dirigiu aos senhores, principais destinatários, e recomendou um verdadeiro conjunto de normas, regras e modelos, com evidentes intenções conformadoras (para os escravos) e transformadoras (para os senhores), em uma verdadeira concepção pedagógica contendo elementos que, na linguagem pedagógica atual, seriam chamados de: princípios pedagógicos, missão, pressupostos da aprendizagem, objetivos, conteúdos, métodos, técnicas e normas disciplinares. Esses princípios tiveram um objetivo colonizador, missionário e evangélico. Mas, as suas intenções foram, também, as de equacionar necessidades do seu tempo: como controlar a classe dos escravos, em número crescente? Como fazer aceitável o poder de dominação? Como punir dentro dos limites, doutrinar amplamente sem, entretanto, despertar a consciência da liberdade? Como evitar que o ódio extravasasse?
No que toca aos discursos sobre o castigo e o trabalho (de cunho notadamente social), Benci desenvolveu a sua tese recorrendo, quase exclusivamente ao Antigo Testamento, que continha argumentos mais convincentes, no sentido de reiterar a sacralidade dos poderes e autoridade dos senhores. Em relação aos outros dois discursos, ou seja, o pão do corpo e o pão da doutrina, Benci se fundamentou mais nos textos evangélicos, que argumentam sobre os deveres cristãos de proverem o corpo e o espírito. Ao reconhecer a violência física como componente essencial do domínio, Benci
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recomendou o castigo, mas ao recomendá-lo pretendeu justificá-lo teologicamente. Na medida em que justificava, possibilitava a coerência com a doutrina, que deveria ser introjetada na consciência do escravizado: O círculo se fecha no encontro de duas violências ⎯ a física e a simbólica ⎯ e no desejo de perpetuar o status quo dentro de limites: a violência contida.
A Economia Cristã configurou-se, desse modo, como uma teoria pedagógica baseada nos conhecimentos científicos e teológicos tradicionais enfocados, prevalentemente, do ponto de vista jesuítico. Sua teoria pedagógica nos apresenta objetivos religiosos com a finalidade de catequese e cristianização mediante o trinômio: crer, orar e obrar (Para a Maior Glória de Deus). Objetivos estes intimamente ligados com objetivos sociais visando advertir e preparar o senhor (educador) para tratar com o escravizado (educando), segundo princípios humanos que também eram os da moral religiosa daquele contexto e preparar o escravizado para a vida na sociedade cristã, para o trabalho, a docilidade, a obediência e o cumprimento dos deveres (CASIMIRO, 2002).
Benci mostrou ser herdeiro do processo civilizatório ocidental, resultante, principalmente, do pensamento da cultura greco-romana e judaico-cristã. Assim, para a argumentação jurídica dos seus discursos, ele se apropriou, sistematizou e correlacionou saberes diversos. Ele citou Sêneca, muitas vezes, estabelecendo um trânsito entre o pensamento estóico e o pensamento cristão. Além disso, utilizou, largamente, o conceito de 'direito natural' dos estóicos ⎯ daí a importância da utilização da argumentação de Sêneca. Das normas do 'direito natural' (moral) para as normas do 'direito positivo', ele utilizou apenas aquelas que pudessem ter coerência com o pensamento 'jus naturalista'.
Observamos em Benci um trânsito de idéias: da religião à filosofia; da filosofia ao direito natural e deste ao direito positivo. Ou, seja, da verdade revelada à verdade filosófica ou: à expressão humana da verdade revelada. Por conta das suas intenções, o jesuíta utilizou normas de direito positivo que estivessem de 'acordo' com o direito natural. Nem todas estavam. Era necessário fazer essa adequação, o que só seria possível num sistema organizado de idéias. E foi o que Benci tentou fazer. Qual a expressão 'religiosa' para o direito (norma) que regulamentava as relações entre senhores e escravos? Cumpria responder. A resposta deveria ser religiosa, mas era necessária a inserção do discurso filosófico do direito natural (tão a gosto dos estóicos) para referendar os seus discursos.
Benci escolheu conteúdos extraídos do Direito, da Moral e da Fé, contendo, para o senhor, atitudes religiosas e cristãs no trato com os escravos e, para o escravo, uma sistematização de todo um corpo doutrinário/catequético, com base nas normas do Concílio de Trento e conforme os manuais de instrução da época colonial. Alguns desses conteúdos foram desenvolvidos no melhor estilo barroco, e discorrem sobre as Virtudes, a Lei Hebraica, os Mandamentos de Deus e da Igreja, os pecados, as Obras de Misericórdia, os Sacramentos, as Orações. No texto, identificamos tais conteúdos, quer como preceitos ou atitudes recomendados para os senhores, quer como doutrina que deveria ser ensinada, ou como práticas que deveriam ser cumpridas pelos escravos.
A pedagogia para a vida cristã tinha como meta a educação do escravo e a pedagogia do adestramento se dirigiu diretamente ao patrão, que deveria aprender como adestrar o seu escravo, em uma proposta pedagógica para cristianiza-lo e prepará-lo para uma vida de servidão e obediência (educação para fazer). Uma outra proposta recomendava como o patrão deveria educar o escravo, com energia e, ao mesmo tempo, com moderação (educação para mandar fazer). A pedagogia destinada ao patrão pretendeu reformar o modelo da escravidão colonial, acabando com aquilo que era considerado como
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excessos de crueldade no tratamento dos escravos e tentando implantar o antigo modelo da escravidão clássica, na qual o senhor deveria assumir o papel do pater familias. Para os senhores, Benci recomendou o exercício do Evangelho, especialmente a caridade cristã. Para os escravos (CASIMIRO, 2002).
Nessa pedagogia, o senhor deveria ser o destinatário da educação, ou objeto a quem se destinava o discurso. Mas, ao mesmo tempo, passava a ser o sujeito que deveria exercer o papel de agente (educador) da educação do escravo (o educando). O escravo, por sua vez, aparece como o objeto passivo de uma educação que ‘prepara’ para a vida de escravidão, sem possibilidade de escolha. Quando Benci admoestava ou alertava os senhores para a responsabilidade que teriam na condução dos seus escravos, deixava claro que a transgressão daquelas normas e preceitos religiosos poderia levá-los à perdição da alma e que os pecados cometidos pelos escravos, que não fossem bem doutrinados, levariam tanto à perda da alma do escravo quanto à perda da alma do senhor, como responsável.
Benci se referiu aos pecados próprios da raça dos ‘descendentes de Cam’, que ele considerava como os piores defeitos da raça negra, e que deveriam ser extirpados, como a ociosidade, a insolência, maldade e desordens ⎯ que atentavam contra o bom encaminhamento da empresa colonial ⎯ e outros, que muito deveriam incomodar a moral daquela época, como vícios, impudicícia, libidinagem, falta de vergonha, incontinência, adultério, lascívia, prostituição, pecados de natureza inquestionavelmente sexual.
Além das categorias pedagógicas essenciais que dão corpo à obra ⎯ ou seja, o pão, a doutrina, o castigo e o trabalho ⎯ e das três categorias declaradas pelo Concílio de Trento ⎯ que são a Doutrina Cristã, o uso dos Sacramentos e o bom exemplo da vida ⎯ Benci preencheu seus quatro discursos com outro terceiro grupo de categorias, como: bons e maus exemplos da mais variada sorte, ameaças e medos de castigos materiais e espirituais. Vislumbramos essas ameaças na fala do missionário, coloridas com diversas tonalidades que vão desde as acusações, comparações, exemplos, advertências, admoestações, até chegar aos conselhos, exortações, e persuasões.
As Conclusões do livro são a chave de leitura mais importante para compreendermos a sua mentalidade e, talvez, da sua angústia de homem religioso que se viu dividido entre o compromisso com a Companhia e o seu compromisso de homem político com o Padroado Português, em detrimento do seu compromisso de cristão. Ao discorrer sobre as pensões do cativeiro e descrever como era a vida dos escravos, Benci trouxe a lume uma das mais importantes categorias, indispensáveis em qualquer concepção pedagógica de todos os tempos, o conhecimento do educando pelo educador.
