As ferramentas de pedra encontradas na ilha de Creta são evidências das primeiras atividades de navegação, há pelo menos 130 mil anos
JOHN NOBLE WILFORD
Seres humanos em estágio inicial de evolução, ou até mesmo seus antepassados pré-humanos, podem ter saído ao mar muito antes do que qualquer pesquisador imaginava. É essa a surpreendente conclusão a que descobertas feitas nos dois últimos anos na ilha de Creta parecem conduzir.
Algumas ferramentas de pedra encontradas lá, dizem arqueólogos, têm pelo menos 130 mil anos de idade e são consideradas como fortes indícios das primeiras atividades de navegação como Mediterrâneo; as descobertas podem resultar em uma reavaliação das capacidades marítimas de culturas pré-humanas.
Creta é uma ilha há mais de cinco milhões de anos, o que significa que os responsáveis pela produção das ferramentas devem ter chegado a ela de barco. Assim, isso parece empurrar para 100 mil anos mais cedo do que se imaginava a história das travessias do Mediterrâneo, dizem especialistas em arqueologia da Idade da Pedra. As descobertas anteriores de artefatos mostram que pessoas haviam chegado a Chipre, algumas das demais ilhas gregas e possivelmente à Sardenha há no máximo 10 ou 12 mil anos.
A mais antiga travessia marítima já registrada e confirmada foi a do Homo sapiens anatomicamente moderno para a Austrália, iniciada cerca de 60 mil anos atrás. Também existe uma corrente sugestiva de indícios, especialmente esqueletos e artefatos encontrados na ilha de Flores, Indonésia, sobre a possibilidade de jornadas marítimas para novos habitats empreendidas por hominídeos anteriores.
Ainda mais intrigante é que os arqueologistas responsáveis pela descoberta das ferramentas em Creta tenham percebido que o estilo dos machados encontrados sugere que eles podem ter se originado 700 mil anos no passado. A conclusão talvez seja um tanto forçada, reconheceram, mas as ferramentas se assemelham à tecnologia de trabalho em pedra conhecida como acheulense, originada entre populações pré-humanas na África.
Mais de dois mil artefatos em pedra, entre os quais os machados, foram recolhidos na costa sudoeste de Creta, perto da cidade de Plakias, por uma equipe comandada por Thomas Strasser e Eleni Panagopoulou. Ela trabalha para o Ministério da Cultura da Grécia e ele é professor associado de história da arte no Providence College, em Rhode Island.
Os dois foram auxiliados por geólogos e arqueólogos gregos e norte-americanos, entre os quais Curtis Runnels, da Universidade de Boston; Strasser descreveu a descoberta no mês passado durante uma reunião do Instituto Arqueológico da América. Um relatório formal foi aceito para publicação pela "Hesparia", a revista da Escola Americana de Estudos Clássicos, em Atenas, uma das instituições que apoiam o trabalho de campo.
A equipe de pesquisa em Plakias estava em busca de restos materiais do trabalho de artesãos mais recentes, que viveram no máximo 11 mil anos atrás. Os artefatos em questão seriam lâminas, pontas de lança e pontas de flechas típicas dos períodos mesolítico e neolítico. "Nós encontramos o que estávamos procurando, e em seguida encontramos os machados", disse Strasser em entrevista na semana passada. E isso levou o time a redobrar seus esforços.
"Ficamos completamente atônitos", disse Runnels, em entrevista. "Aquelas coisas não deveriam estar lá". Informações sobre as descobertas já vinham circulando entre os estudiosos da Idade da Pedra. Os poucos deles que viram os dados e algumas fotos - a maior parte das ferramentas foi encaminhada a Atenas - se declaram animados e impressionados com a descoberta, embora expressem certa cautela. Se as pesquisas forem confirmadas por novas estudos, elas resultarão em mudanças na cronologia do desenvolvimento tecnológico e nos relatos dos livros didáticos sobre a mobilidade dos seres humanos e pré-humanos do passado distante.
