13.10.09

O Padre Vieira no Reino da Mentira

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Padre Vieira ( 1608-1697)
Por quase dez anos, de 1652 a 1661, o Padre Vieira viveu no Estado do Maranhão, então província do império luso, numa espécie de exílio. Brigado com a gente da corte, designaram-no, os seus superiores da Companhia de Jesus, a vir a assumir a " missão do Maranhão" , que logo ele verificou ser dificílima. Mas o padre Vieira, orador prodigioso, talvez o maior homem das letras portuguesas em todos os tempos, não era de se conter, de contornar, de suavizar. Gigante em terra de anões, Guliver no país de Liliput, ele legou sermões memoráveis, nada digeríveis, desancando os vícios da gente local com sua verve prodigiosa e indignada.

A geografia do Diabo

" A verdade que vos digo, é que no Maranhão não há verdade"

Padre Vieira- Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, S.Luís, 1654

Consta numa das tantas lendas que correm sobre o Diabo, lembrada pelo Padre Vieira, que aquele, saindo dos infernos, desabou-se por sobre a Europa. Partiu-se, porém, em pedaços que se espalharam por todos os lados. A cabeça, chifre e tudo, caiu na Espanha, daí os espanhóis terem os miolos quentes, os seus pés caprinos foram parar na França, daí lá gostarem de dançar e de se agitar, enquanto que o ventre satânico foi parar na Alemanha, o que explicava a gula daquele povo, sempre envolvido nos chucrutes, embeiçando-se atrás das partes do porco, cozidas ou assadas, tanto faz. E a língua do demo, indagou o Padre Vieira, onde teria ela ido parar? Supôs que em Portugal. Resultava disso que da Vila do Castelo à Vilamoura, do extremo norte ao extremo sul do reino, imperava aquela mania do falatório, da maledicência, do fuxico e da intriga. Tão prodigiosa era a fartura de palavras ruins em português que um tal de Drexelio, com elas, preparou um Abecedário dos Vícios da Língua. E o que encontraríamos se consultássemos, por exemplo, o verbete dedicado à letra " M", o. M. de Maranhão. Ora, respondeu o padre categórico: " M. de murmurar, M. de motejar, M. de maldizer, M. de malsinar, M. de mexerico", e , sobretudo, concluiu o grande pregador, " M. de mentir."

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Padre Vieira pregando do púlpito

Na Sibéria de Portugal

Bastou estar um pouco mais de um ano naquela parte do Novo Mundo, saído um tanto desterrado de Portugal, para que o Padre Vieira, o Grande, como o chamou com razão o padre André de Barros, entendesse que a costa do Maranhão era um refúgio da mentira. Em 1652, seus inimigos, afastando-o das proximidades do trono português, conseguiram empurrá-lo para dentro de uma nau despachando-o para o outro lado do Atlântico, para os quadrantes da vila de São Luís. Que fosse converter os tapuias, mas que livrasse o rei de conselhos imprudentes.

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Vista do Palácio dos Leões
O Maranhão daqueles tempos, estado independente do resto do Brasil desde 1621, diga-se, bem podia passar como a Sibéria do Reino Lusitano. Um litoral imenso, pouco desbravado, que se estendia do Ceará à bocarra do Rio Amazonas, cheio de dunas, mato fechado e desolação. Pouquíssima gente lusitana o habitava, mas muito nativo cor de cobre andava por aqueles sertões. Vieira desembarcou num caldeirão. O Maranhão era um vespeiro no qual os jesuítas enfrentavam diariamente os colonos. O pregador logo constatou que os chamados " forasteiros", isto é, os brancos que vinham da Metrópole tentar a vida por aqueles lados, não queriam saber de converter ao cristianismo a boa alma de ninguém. Muito menos a dos tapuias. Que ficassem pagãos. Queriam, isso sim, era o corpo dos índios. Os pés deles para não precisar andar nem lavrar a terra, os braços deles para não necessitar remar nem semear, das costas para delas se servirem como lombo afim de carregar-lhes os trastes e outras vergas. O pescoço , enfim, só servia para por uma canga. Estando eles , os reinóis que governavam a província, bem longe das vistas do rei, tudo sujeitavam e em tudo botavam a mão, porque não faltavam ofícios em que se podia furtar. E, ressaltou, não furtavam com unhas tímidas, mas com as agudas, as que deixam marca..

O Reino da Mentira

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A serpente da ilha

A hora do padre - furioso, magoado com as rixas constantes - de acertar-se com aquela gente deu-se na Quinta Dominga da Quaresma, em abril do ano de 1654, momento quando, no final da missa, o grande homem reservou-lhes um sermão purgativo. Para ele o Maranhão tornara-se " o reino da mentira" , com corte estabelecida na ilha de São Luís. Lá, como no fundo dos mares, não havia solidariedade nenhuma. Tal como entre os crustáceos e os peixes, imperava o canibalismo. Caranguejo devorava o caranguejo e o cação, assim que a maré subia, comia a todos eles. Mas porque era assim? Vieira disse que era o clima. A inconstância de tudo por lá era tamanha que o litoral do Maranhão, a baia de São Luís, era a única no mundo inteiro onde até o sol, tão certeiro em outras latitudes, enganava os pilotos, Olhando o astrolábio, ora ele indicava um grau, ora dois, o resultado era que muitos barcos encalhavam por lá. O que o fez concluir que " até o céu mentia no Maranhão!"

Muito sol, além de quebrar os laços de solidariedade, gerava a preguiça e o ócio. Este, ao prostrar as gentes, excitava-lhes a imaginação, mãe da mentira. Entre eles, mesmo que pelas duas orelhas escutassem uma verdade, perdida esta no caracol do ouvido, terminavam expelindo uma mentira pela boca. Tudo bem que em outras partes também se mentia. Lisboa, por exemplo. Mas ela era capital de um império. Podia exportar suas mentiras para outros cantos do mundo, para Veneza ou para Calicute. São Luís, pequenina, não. Naquela vila, a mentira não tendo para onde ir alimentava ainda mais outras inverdades. Nasciam e ali ficavam. Lá a mentira dançava de roda. Era por isso, talvez, que o povo local temia a Serpente da Ilha, monstruoso ofídio que diziam dormir ao redor de São Luís e que se algum dia suas presas encontrassem o seu rabo, mordendo a si mesmo, ela se ergueria para devastar com tudo.

Livros relacionados

Beatriz Catão Cruz Santos - O Pináculo do Templo: o sermão do Padre Vieira e o Maranhão do século XVII ( Editora UnB, Brasília, 1997)
Padre Antonio Vieira -
Sermões (Edelbra, Erechim/RS, 1998, 12 volumes)

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