Após falar aos senhores como seres racionais, passíveis de compreender os seus fortes argumentos, Benci se dirigiu a eles como cristãos, que deveriam compreender serem os escravos igualmente cristãos. Infelizmente, o argumento mais forte, o do amor cristão, bem como a idéia da ‘regra de ouro’ cristã, apenas tangenciaram o seu discurso final, perdendo a força exatamente por conta da temporalidade que não permitiu a ruptura do compromisso da Igreja com o Estado. Benci preferiu advogar o pacto de ajuda mútua, proposto por São Paulo, pelo qual, da mesma forma que os escravos deveriam servir aos seus senhores, estes também deveriam ajudar os escravos aliviando-lhes as penas do cativeiro. Destarte, Benci não conseguiu romper com o paradoxo da escravidão colonial: cristianismo e escravidão. Sua pedagogia reconheceu o sofrimento de um dos seus educandos (o
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escravo) e reconheceu o descumprimento da Lei de Cristo pelo educando/educador (o senhor). Mas, tangenciou o problema central e seguiu por outra direção, uma vez que não condenou explicitamente a escravidão, nem ordenou, em nome de Cristo, que acabassem com ela.
Padre Antônio Vieira (1608-1697)
Dentre os contemporâneos de Benci que produziram obras de vulto José Hermano Saraiva nomeia dois escritores, comumente apresentados como máximos expoentes das letras portuguesas do século XVII: o Pe. Manuel Bernardes e o Pe. Antônio Vieira. Para o autor, o Pe. Manuel Bernardes consagrou uma vida inteira a escrever, em prosa excelente, exemplos edificantes e milagres ingênuos; e o Pe. Antônio Vieira “esgotou seu talento a puxar o brilho às palavras, realizando os mais belos espetáculos verbais da língua portuguesa”. (SARAIVA, 1999, p. 219). Além de Saraiva, muitos outros autores citam Vieira como o expoente máximo da literatura portuguesa e jesuítica do século XVII.
Tal como Vieira e outros religiosos da época, Benci não chegou ao extremo de condenar explicitamente a instituição da escravidão, mas, pela natureza do seu escrito, ele denunciou as atrocidades cometidas pelos senhores. Contudo, sua intenção principal foi a de propor medidas e normas para reformar os moldes da escravidão, como ele mesmo declarou: “Tomei por assunto, e por empresa dar à luz esta obra, a que chamo ‘Economia Cristã: isto é, regra, norma, modelo, por onde se devem governar os senhores Cristãos para satisfazerem às obrigações de verdadeiros senhores” (BENCI, 1977, p.49).
Observamos nuanças comuns entre o pensamento de Benci com os escritos de Vieira e de outros autores contemporâneos — principalmente na escolha dos argumentos bíblicos, usados naquela época. Essas nuanças se deveram às fontes comuns de inspiração teológica e moral da época e do espaço colonial, e do pensamento acerca da escravidão. No presente caso, lembramos que os escritos de Vieira sobre a escravidão antecederam os escritos de Benci. É plausível que o Padre Vieira, com seu estilo retórico resultante dos arroubos e da sensibilidade da época barroca, com seu conteúdo extremamente dialético e com suas convincentes metáforas bíblicas tenha influenciado todo o sermonário colonial — tanto com relação à forma quanto ao conteúdo. Ao focalizarmos o imaginário religioso por inteiro, observamos uma matriz comum e certa coerência no pensamento religioso daquela época, que se refletem no posicionamento acerca da escravidão institucional, assim como nos comentários acerca da desumanidade no trato com os escravos.
O certo é que, em momento algum do seu livro, Benci citou Vieira. Analisamos documentos comprobatórios da rivalidade entre os dois jesuítas17, sugerindo desde divergências políticas até discordâncias originadas pela diferença de nacionalidade. Benci igualmente não citou o amigo e
17Vários pesquisadores publicaram cartas trocadas entre os jesuítas no Brasil e os seus superiores em Roma cujos assuntos eras conflitos internos à Companhia. Essas correspondências mostram claramente hostilidades individuais ou de grupos entre os jesuítas. Conferir, como exemplo, os trabalhos de Alfredo Bosi, Serafim Leite e Ronaldo Vainfas.
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compatriota Antonil, aquele que o auxiliava a azedar suas relações com Vieira. Aliás, nenhum outro coetâneo foi citado por Benci, nem mesmo o Pe. Manuel Bernardes.
O pensamento bastante complexo de Vieira variou, ao longo do século XVII, em sintonia com os encaminhamentos da escravidão colonial. Ao analisarmos, mais de perto e detalhadamente, as idéias dos citados jesuítas, podemos detectar formas diferenciadas de leitura religiosa, com pontos em comum e pontos de desencontro, quanto à aceitação da escravidão. Dentre eles, consideramos Vieira como o religioso que formulou a mais contundente denúncia contra os excessos e as crueldades da escravidão, usando, abundantemente, de todos os recursos estilístico-literários barrocos, para convencer a sociedade sobre a desumanidade da escravidão. São famosos alguns dos seus sermões pregados na Bahia, endereçados tanto aos senhores ⎯ contra os quais invectivava em função das desumanidades praticadas — quanto aos escravos, aos quais apelava para que aceitassem a escravidão. Sobre a escravização dos índios, Vieira denunciou as práticas escravistas ‘fora da lei, mas não deixou de, simultaneamente, apontar o caminho ‘correto’ para se ter escravos legais — no caso, os prisioneiros de ‘guerra justa e resgate’.
Razões de ordem econômica, religiosa e jurídica forneceram os argumentos básicos, mediante os quais todos esses religiosos se posicionaram acerca da ‘escravidão legal’, da ‘escravidão ilegal’ e dos maus tratos aos escravos, índios e negros. No que diz respeito aos índios, diferiram, abissalmente, as opiniões de Benci e de Vieira acerca da lei que regulamentou a ‘Administração dos Índios’ em São Paulo. Para Vieira, sob o nome de ‘Administração’ (da qual Benci foi consultor) se escondia, na verdade, uma escravização disfarçada.
Alguns dos sermões de Vieira, pregados no Maranhão, invectivaram corajosamente contra o abuso da escravização ilegal dos índios. Para Fragoso estes sermões, ao mesmo tempo, se empenharam em demonstrar o caminho para aquisição de escravos ‘dentro da lei’, sem o risco de manchar a consciência ou de incorrer na perdição da alma (FRAGOSO 1992, p. 167-200). É inegável, porém, que nenhuma voz bradou mais alto contra o cativeiro. No Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, pregado no ano de 1653, em São Luiz do Maranhão, Vieira clamava aos colonos:
[...] Três religiões [ordens religiosas] tendes neste estado, onde há tantos sujeitos de tantas virtudes e tantas letras: perguntai, examinai, informai-vos [não há nenhum] que diga que um homem livre possa ser cativo. Há algum de vós só com o lume natural, que o negue? [...] Vejo que me dizeis: bem estava isso, se nós tivéramos outro remédio; e com o mesmo Evangelho nos queremos defender [...] Hão de ir [trabalhar] nossas mulheres? Hão de ir nossos filhos? — Primeiramente não são estes os apertos em que vos hei de por, como logo o vereis; mas quando a necessidade e a consciência obriguem a tanto, digo que sim, e torno a dizer que sim: que vós e que vossas mulheres, que vossos filhos e que todos nós nos sustentássemos dos nossos braços; porque melhor é sustentar do suor próprio, que do sangue alheio (VIEIRA, 1940, p. 159).
Algumas vozes talvez tenham se igualado à de Vieira, mas nenhuma superou o grau de consciência exibido nos seus sermões. Nem os apelos racionais de Jorge Benci nem a visão economicista de Andreoni que via o escravo como uma ferramenta de trabalho e que deveria ser tratado como tal. Aliás, cinqüenta anos antes de Andreoni escrever que “os Escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho”, o Pe. Antônio Vieira pregava o contrário: “Direis que vossos chamados escravos são os
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vossos pés e mãos [...] Se para segurar a consciência e para salvar a alma, for necessário perder tudo, e ficar como Jó, perca-se tudo” (In: FRAGOSO, 1992. p. 167-200).
A visão de Vieira sobre o negro era até menos pejorativa do que em relação ao índio. E, diferentemente de Benci, ele não fez uma leitura bíblica condenando os negros baseando-se no episódio de Cam. Ao contrário, Vieira recuperou passagens antico-testamentárias que evidenciam a predileção de Deus pelos negros. Para Vieira, a visão do ‘etíope’ era essencialmente positiva, de forte ressonância bíblica e, segundo a leitura de Fragoso, fundamentava sua condenação à discriminação étnica contra os etíopes, como em seus comentários ao Salmo 67,32:
[...] Aethiopia praeveniet manus eius Dei (A Etiópia levantará anteriormente as mãos para Deus) [...] “Notem isso as pretas e os pretos, para que os não desconsole ou desanime a sua cor; e notem também o mesmo as brancas e os brancos, para sua confusão, se tendo a brancura por fora, forem negros por dentro”. E após citar Num. 12,10, onde a irmã de Moisés desprezara a esposa deste, por ser etíope, Deus a puniu com uma lepra ‘branca’ (FRAGOSO, 1990, p. 296).