Ofer Bar-Yosef, autoridade em arqueologia da Idade da Pedra na Universidade Harvard, disse que o significado da descoberta dependeria da datação do sítio. "Assim que os pesquisadores determinarem a datação", ele afirmou em mensagem de e-mail, "teremos uma compreensão melhor da importância dessa descoberta".
Bar-Yosef afirmou que havia visto apenas algumas fotos das ferramentas cretenses. As formas que elas exibem só servem para indicar uma idade possível, ele afirmou, "mas lidar com os artefatos pode oferecer impressão diferente". E a datação, ele afirma, terá o papel determinante. Runnels, que tem 30 anos de experiência em pesquisas sobre a Idade da Pedra, disse que uma análise conduzida por ele e três geólogos "não havia deixado muita dúvida sobre a idade do sítio, e as ferramentas devem ser ainda mais antigas".
As encostas e cavernas por sobre a costa, afirmaram os pesquisadores, foram erguidas por forças tectônicas no ponto em que a placa continental africana se encaixa por sob a placa europeia e a força a subir. As camadas erguidas e expostas devido a esse fenômeno representam a sequência de períodos geológicos que foram bem estudados e datados, e em alguns casos se correlacionam a datas estabelecidas de períodos glaciais e interglaciais da mais recente era glacial.
Além disso, a equipe analisou a camada que abrigava as ferramentas e determinou que a terra que ela encobria havia estado na superfície entre 130 mil e 190 mil anos no passado.
Runnels diz que considera que essa seja a idade mínima para as ferramentas. Elas incluem não apenas machados de quartzo mas também lixas e cunhas, todas as quais em estilo acheulense. As ferramentas podem ter sido produzidas milênios antes que terminassem, de certa forma, congeladas no tempo, sob as cristas de Creta, dizem os arqueólogos.
Runnels sugeriu que as ferramentas poderiam ser duas vezes mais velhas que as camadas geológicas. Strasser afirmou que podem ter até 700 mil anos de idade. Novas escavações serão realizadas na metade deste ano. A data de 130 mil anos conduziria a descoberta a um período no qual o Homo sapiens já se havia desenvolvido na África, o que ocorreu por volta de 200 mil anos atrás. A presença desse grupo na Europa não se tornou aparente antes de 50 mil anos atrás.
Os arqueólogos só podem especular quanto a quem seriam os produtores das ferramentas. Há 130 mil anos, os seres humanos em sua forma anatômica moderna dividiam o mundo com outros hominídeos, como os neandertalenses e o Homo heidelbergensis. A cultura acheulense, ao que se sabe, teria surgido com o Homo erectus.
A hipótese padrão vem sendo a de que os produtores acheulenses de ferramentas chegaram à Europa e Ásia via Oriente Médio, atravessando principalmente o território do que é hoje a Turquia, e seguindo rumo aos Bálcãs. A nova descoberta sugere que sua dispersão não estava confinada a rotas terrestres. Isso pode emprestar credibilidade à ideia de que houve migrações vindas da África, através do estreito de Gibraltar e rumo à Espanha. A costa sul de Creta, onde as ferramentas foram encontradas, fica a 320 quilômetros da África do Norte.
"Não podemos afirmar que os fabricantes das ferramentas vieram da Líbia, a 300 km", disse Strasser. "Se você navega em uma balsa, a jornada é longa, mas eles podem ter vindo do continente europeu, em jornadas mais curtas, passando pelas ilhas gregas".
Mas os arqueólogos e os especialistas nos primórdios da história náutica humana dizem que a descoberta parece servir como demonstração de que esses navegadores surpreendentes de um passado distante dispunham de embarcações mais resistentes e mais confiáveis que as balsas. Também podiam estar dotados da capacidade de conceber e executar travessias marítimas a longa distância a fim de estabelecer populações sustentáveis e capazes de produzir artefatos de pedra em escala abundante.
Tradução: Paulo Migliacci ME
Fonte: The New York Times