Enquanto Benci reproduziu inúmeros preconceitos contra os negros, Vieira chega a afirmar que Deus puniu os portugueses por terem escravizado os povos africanos, lembrando que foi no norte da África, onde os portugueses começaram a escravizar os negros, que se deu a morte do Rei D. Sebastião. No Sermão Décimo Quarto da série ‘Maria Rosa Mística’, pregado a uma Irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos, no Recôncavo baiano Vieira, desdobrou o tema do nascimento de Cristo, no Calvário, relacionando-o ao nascimento dos negros, como filhos da Mãe do mesmo Deus dos brancos, dizendo: E se me perguntarem os curiosos quando alcançaram os pretos esta dignidade de filhos da Mãe de Deus, respondo que no Monte Calvário, e ao pé da cruz, no mesmo dia e no mesmo lugar em que o mesmo Cristo, enquanto Jesus, e enquanto Salvador, nasceu com o segundo nascimento da Virgem Maria” (VIEIRA, 1940, p. 48).
Mas, mesmo Vieira, diante do fato da aprovação jurídica da escravidão negra, também a explicou como uma ‘providência divina’, em vista de um bem maior: a cristianização. No mesmo discurso do Recôncavo, aconselhou os negros a “dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazido a esta, onde instruídos na fé, vivais como cristãos e vos salveis” (VIEIRA, 1940, p. 50). No episódio palmarino, surpreendentemente, as opiniões dos dois jesuítas se invertem, e foi Jorge Benci quem aconselhou a instalação de um projeto missionário em Palmares, ao contrário de Vieira, que, já idoso, apreendeu como pecado a desobediência dos negros rebelados e aconselhou ao Superior o retorno dos escravos fugidos ao cativeiro.
Nos quatro grandes sermões proferidos no Recôncavo baiano, Vieira pintou com cores fortes o doloroso quadro de brutalidade, a que eram submetidos os escravos coloniais. Pela elegância persuasiva do seu estilo inconfundível, estes discursos compõem uma das mais belas páginas da literatura portuguesa. No sermão pregado na festa da Irmandade de N. S do Rosário, em 1633, Vieira, recém-ordenado, denunciou o contraste chocante entre a vida dos senhores e a dos seus escravos negros: “Devendo-vos tratar como irmãos, se chamam vossos senhores. Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam os frutos dos vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre o outro” (VIEIRA, 1940, p. 41).
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Notamos que Vieira se dirigiu diretamente aos escravos, enquanto que Benci preferiu se dirigir aos senhores. Entretanto, posteriormente, estes discursos foram substituídos por outros mais conservadores18, como aconteceu quando ele opinou sobre o desfecho de Palmares. Num outro sermão, o conteúdo da sua obra denunciou igualmente a triste situação dos escravos negros na Bahia:
Oh mercadoria diabólica em que os interesses se tiram das almas alheias [...] Os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores os tratando como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé apontando para o açoite, como estátuas de soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão e espetáculos de extrema miséria (VIEIRA, 1940, p. 48).
Apesar da riqueza estética e argumentativa dos sermões de Vieira, apesar do seu clamor, bem mais alto do que o de Benci contra a crueldade da escravidão, não há, na sua obra, uma finalidade diretamente pedagógica. A obra de Benci sim, encerra um sentido pedagógico como razão fundamental. Claro que os sermões de Vieira também estavam carregados de conteúdos pedagógicos cristãos, mas, em Benci, a mensagem pedagógica é a raiz principal. Não cabe, neste trabalho, estabelecer o grau de consciência que logrou atingir Vieira a respeito da escravidão colonial19. Fica claro, entretanto, que, entre Benci e Vieira, a despeito das diferenças individuais de estilo, os discursos apontam para uma mesma conclusão fundamental: a explicitação da mensagem evangélica não foi suficiente para declarar a escravidão incompatível com a natureza humana. Segundo Fragoso, a denúncia contra os excessos de crueldade nos sermões proferidos jamais avançou a ponto de diagnosticar tais excessos como decorrentes da desumanidade da própria escravidão:
[...] Embora normalmente, os religiosos dessem um melhor tratamento aos seus escravos, que o comum dos patrões, no entanto, é de se perguntar o que é ‘tratamento cruel’ na escravidão? A própria escravidão não é em si uma crueldade? E o que chama a atenção neste ‘Evangelho’ da misericórdia é que na doutrina cristã que os religiosos ministravam aos seus escravos, uma das ‘obras de misericórdia’ era REMIR OS CATIVOS. É difícil encontrar-se uma lógica entre a exigência dessa ‘obra de misericórdia’ e a prática escravista dos religiosos (FRAGOSO, 1990, p. 296).
Padre Manuel Bernardes (1644-1710)
Manuel Bandeira diz que Bernardes foi, em tudo, diferente de Vieira, por seu estilo de simplicidade e doçura, que evidencia a sua própria vida sossegada de frade oratoriano (1942, p. 40). Na Biblioteca Lusitana, Diogo Barbosa Machado dá notícias da sua vida e da sua obra. Sabe-se, assim, que Manuel Bernardes nasceu, estudou e viveu em Portugal. Era muito humilde, e sua obra só foi escrita por
18Sobre a postura de Vieira, a tese de Ronaldo Vainfas Ideologia e Escravidão demonstra como, a partir de meados do século XVII, os letrados coloniais, tendo à frente os jesuítas, passaram a problematizar a escravidão e a propor medidas que a tornassem mais rentável, mais disciplinada e mais duradoura.
19A Dialética da Colonização de Alfredo Bosi analisa a obra literária e a consciência de Vieira.
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insistência dos seus superiores. Bernardes compôs várias obras espirituais e místicas, das quais a mais conhecida é A Nova Floresta ou Sylva de Vários Apopthegmas20, obra de reflexões morais, que, apesar de estilo, intenção e destinatários diferentes, traz algumas nuanças em comum com a Economia Cristã, principalmente por guardar fundamentação nos mesmos trechos bíblicos. As semelhanças que se verifica entre estas obras se devem a uma matriz teológica comum, na qual se alimentava o pensamento teológico e moral da época. Assim, palavras textuais do Pe. Manuel Bernardes, cuja forma e conteúdo são muito parecidos às encontradas em Benci, também ensina a doutrina, a repreensão e o castigo, o comer e o vestir, como deveres do senhor para com os escravos:
[...] Quanto ao outro cargo, que era tratar os domésticos com mesquinhez, e miseria: tambem contra este vicio temos doutrina nas divinas, e humanas letras. S. Paulo diz, que se alguem não tem especial cuidado da sua familia, he peyor que o infiel. Onde por aquella palavra Cuidado não se entende só o de lhe dar doutrina, reprehensão, e castigo quando he merecido: senão tambem o comer, e vestir, confórme for necessário [grifo nosso]. Em outro lugar, havendo amoestado aos escravos, e criados, que amem, obedeção, e sirvão aos senhores: amoesta igualmente a estes, que usem com elles dos mesmos bons termos respectivamente (BERNARDES, 1945, Tomo II, v.II, p. 206-208).
Para os senhores portugueses, Bernardes exemplifica, assim como Benci, tomando como modelo a ‘Mulher Forte’ do Livro dos Provérbios (31,13):
[...] E Salomão descrevendo huma boa mãy de familias, põem entre outros seus louvores, o levantarse de noite a tratar do provimento de suas criadas e de todos seus domesticos [...] e o não padecerem elles o rigor do frio, porque todos desde o mayor atè o infimo tem vestidos dobrados [...] e atè o deixar de noite luz acesa [...] Quando o servo he sizudo, e bem procedido, não se contenta o Ecclesiastico, com que seu senhor o trate bem; senão, que o remunere, e o não deixe pobre por sua morte [...] (BERNARDES, 1945, Tomo II, v. II, p. 206-208).
Como Benci, o Frade Oratoriano também utilizou um comentário de S. Bernardo aos Provérbios, no qual o Rei Salomão considera o trato que certos senhores dão aos seus animais mais humano do que o tratamento dispensado aos servos:
S. Bernardo [...] estende a obrigação deste cuidado atè aos brutos animaes [...] Que dissera logo dos criados, e servos? Se bem que alguns senhores, e amos há, que pertencendo tambem ao numero de brutos, não vão para com elles este argumento. Porque tratando bem os seus cães, e cavallos, e passaros, se esquecem dos seus servos, e criados; antes os praguejão, amaldiçoão, e espancão se faltàrão no serviço daquelles. Já houve pessoa que deixou no seu testamento hum legado à sua gata de quinhentos escudos de ouro, para que lhe dessem sempre de comer em abundancia (BERNARDES, 1945, Tomo II, v. II p. 206-208).
20Livro de reflexões morais, do século XVIII, do Padre Manoel Bernardes da Congregação do Oratório de Lisboa (1644-1710). Cf. na Bibliografia.
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Igualmente, no terreno das virtudes e na prudência no trato com os escravos, o pensamento de Manuel Bernardes era consoante ao do Jesuíta. Da mesma forma, inspirado na filosofia estóica, aconselhou um trato humanitário com os cativos21 e criticou um amo mesquinho que taxava multas pecuniárias à sua ama, por descuidos que tivera em sua casa. Dessa sabedoria humanitária que ensina a tratar bem os escravos e tê-los como amigos, diz o Pe. Manuel Bernardes que os bons servos só mostram amor quando bem tratados e que
[...] Ao seu credito, não porque pela fome, e desluzimento dos domesticos, se conhece claramente a miseria do amo: e elles são os primeiros que a murmurão e publicão. A sua fazenda, tambem, não; porque tudo o que elle forra por uma parte, lhe furtão pela outra: e os fragmentos que o Senhor no Evangelho mandou recolher, são os que sobrarão da esmola, depois de bem abafadas as turbas; e não o que se cizão, e defraudão do necessário, que estes danificão o outro pão a que se ajuntão. E ainda sem ser por via de salario devido, senão a titulo de esmola, bem empregada esta nos criados, que sem duvida o não serrão seus, se a necessidade os não obrigasse a servir (BERNARDES, 1945, Tomo I, v.I, p.440-445).
As semelhanças entre os discursos dos dois autores, Benci e Bernardes (e outros congêneres), revelam preferência comum por algumas passagens da Sagrada Escritura. Eram, sem dúvida, aquelas passagens as mais lidas e discutidas pelos teólogos e consideradas as mais adequadas para veicular a moral cristã. Além de serem as mais passíveis de serem assimiladas pelas consciências daquele tempo.
Padre João Antônio Andreoni S.J. (Antonil) (1649-1716)
O livro Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, do Jesuíta João Antônio Andreoni22, foi publicado em 1711. Apesar de algumas das opiniões nele expressas coincidirem com aquelas defendidas por Jorge Benci ⎯ notadamente no que diz respeito ao tratamento ideal a ser prescrito aos escravos pelos senhores ⎯ não podemos afirmar que o autor da Economia Cristã tenha influenciado o texto de Andreoni. O que se pode inferir é que, pelo fato de terem sido ambos jesuítas, italianos, contemporâneos na Bahia colonial, e, segundo consta, comungantes do mesmo grupo jesuíta ‘colonial’, do qual Vieira era antagônico, se viram estes autores expostos a influências comuns e recíprocas, que resultaram num mesmo olhar sobre o tratamento dado pelos senhores aos seus escravos.
Se, da obra de Benci, podemos dizer que a essência é reformadora e pedagógica, da obra de Andreoni, podemos dizer, com certeza, que o seu propósito é outro, como muitos autores já disseram, sobre a primeira frase do Capítulo IX do Livro Primeiro de Cultura e Opulência do Brasil, que sintetiza o entendimento de Andreoni sobre a serventia, que tinham para o senhor, os escravos: “Os Escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente” (ANTONIL, 1982, p.89).
21Ao tempo de Bernardes, ‘o trato humanitário’ já era um patrimônio tradicional dos iluministas, filósofos e teólogos cristãos.
22Na presente análise, utilizamos a publicação: Cultura e Opulência do Brasil/André João Antonil (João Antônio Andreoni, S.J.): texto confrontado com a edição de 1711; com um estudo biobibliográfico por Affonso de E. Taunay. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP. Existem outras publicações além da edição original.
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Logo após ter sido publicado, o livro de Andreoni foi considerado perigoso e, por isso, tirado de circulação. Destino idêntico atingiria, algumas décadas depois, a obra de Ribeiro Rocha, livro de 1756, que propõe uma extinção paulatina da escravidão. Mas, diferentemente deste último caso, o perigo identificado no texto de Andreoni não residia na apresentação de sugestões para a libertação dos escravos, mas na revelação, com detalhes, das riquezas do Brasil.
Cultura e Opulência está dividido em quatro partes assim intituladas: Primeira Parte – Cultura e Opulência do Brasil na lavra do açúcar – Engenho Real corrente e moente; Segunda Parte – Cultura e Opulência do Brasil na lavra do tabaco; Terceira Parte: Cultura e Opulência do Brasil pelas Minas de ouro; Quarta Parte: Cultura e Opulência do Brasil pela abundância do gado e courame e outros contratos reais que se rematam nesta conquista; A Conclusão faz parte da quarta parte, com um ‘resumo’ de tudo o que ia ordinariamente, a cada ano, do Brasil para Portugal e do seu valor e do quanto é justo que se favoreça o Brasil, por ser de tanta utilidade ao reino de Portugal.
No seu livro, Andreoni se ocupou, em poucas laudas, com o assunto ao qual Benci dedicou quatro discursos. Partindo das mesmas categorias do Eclesiástico, mencionadas onze anos antes por Benci, Andreoni ⎯ revelando o enraizamento dessas categorias nos costumes coloniais ⎯ afirmou que “no Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber, pau, pão e pano [grifo nosso]. E, posto que comecem mal, principiando pelo castigo que é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada, ou levantada; e com instrumento de muito rigor” (ANTONIL, 1982, p.91).
Para ele, os escravos não são considerados ‘próximos’, como Benci concluiu e sim, instrumentos de trabalho, pois, “é necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas”. (1982, p. 89). Mais do que a preocupação doutrinária sentimos, em toda a entonação do discurso de Andreoni, a preocupação com o bom uso da ‘mão-de-obra escrava’, em proveito da economia senhorial. Ele não acreditou, que todos os escravos negros tivessem capacidade para o aprendizado, afirmando, no texto, que “Uns chegam ao Brasil muito rudes e muito fechados e assim continuam por toda a vida”. Mas outros que seriam capazes de aprender, no dizer de Andreoni, “em poucos anos saem ladinos e espertos, assim para aprenderem a doutrina cristã, como para buscarem modo de passar a vida” e para aprenderem os vários ofícios a que eram destinados.
De forma bem mais rápida, mas com os mesmos argumentos de Benci, discorreu sobre as atitudes dos senhores com relação à doutrina, a administração dos sacramentos; sobre o sustento; sobre as roupas e a moderação no trabalho e no castigo; sobre o cuidado na doença e, até mesmo, sobre o hábito de permitir uma colheita própria (que normalmente era restrita aos dias santos e domingos). Curiosamente, confirmando a tradicional tolerância jesuítica para com os hábitos culturais dos povos colonizados, Andreoni introduziu mais uma categoria, que não havia sido prevista por Benci, em seu quadro analítico das relações escravocratas: a do lazer (folguedos) para as horas de descanso, que deveriam ser concedidas ‘sem excessos’:
[...] Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los ver desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e do orago da capela do engenho [...] O que se há de evitar nos engenhos é o
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emborracharem-se com garapa azeda, ou água ardente, bastando-lhe conceder-lhes a garapa doce... (ANTONIL, 1982, p. 92).
Observamos então, que, não obstante terem sido amigos e companheiros na caminhada colonial, Andreoni exibiu um discurso peculiar, distinto do objetivo missionário de Jorge Benci. Enquanto o autor da Economia Cristã propôs, realmente, uma reforma nos moldes da escravidão colonial, o autor de Cultura e Opulência analisou o problema da escravidão, por outro ângulo. Benci falou como missionário que, a despeito de não propor a libertação, preocupou-se realmente com a evangelização e com um tratamento mais humanitário para os escravos. O outro falou como um empresário, para quem a empresa colonial precisava dar certo. Se bem que o núcleo da obra Cultura e Opulência sejam as explícitas preocupações do autor, com sucesso da empresa colonial, ele, com regras semelhantes às de Benci, também descreveu, em quatro categorias pedagógicas, como ficou evidente, qual o tipo de tratamento que os senhores deveriam aplicar aos seus escravos. Podemos falar em influência recíproca de idéias, mas não podemos afirmar que Benci tenha influenciado a obra de Andreoni.
Considerando sobre o mundo mental de Jorge Benci, João Antonio Andreoni, Antônio Vieira e Manuel Bernardes ⎯ três jesuítas e um oratoriano ⎯ contemporâneos e acostumados com as práticas escravocratas do reino português, observamos que os seus textos, respeitadas as diferenças mencionadas, evidenciam contradições ideológicas e religiosas próprias da mentalidade daquele tempo. Se, nos seus escritos, apresentaram um discurso clássico e religioso antico-testamentário, no qual falaram da servidão como uma realidade aceitável, todos, porém, denunciaram a prática vigente, evidenciando a crueldade cotidiana da escravidão colonial como um modelo inaceitável, face ao discurso neo-testamentário e cristão.
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707)
A Economia Cristã influenciou sobremaneira na elaboração das já referidas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707, pelo Arcebispo de então, D. Sebastião Monteiro da Vide23, e que regeram toda a vida religiosa colonial e Imperial, por uns dois séculos, e foram as diretrizes jurídicas ideológicas, religiosas e pedagógicas para confirmar e legitimar todo um sistema de poder imposto pelo Estado Absolutista e pela Igreja conivente, visando à ampliação e à perpetuação do quadro social.
23Até à promulgação das Constituições Primeiras, em 1707, o Arcebispado Baiano se valia das constituições portuguesas. Depois da promulgação, até o Regime Imperial, as constituições foram as mesmas, pois só havia um arcebispado metropolitano no Brasil. Posteriormente é que vão ser elaboradas novas Constituições, ou nova legislação eclesiástica, no Concílio Latino-Americano em 1899/1900.
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Composto de cinco livros24, elaborado em reuniões sinodais, com a assessoria de peritos e sob a presidência de D. Sebastião Monteiro da Vide, As Constituições baianas se inspiram nas disposições do Concílio de Trento e nas Constituições de Évora e Lisboa. Como a maioria das publicações de caráter moral e religioso da época, se baseia na Tradição Cristã, nos livros da Sagrada Escritura, no Direito Canônico e na Patrística. Conforme os decretos do Concílio de Trento, religiosos de várias ordens foram nomeados como Examinadores Sinodais. Dos dezenove examinadores nomeados, seis eram jesuítas, dois eram beneditinos, dois eram carmelitas, dois franciscanos, um agostiniano e um era carmelita descalço. Os cinco restantes eram padres seculares de altas dignidades eclesiásticas. (VIDE, 1953, p. 521).
O nome de Benci figura lado a lado com as maiores autoridades da Segunda Escolástica, nas notas de pé de página das Constituições. Monteiro da Vide e seus assessores, a maioria dos quais era jesuíta, fizeram largo uso da obra de Benci (precisamente em 40 capítulos), nos aspectos que dizem respeito à doutrina e ao trato dos escravos coloniais. É provável que tenham se conhecido na Bahia, uma vez que o Bispo aqui chegou em 1702 e presume-se que Benci tenha retornado para Portugal três anos depois, em 1705.
A idéia de constituições religiosas específicas para o Brasil colonial surgiu no momento em que as constituições similares portuguesas já não atendiam às particularidades coloniais referentes ao tecido social, uma vez que, a diferença maior entre a sociedade portuguesa e a sociedade brasileira, naquele momento, era exatamente a existência da mão de obra escrava em larga escala e a necessidade de regulá-la religiosa e socialmente. Daí, a enorme importância da obra de Benci na elaboração das constituições brasileiras, na recomendação das diversas atitudes que deveriam tomar os senhores e os párocos no que se refere à educação religiosa dos escravos.
O pensamento de Benci se fez presente nas Constituições Primeiras, exatamente quando a Igreja pensou em normatizar as relações e as obrigações religiosas dos senhores coloniais no trato com os escravos, dando-lhes um caráter de lei que deveria, a qualquer custo, ser cumprida: Os objetivos das Constituições, são muito claros e perpassam todo o espírito daquela legislação, como observamos ao analisar, aleatoriamente, qualquer trecho da sua expressão verbal, que 'manda e ordena', pune e justifica a necessidade de obediência, pela doutrina.
Sabemos, portanto, que o Sínodo baiano promulgou o conjunto de leis, entretanto, as normas sobre a questão específica da educação dos escravos negros foi, declaradamente, extraídas da obra de Benci. Observamos, desse modo, o desenrolar de uma idéia que era apregoada desde o século XVII, por Vieira e outros religiosos, de que se deveriam minorar as crueldades com os escravos. As mesmas idéias dos sermões pedagógicos orais
24As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, formam um composto de 5 livros que dispõem sobre toda a vida colonial. O Livro Primeiro trata da fé católica, da doutrina, da denúncia dos hereges, da adoração, do culto, dos sacramentos; O Livro Segundo trata dos ritos, da missa, da esmola, da guarda dos domingos e dias santos, do jejum, das proibições canônicas, dos dízimos, primícias e oblações; O Livro Terceiro fala sobre as atitudes e o comportamento do clero, das indumentárias clericais, das procissões, do cumprimento dos ofícios divinos, da pregação, do provimento das igrejas, dos livros de registros das paróquias, dos funcionários eclesiásticos, dos mosteiros e igrejas dos conventos; O Livro Quarto fala das imunidades eclesiásticas, da preservação do patrimônio da Igreja, das isenções, privilégios e punições dos clérigos, do poder eclesiástico, dos ornamentos e bens móveis das igrejas, da reverência devida e da profanação de lugares sagrados, da imunidade aos acoutados, dos testamentos e legados dos clérigos, dos enterros e das sepulturas, dos ofícios pelos defuntos; o Livro Quinto trata sobre as transgressões (heresias, blasfêmias, feitiçarias, sacrilégio, perjúrio, usura, etc.), das acusações e das respectivas penas (excomunhão, suspensões, prisão etc.).
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foram transformadas em palavras escritas, no texto de Benci, e, mais tarde, transformadas em direito eclesiástico constitucional, pelo sínodo presidido por Monteiro da Vide. Perduraram pela Colônia e Império, até serem reformadas pelo Concílio Plenário Latino Americano (1899-1900).
Foi mais precisamente nos dois primeiros Discursos da Economia Cristã, que os peritos do sínodo buscaram as razões pelas quais os senhores coloniais e os párocos deveriam catequizar os escravos. É possível evidenciarmos exatamente ‘onde’, ‘quando’ e ‘em que’ as Constituições se ampararam nos argumentos bencianos. Como, por exemplo, no Título II, n.º 4, do Livro Primeiro das Constituições que diz “Como são Obrigados os Pais, Mestres, Amos e Senhores a Ensinar, ou Fazer Ensinar a Doutrina Christã aos Filhos, Discipulos, Criados e Escravos”. Esse livro, dispondo das questões doutrinárias e da administração dos sacramentos, fala da obrigação que têm os pais, mestres, amos e senhores de ensinar ou fazer ensinar a doutrina à sua família e, “especialmente a seus escravos”, ordenando, nos seguintes termos:
4 Mandamos a todas as pessoas, assim Eclesiásticas, como seculares, ensinem ou fação ensinar a Doutrina Christã á sua família, especialmente a seus escravos que são os mais necessitados desta instrução pela sua rudeza, mandado-os à Igreja, para que o Parocho lhes ensine os Artigos da Fé, para saberem bem crer; o Padre Nosso, e Ave Maria, para saberem bem pedir; os Mandamentos, para saberem bem obrar; as virtudes, para que as sigão; e os sete sacramentos, para que dignamente os recebão, e com elles a graça que dão, e as mais orações da Doutrina Christã, para que sejão instruídos em tudo o que importa a sua salvação (VIDE, 1853, Liv. I, Título II, n.º 4).
Acrescenta o artigo que os mestres de meninos e as mestras de meninas não faltem a essa obrigação do ensino da doutrina, sob pena de admoestação e de punição. Sintomaticamente, o artigo é omisso quando se trata de admoestar e punir os senhores de escravos que não cumprissem essas normas. Correspondendo a esse trecho, as Constituições citam os parágrafos 1, e 2, do Discurso II da Economia Cristã, onde, a essência do argumento de Benci está expressa em duas idéias: a de que a obrigação do ensino e da doutrina se funda nas próprias palavras de Cristo: “ide pois e doutrinai a todas as gentes”; e a idéia de que peca mortalmente o senhor que não ensina ou faz ensinar a doutrina aos servos.
O Título III, n.º 7 e 8, do Livro Primeiro que trata “Da Especial Obrigação dos Parochos Para Ensinarem a Doutrina Christã a seus Fregueses” (p. 4), se baseia exatamente no Discurso II da Economia Cristã, que faz uma digressão aos párocos, os quais são obrigados a ensinar a doutrina, caso os senhores não o façam. Ademais,
7 ordenam aos Pais, que mandem aos lugares, e horas determinadas seus filhos; e aos Senhores seus escravos; e se algumas das sobreditas pessoas, esquecidas da obrigação Christã, a não forem ouvir, e não mandarem as pessoas, que estão a seu cargo, para a ouvirem, sejão certos, que se fazem reos de quantos peccados, se commeterem por falta de Doutrina, de que Deos nosso Senhor lhes fará rigoroso juizo e aos padres capellães encommendamos, que nas suas Capellas façàm a mesma diligência, principalmente com os escravos (VIDE, 1853, Liv. I, Título III, n.º 7 e 8).
As letras das Constituições citam, então, o Discurso II da Economia Cristã, deixando claro e reafirmando que incorrem em pecado aqueles que se omitirem de ensinar a doutrina, principalmente aos escravos e destacam o fato de que são os escravos os mais necessitados da Doutrina para os
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mestres de meninos e meninas, admoestação e punição (pena temporal) e para os senhores de escravos a advertência do pecado (penalidade espiritual).
O Título XIV, n.º 54, do Livro Primeiro diz “Do Baptismo dos Adultos, e Disposição que Devem Ter, Para se Lhes Haver de Conferir” (p.21). No caso dos escravos, a ordem era a de que não se deveria administrar o Batismo sem o devido preparo, isto é, sem que fossem instruídos na fé, que soubessem, ao menos, o Credo, os Artigos da Fé, o Padre Nosso, a Ave Maria, os Mandamentos de Deus e da Igreja, as orações e o arrependimento dos pecados passados. Entretanto, essas condições mínimas de aprendizagem seriam facilitadas caso estivessem os batizandos em perigo de morte, podendo, neste caso, serem batizados até por leigos, inclusive com a mediação de intérpretes, caso o batizando ainda não falasse a língua dos cristãos.
Os peritos sinodais recorreram novamente ao texto benciano, ao citar o Discurso II da Economia, no seu parágrafo 1, e 2 onde Benci defende a tese de que os servos eram criaturas racionais que necessitavam, tanto do alimento corporal quanto do alimento espiritual. No texto está escrito que os senhores não deveriam se desculpar da obrigação de ensinar “os mistérios da Fé e os Mandamentos da Lei de Deus [considerando-se] como ministros deputados por Cristo para a propagação do seu Evangelho” e, no caso de se verem impedidos, deveriam mandar os escravos aos padres: “69 Quando não possais ou não queirais [doutrinar os escravos]: porque os não trazeis aos Colégios e casas da Companhia, e aos mais Conventos das outras famílias Religiosas, onde há operários, que têm à sua conta ensinar os escravos no seu mesmo idioma” (BENCI, 1977, p. 89). O mesmo Título XIV, n.º 55, do Livro Primeiro das Constituições sobre o batismo de adultos diz, na página 22:
55 [...] muitos escravos, que há neste Arcebispado, são muitos delles tão buçaes, e rudes, que, pondo seus senhores a diligencia possivel em os ensinar, cada vez parece que sabem menos, compadecendo-nos de sua rusticidade, e miseria, damos licença aos Vigarios, e Curas, para que constando-lhes a diligencia dos senhores em os ensinar, e rudeza dos escravos em aprender, de maneira que se entenda, que ainda que os ensinem mais, não poderão aprender, lhes possão administrar os Sacramentos do Baptismo, Penitência, Extremunção, e Matrimonio, catequizando-os primeiro nos mysterios da Fé, nas disposições necessárias para os receber. (VIDE, 1853, Liv. I, Título XIV, n.º 55).
Ao compararmos os dois discursos percebemos, claramente, a coincidência dos seus conteúdos. Coincidência, aliás, declarada nas notas do texto das Constituições. No presente exemplo, o texto benciano diz o seguinte:
65. Nem se desculpam bem os senhores, que se escusam deste santo ministério. Não dando por causa a rudeza dos escravos, e dizendo que são brutos, que são boçais, e que são incapazes de perceber o que nos ensina e manda crer a Fé se desculpam bem, torno a dizer; porque a esses mesmos brutos e boçais, e (ao que vos parece) incapazes, quer Deus que se ensine e pregue a sua doutrina [...] Há alarves em Guiné tão rudes e boçais, que só o vosso poder lhes poderá meter o Padre Nosso na cabeça. Há Minas tão brutos e incapazes, que mil vezes nos havemos de benzer deles, primeiro que eles aprendam a benzer-se (BENCI, 1977, p.86).
Declaradamente, os redatores das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia utilizaram e veicularam, mediante a letra da lei, os pré/conceitos registrados no livro de Benci, poucos anos antes.
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Esses pré/conceitos, entretanto, já vigoravam, naquela sociedade, desde a instituição da escravidão colonial. As Constituições apresentam o negro como um ‘boçal’, um ‘rude’, uma pessoa incapaz de assimilar a educação dos colonizadores e queixam-se de que, por mais que se ensinassem aos negros, os conteúdos não entravam em suas cabeças. Os peritos recomendam a paciência dos senhores e dos Vigários e Curas no ensinar e no perscrutar se houve alguma aprendizagem que os capacitasse a bem receber os Sacramentos. Para isso, tomam, como texto básico, a pedagogia benciana que recomenda ‘tempo’ para se alcançar a aprendizagem:
71 [...] Porventura para isso não se requer tempo? Tempo, para se desbastar o mais grosso de seus erros e superstições à força de grandes marteladas. Tempo, para lhe abrir com o cinzel da doutrina os ouvidos, para que penetre a palavra de Deus; os olhos, para que conheça os mistérios da Fé; a boca, para que saiba orar [...] Tempo para lhe dividir os dez Mandamentos da Lei de Deus, e para o mais, que concorre a formar um verdadeiro cristão. Pois se para tudo isto se requer tempo: vede se é possível formar um Cristão em poucas horas! (BENCI, 1977, p. 90).
78 O pão da Doutrina Cristã deve-o repartir o Pároco a estes ignorantes tão bem partido e esmiuçado, que o possam comer e digerir. Porém a isto faltam ordinàriamente os Párocos, como o lamenta Jeremias. Os pequenos pediram pão, e não houve quem lho partisse, para que o pudessem comer [...] Porque não faltam Párocos, que dão o pão da Doutrina Cristã aos Pretos; mas que monta, se este pão não vai partido de sorte que possa servir de alimento ao escravo? [...] Que importa que o Pároco ensine aos escravos as Orações, os mistérios da Fé, e os preceitos da Lei de Deus, se os não propõem com palavras acomodadas à rudeza e pouca capacidade de Negros boçais? (BENCI, 1977, p. 95).
Essa dosagem pedagógica dos conteúdos doutrinários, proposta por Benci aos senhores coloniais, ganhou eco e força de lei, conforme observamos no parágrafo 56 do documento arquiepiscopal, que adverte:
56 Os Vigários, e Curas, que desta licença não tomem occasião para administrarem os Sacramentos aos escravos com facilidade, pois se lhes não dá, senão quando constar, que precedeo muita diligencia da parte dos senhores, e pela grande rudeza dos escravos não bastou, nem bastará provavelmente a que ao diante fizerem, antes procedão com attenção examinando-os primeiro, e ensinando-os, a ver se podem aproveitar, porque não tem motivo aos senhores a se descuidarem da obrigação, que tem de ensinar a seus escravos, a qual cumprem tão mal, que raramente se acha algum, que ponha a deligencia que deve: errando tambem no modo de ensinar, porque não ensinão a Doutrina por partes, e com vagar, como é necessario a gente rude, senão por junto, e com muita pressa. (VIDE, 1853, Liv. I, Título XIV, n.º 56).
No Livro Segundo das Constituições, que diz: “Das Obras que São Proibidas nos Dias de Guarda, e das Penas que Haverão os que as Fizerem” (VIDE, 1853, Liv. II, Título XIII, n.º 379), observamos a preocupação do texto sinodal em proibir o abuso do trabalho escravo. As Constituições também citam o Discurso I de Benci, no parágrafo 1, que fala do sustento que devem os senhores aos servos. Para Benci, dar o sustento não se fundamenta somente em alguma lei positiva, todavia, também, na lei natural. Entretanto, é no parágrafo 1 do Discurso 1 que Benci menciona o costume de alguns senhores que, achando dificuldade em dar o sustento aos escravos, lhes dão em cada semana um dia em que possam plantar e fazer seus mantimentos. Sobre aqueles que só lhes dão o domingo e os dias santos, sem lhes dar o sustento:
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21 E haverá algum Cristão, que não saiba que Deus manda santificar as festas e guardar os dias santos; e que é pecado mortal, fora do necessário e preciso, mandar que se trabalhe nestes dias? Logo, se por faltar com o sustento aos escravos, os obrigais a procurá-los nos domingos e dias santos: não vedes que pecais gravemente, contra o terceiro Mandamento da Lei de Deus? (BENCI, 1977, p. 58).
O Livro Terceiro no seu Título XXXII que fala da “Obrigação que os Parochos tem de Fazer Praticas Espirituaes E Ensinar a Doutrina Christã aos seus Fregueses” (p.212), estabelece as normas doutrinárias para orientação dos catequistas e missionários. Os números 577 e 578, deste título se referenciam no Discurso II, parágrafo 2 e no parágrafo 1, da Economia Cristã. O texto sinodal fala da necessidade da doutrina cristã para os escravos:
577 Porque sendo os escravos de nosso Arcebispado, e de todo o Brasil os mais necessitados da Doutrina Christã, sendo tantas as Nações e diversidades de lingoas, que passão do gentilismo a este estado, devemos buscar-lhes por todos os meios para serem instruidos na Fé, ou por quem lhes falle no seu idioma (VIDE, 1853, Liv. III, Título XXXII, n.º 577).
O n.º 578 do mesmo Título, que trata da instrução dos escravos, com evidente e declarada inspiração no texto da Economia Cristã (Discurso II, parágrafo 1 e 2,), ordena que
578 [...] serão obrigados os Parochos a mandar fazer copias de uma breve fórmula de Cathecismo, que aqui lhes communicamos, para se repartirem pelas casas de seus freguezes em ordem a elles instruirem os seus escravos nos mystérios da Fé, e Doutrina Christã pela fórma da dita instrução. E as suas perguntas, e respostas serão examinadas para elles se confessarem, e commungarem christamente, e com mais facilidade, do que estudando de memória o Credo, e outras lições, que só servem para os de maior capacidade. E pode ser, que ainda os Parochos sejão melhor instruidos nos Mysterios da Fé por este breve compendio. Este pois seja o desvelo todo dos Parochos (VIDE,1853, Liv. III, Título XXXII, n.º 577).
Ademais, fornece, a partir do n.º 579, um modelo doutrinário completo intitulado Breve Instrucção dos Mysterios da Fé, Accomodada ao Modo de Fallar dos Escravos do Brasil, Para Serem Cathequisados Por Ella (p. 219), contendo, passo a passo, os conteúdos doutrinários em vigor pelas disposições tridentinas e facilitados de acordo com a ‘capacidade’ de compreensão dos escravos, considerados ‘rudes e boçais’.
Destarte, as normas das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que ‘mandam e ordenam’ os pais e os párocos a ‘ensinarem’ aos seus escravos; indicavam como batizar os escravos adultos; exigiam que se deixassem livres os escravos nos domingos e festas de guarda e obrigavam os párocos a ‘fazer práticas espirituais e ensinar a doutrina christã aos seus fregueses’ — vão ser buscadas nas páginas da Economia Cristã, escritas alguns anos antes, em 1700. Foi no ‘pão da doutrina’, aconselhado por Benci, e na “Digressão exortatória aos Párocos’, para que ensinassem aos escravos aquilo que alguns senhores não podiam ou não queriam ensinar que o Sínodo se inspirou. Foi evocando o espírito etnocêntrico de Benci (o qual reputava os escravos como raça infecta, de rudes e boçais), que os peritos recomendaram a maior diligência possível nos ensinamentos para que os escravos pudessem aprender o catecismo e receber condignamente os sacramentos. Foi na ‘primeira obrigação que devem os senhores aos servos’, isto é, dar o sustento e a roupa, que o Livro Segundo
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das Constituições recorreu no propósito de garantir os domingos e os dias santos livres para que os escravos pudessem cumprir as suas obrigações religiosas.
Manoel Ribeiro Rocha
A Economia Cristã influenciou, manifestamente, uma outra obra posterior sobre o tratamento aos escravizados coloniais. Trata-se de Etíope Resgatado, Empenhado, Sustentado, Corrigido, Instruído e Libertado, publicada pelo sacerdote e advogado Manoel Ribeiro Rocha25, em 1758, já sob o contexto pombalino. O livro de Ribeiro Rocha leva adiante a proposta de Benci, isto é, a tentativa de conciliar a escravidão com o cristianismo. Mas, isto foi tentado num momento social que permitia nova leitura acerca da escravidão dos negros e a partir de uma nova realidade jurídica.
Existe uma edição recente do Etíope Resgatado, cuja introdução crítica e organização é de Paulo Suess26. Suess faz uma rápida e eficiente revisão bibliográfica sobre autores que comentaram a obra de Ribeiro Rocha, onde e quando o fizeram, destacando inúmeros equívocos cometidos e mitos criados por historiadores, a maioria dos quais, segundo ele, não leu a referida obra. O que parece ter passado despercebido para Suess foi certa semelhança ideológica, de forma e conteúdo que o Etíope Resgatado apresenta, em grande parte, com a Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, se bem que esta semelhança proceda, em parte, do fato de ambos os autores terem se inspirado na mentalidade coletiva da época. Isto, apesar de Suess se referir apenas uma vez à obra de Benci, quando comenta a quarta parte do livro de Ribeiro Rocha:
[...] Na quarta parte, sob a epígrafe ‘Etíope sustentado’, o autor trata da “normalidade” das relações escravagistas e da reciprocidade dos deveres. Como cinqüenta anos antes fizera o jesuíta Jorge Benci, também Ribeiro Rocha, ao querer regulamentar as obrigações entre escravos e senhores, parte do livro Eclesiástico: ‘Para o escravo o pão, o castigo e o trabalho’ (Eclo 33,25). No pão estão incluídos a doutrina, a educação [IV, 3], o “vestuário condigno” [IV, 5], os cuidados pela saúde [IV, 9 e 10] e o repouso dominical “para receberem o pasto espiritual da alma” (SUESS, In: RIBEIRO ROCHA, 1992, p.XVI).
É bem mais profunda a relação entre as duas obras. Quanto à idéia central e ao objetivo, O Etíope Resgatado tem dois pontos principais em comum com a Economia Cristã: o primeiro é a defesa da dignidade do negro escravizado; o segundo é o protesto pela crueldade cometida contra ele. Porém, enquanto a obra de Benci, grosso modo, tenta suavizar o cativeiro, sem propor uma mudança estrutural, Manoel Ribeiro Rocha vai mais adiante, quando propõe uma saída jurídica para a liberdade dos escravizados.
O livro de Ribeiro Rocha é dividido em oito partes, nas quais ele propõe mais uma tentativa de conciliar as necessidades econômicas da escravidão com as exigências da consciência cristã. O próprio
25 Os dados sobre a vida de Ribeiro Rocha são contraditórias (Cf. SUESS. 1992).
26Rocha, Manoel Ribeiro. O Etíope Resgatado, Empenhado, Sustentado, Corrigido, Instruído, Libertado: discurso teológico-jurídico sobre a libertação dos escravos no Brasil. (1758). Introd. e notas de Paulo Suess. Petrópolis: Vozes; São Paulo: CEHILA, 1992.
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título é um indicador preciso do conteúdo e da proposta de como o etíope27 deveria ser “resgatado, sustentado, corrigido, instruído e [finalmente], libertado” por seu senhor, depois de vinte anos, ou mais, de cativeiro. Na primeira parte do seu livro, ele fala sobre a consciência e a licitude da escravidão. Na segunda e terceira partes, trata de solucionar o problema da escravidão arbitrária ‘por via e título de redenção’. É exatamente na introdução (intitulada Argumento e Razão da Obra, a quem ler), na quarta, na quinta, na sexta e na sétima partes, em que ele fala do ‘etíope, sustentado, corrigido, instruído’ na doutrina cristã e nos bons costumes, que se evidenciam relações e semelhanças com os conteúdos de Benci que não poderiam passar despercebidas.
Não pretendemos aqui afirmar que Ribeiro Rocha se apropriou indevidamente das idéias ali contidas. Seria necessária uma análise mais profunda, de caráter histórico, lingüístico e semiótico, para afirmarmos, tecnicamente, qual o grau de aproximação entre os dois discursos. Não pretendemos, também, negar a originalidade dos propósitos da obra de Ribeiro Rocha. Alguns aspectos abordados por ele garantem essa originalidade e estão mesmo ausentes da obra de Benci, como por exemplo, a referência a S. Paulo, na Epístola aos Hebreus 9, 4, que o autor relaciona com as “obrigações, que lhe correm de prestar a seus escravos, com o sustento figurado no Maná, com o castigo figurado na Vara, e com a doutrina figurada, e compreendida nas Tábuas” (RIBEIRO ROCHA, 1992, p.79). Outro exemplo, que não encontra paralelo em Benci, é a sugestão do autor de que os senhores deveriam vestir os escravos segundo a hierarquia das suas funções:
[...] Para que este sustento, e vestuário seja suficiente e condigno, onde os escravos forem muitos, dispõem também as leis que se atenda à qualidade, e graduação de cada um [...] de sorte que por Direito aos escravos rurais [...] os das roças, fazendas, e engenhos, basta que se dê sustento, e vestuário suficiente, posto que seja mais grosseiro; mas aos escravos domésticos do serviço, e companhia dos senhores, e possuidores, o sustento, e o vestuário já deve ser mais competente e mais digno (RIBEIRO ROCHA, 1991, p. 80).
Igualmente, Ribeiro Rocha, no encaminhamento jurídico da sua obra, cita proporcionalmente muito mais vezes o Novo Testamento, e, inclusive, acrescenta que “a lei do Deuteronômio, como todas as mais leis cerimoniais, e judiciais, expiram pela Lei Evangélica, como ensinam os teólogos” e ao falar do bom exemplo que deve ser dado ao escravo e do mau exemplo que não deve ser dado, cita uma carta de São Francisco aos prelados da sua Ordem (1992, p.100-125). Duas outras singularidades no texto de Rocha, se bem que não o classifiquem no grau de consciência revolucionária são, de um lado, a famosa Epístola de São Paulo a Filêmon sobre o servo Onésimo, e, por outro lado, algumas citações do Evangelho de São João: Capítulo 4, versículo 20 que diz: “A Lei que professamos toda é fundada no amor de Deus, e do próximo, e são tão conexos, inseparáveis um, e outro amor, que quem não ama ao próximo, não ama a Deus”, e o Capítulo 3, versículo 18 que diz “como os senhores, e possuidores de escravos, que lhes não dão o sustento, nem vestuário, nem os curam, e tratam nas enfermidades, não amam ao seu próximo por obra; pois com as obras é que o próximo se deve amar, como diz o mesmo São João”.
27“Na Antigüidade greco-romana, os egípcios alcunharam seus vizinhos da região ao sul de Siene, atualmente Assuã (Ez 29, 10), de etíopes, o que significa ‘caras queimadas’ [...]. Na época greco-romana, a alcunha etíope (cara queimada) se tornou designação genérica dos habitantes desde o sul do Egito, passando por toda a África até os países em torno do Oceano Índico e à Índia. Mais tarde, etíope tornou-se nome genérico do negro” (Paulo Suess in: RIBEIRO ROCHA. p. IX, 1992).
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Um olhar mais demorado sobre os dois textos, ou melhor, uma análise comparativa, mais detalhada, nos evidencia vários graus de semelhanças entre os textos de Benci e de Ribeiro Rocha. Em vista disso, comparando os dois, agrupamos idéias na obra de Ribeiro Rocha, de cinco naturezas: 1) idéias semelhantes a idéias de Benci, se bem que tributárias de uma mentalidade comum, portanto, semelhantes a outras mais; 2) outras, nas quais a tônica maior foi a coincidência na escolha das citações, com o texto de Benci; 3) idéias nas quais houve concordância absoluta com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, naqueles artigos declaradamente baseados na obra de Benci; 4) outras, cujos graus de semelhança são quase de dependência da idéias de Benci; 5) finalmente, idéias originais de Ribeiro Rocha as quais superam (um pouco) o grau de consciência social e religiosa de Benci, no que diz respeito à instituição da escravidão colonial. Podemos afirmar, por meio das evidências textuais, que as duas obras apresentam semelhanças e coincidências que saltam à vista de qualquer observador.
Outrossim, Manoel Ribeiro Rocha em nenhuma parte da sua obra, menciona a obra Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, nem o seu autor, Jorge Benci; Cita, porém, quinze vezes as Constituições do Arcebispado da Bahia (que ele chama Constituição Bahiense), exatamente os trechos que abordam a escravidão, declaradamente baseados nos discursos de Benci, inclusive com notas de pé de página.
Na parte introdutória da obra de Ribeiro Rocha, que ele chama Argumento e Razão da Obra, a quem ler, boa parte dos argumentos coincide com a parte final da obra de Benci, que este chama Conclusão de toda a obra. Nesta parte Ribeiro Rocha justifica, em três laudas, as razões da sua obra e explica a tese que defende, de resgatar o etíope. Das três laudas, metade discorre sobre o tratamento que deve ser dado aos escravos (que vai ser mais bem explicado na quarta, quinta, sexta e sétima parte da obra) e, inteligentemente coincide, apesar de sucinto, com a conclusão da obra de Benci.
Na quarta, quinta, sexta e sétima partes da obra, onde Ribeiro Rocha fala do ‘etíope, sustentado, corrigido e instruído’ na doutrina cristã e nos bons costumes, evidenciamos relações e semelhanças fortíssimas com os conteúdos da obra de Benci. Mais da metade das citações do texto de Ribeiro Rocha é totalmente idênticas quanto ao conteúdo, autor, capítulo, parágrafo, número, ou capítulo e versículo (no caso bíblico) com as citações do texto de Benci. Além da coincidência na natureza das citações, também coincide a ordem em que as citações aparecem nos dois livros, com pequenas diferenças, sendo sintomática a quantidade de vezes em que as idéias de um e de outro texto, bem como as próprias referências, aparecem em ordem inversa.
Uns poucos argumentos garantem alguma originalidade aos discursos de Ribeiro Rocha, mesmo onde há coincidências com os discursos de Benci, como por exemplo: Enquanto na Economia Cristã predominam as citações bíblicas referentes ao Antigo Testamento, no Etíope Resgatado há equilíbrio entre o uso de argumentos do Antigo e do Novo Testamento. Benci dá uma ênfase bem maior aos exemplos extraídos do Gênesis e do Êxodo, Ribeiro Rocha se atém aos Sapienciais;
Proporcionalmente, é grande a referência aos Padres. Nota-se, contudo, no texto de Rocha, a ausência de alguns nomes mais em voga no início do século XVIII, coincidentemente, os jesuítas Sanchez, Belarmino, Jacobus Tirin. e Suarez, bem como os teólogos e canonistas Sotto (dominicano) e Augusto Barbosa. Além disso, há um número bem maior de argumentos jurídicos, seja de direito civil, canônico ou divino, em defesa dos escravizados, na obra de Ribeiro Rocha.
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Observamos, ainda, uma significativa superação de consciência no texto de Ribeiro Rocha, tanto no que diz respeito ao estatuto civil dos escravos quanto no que diz respeito aos seus direitos cristãos se comparado com Benci. Isto é expresso nas referências ao Evangelho e à mensagem de Cristo sobre o amor ao próximo. No texto de Benci fica claro o seu comprometimento com o projeto econômico colonial, no caso de Ribeiro Rocha, esse comprometimento parece ser bem menor.
6 CONCLUSÕES
A existência de autores que, de uma forma ou de outra, influenciaram ou se apropriaram do pensamento de Jorge Benci deixa entrever algumas questões que merecem ser aprofundadas. Por exemplo, que as fontes usadas por Vieira, Andreoni, Benci, pelos Sinodais, pelos peritos das Constituições Primeiras, e por Ribeiro Rocha são as fontes comuns àquela época e, foram fundamentais na elaboração do pensamento da Igreja. Essas fontes e os argumentos usados não refletem somente à opinião pessoal de Benci, mas, à posição ideológica de setores da Igreja que, inclusive, vão redigir as Constituições. É de se lembrar que estas foram redigidas em um sínodo, por uma equipe de peritos, os quais se situavam entre as mais significativas autoridades religiosas da Colônia.
Fica evidenciada, pois, a existência de uma forma de pensamento, vivo e cambiante da Igreja, por um lado, em relação à escravidão como um todo e, particularmente, em relação à escravidão colonial, por outro lado, um pensamento pedagógico sobre o tipo de educação que deveria ser dada para cada segmento que compunha aquela sociedade. Nessa dialética, Benci recebeu influências não só de Vieira e de outros letrados que clamaram contra a escravidão na Colônia e preconizaram formas de educação, mas, também, dos mais renomados teólogos e moralistas em voga do passado e daquela época. A partir daí, sistematizou uma obra de finalidade estritamente pedagógica em função de um problema real, que, certamente, era um ponto nevrálgico na consciência da Igreja: a existência da escravidão. Esta obra, por sua vez, vai fundamentar as leis canônicas e as formas de educação religiosa que vigorarão até o século XIX, quando novos clamores contra a escravidão ecoarão na alvorada pombalina.
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Fonte: