Maria Lígia Coelho Prado
ILUSTRAÇÃO: JOÃO TEÓFILOQuem vive o cotidiano da sala de aula sabe que não é exagero afirmar que os alunos brasileiros do ensino médio, ou mesmo os que chegam à universidade, praticamente desconhecem a História da América Latina. Esse distanciamento entre o Brasil e os demais países latino-americanos se deve em parte ao fato de a tradição cultural brasileira estar profundamente voltada para a Europa. Cultivado desde os tempos coloniais, o fascínio pela “civilização do Velho Mundo” ainda tem forte apelo na sociedade brasileira dos nossos dias.
Historicamente, muitos fatores contribuíram para a construção desse fosso. As áreas de colonização portuguesa e espanhola suportaram rivalidades entre suas metrópoles que acabaram por traçar limites não apenas geográficos, mas também culturais, políticos e sociais. Mesmo após as independências, ao longo do século XIX, as diferenças se mantiveram, especialmente pela escolha de regimes políticos – enquanto o Brasil se configurou como uma monarquia, os países hispânicos deram origem a diversas repúblicas.
Mas as últimas décadas trouxeram expressivas mudanças nas relações entre o Brasil e os demais países da América Latina. As várias facetas da integração regional e latino-americana têm sido intensamente discutidas e ganharam destaque no cenário político brasileiro, especialmente após a constituição do Mercosul (zona de livre comércio da qual fazem parte Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai). Este é um momento privilegiado para se ampliarem no Brasil o ensino e a pesquisa da História da América Latina. O paralelismo que encontramos nos grandes temas históricos das duas Américas – a portuguesa e a espanhola – permite indagações comparativas que podem provocar uma reflexão inovadora sobre a própria historiografia brasileira.
Uma comparação interessante pode ser feita entre duas pinturas históricas que retratam dois processos de independência: a do Uruguai e a do Brasil.As fortes vinculações com a Europa durante a segunda metade do século XIX fizeram com que vários artistas do Novo Mundo – brasileiros, uruguaios, argentinos e mexicanos – fossem estudar no Velho Continente, onde aprenderam novas técnicas e se familiarizaram com as correntes artísticas em voga, muitas vezes patrocinados por seus respectivos governos. Mas, de volta à terra natal, o cenário político e o ambiente acabaram impondo a questão nacional a esses artistas, que então dirigiram seu olhar para dentro de suas sociedades, interrogando-se sobre sua história e suas peculiaridades. Como resultado, produziram interpretações sobre os acontecimentos considerados primordiais naquele momento, como a chegada dos europeus à América e os processos de independência política.
No Brasil, Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905) pintou o quadro “IndependênciaouMorte” ou “OgritodoIpiranga”, em 1888.Às margens do riacho do Ipiranga, D. Pedro, montado a cavalo, levanta a espada e proclama a Independência do Brasil, bradando: “Independência ou Morte!”. Seu gesto é saudado pela guarda, vestida em trajes de gala, e bem à sua frente, um cavaleiro arranca da farda o laço vermelho e azul que simbolizava a união entre a Colônia e a metrópole. Vinda do alto, uma luz esplendorosa ilumina D. Pedro. O único homem que não faz parte da comitiva oficial – um caipira, puxando um carro de boi – está apartado da cena principal e assiste a tudo com admiração e surpresa. É o “povo”, praticamente ausente nessa representação e cujo papel não é nem mesmo de coadjuvante, mas sim de um mero espectador.
Já o uruguaio Juan Manuel Blanes (1830-1901) havia pintado, em 1877, “OJuramentodos33Orientais”.A obra retrata o grupo de homens liderado por Juan Antonio Lavalleja (1784-1853) e Manuel Oribe (1792-1857) que se lança à reconquista militar da Província Oriental, nesse período incorporada, com o nome deCisplatina, ao território brasileiro.O acontecimento marca, na história do Uruguai, o início simbólico da chamada Cruzada Libertadora, que levará à Independência, a ser proclamada em 25 de agosto de 1825.
Na tela, Lavalleja empunha a bandeira dos 33 orientais – branca, azul e vermelha, com os dizeres Libertad o Muerte – acompanhado por Oribe, com o chapéu na mão, ambos demonstrando o mesmo entusiasmo e disposição dos homens que estão à sua volta. A cena se abre como num leque, personalizando os principais atores e caracterizando as figuras secundárias, como a do gaúcho ajoelhado, em seus trajes costumeiros, bem à frente. Um clarão os ilumina e parece brotar da terra, dando dramaticidade e valorizando a determinação e a confiança do grupo. A pintura está concebida de tal forma que os dois líderes não podem ser separados de seus comandados. Colocados no mesmo plano, formam um grupo político coeso, movidos pela mesma causa.
Tanto Juan Manuel Blanes quanto Pedro Américo escreveram textos de reflexão sobre a criação e a elaboração de seus quadros. Nestes relatos, há um ponto em comum: ambos afirmaram que não espelhavam exatamente a verdade histórica, pois as necessidades essenciais da construção artística precisavam ser levadas em conta.
Pedro Américo afirmava que visitara o local do “Grito” e realizara extensas pesquisas, mas que algumas mudanças se faziam necessárias: o riacho do Ipiranga foi incorporado ao quadro; a cor dos laços da farda foi mudada de branco e azul para vermelho e azul, para se adaptar melhor à composição de cores; a casa e as árvores ao redor foram inventadas, assim como o declive do terreno. O objetivo era “restaurar com a linguagem da arte um acontecimento que todos desejam contemplar revestido dos esplendores da imortalidade”. Ele argumentava que todos tinham que estar de acordo com aquela época “cerimoniosa e brilhante”, desde os cavalos até os uniformes da Guarda de Honra. O cavalo de D. Pedro, que segundo alguns era um asno baio, foi pintado como sendo um zaino escuro, e seu cavaleiro deveria ser pintado de acordo com o caráter do príncipe: “propenso às pompas do trono”, e não refletindo as perturbações gástricas que sofria na ocasião.
Blanes achava importante fazer referência aos 33 orientais que iniciaram a luta pela independência. Pelas pesquisas atuais, não se sabe ao certo se esse número é exato. Mas a escolha do pintor está diretamente vinculada à sua filiação à maçonaria. Para os maçons, o número 3 é perfeito, compondo os três lados do triângulo, outro de seus símbolos. No quadro de Blanes, a vestimenta também é significativa, mas numa visão bastante diferente, já que ele dizia que “nossos pais não pensaram em fundar o orgulho nacional com seus trajes, e sim com seu valor e seu sangue”. Para ele, as roupas descuidadas de alguns dos heróis deviam ser assim retratadas, porque “atos de coragem e patriotismo não podem decorar-se previamente”. Então, a dignidade e a beleza seriam mostradas em sua simplicidade e de acordo com as particularidades dos costumes uruguaios.
As virtudes – coragem e dignidade – eram muito valorizadas pelo republicano Blanes, e por isso os trajes eram meros acessórios que não deviam ofuscar o brilho da cena histórica. Mas Pedro Américo pensava diferente: as aparências – a pompa, os trajes – eram indispensáveis, faziam parte da imagem da monarquia e integravam seu significado. Da mesma forma, a luz, que na pintura do brasileiro vem do alto, na do uruguaio surge da terra. Ao comparar os dois quadros, é possível então afirmar que as escolhas pictóricas de Pedro Américo estão relacionadas ao imaginário simbólico da monarquia e que Blanes foi inspirado pelo ideário republicano, isto é, a perspectiva de que o poder político emana do povo e não da Divina Providência; que as pessoas nascem iguais, não cabendo privilégios à aristocracia; que as virtudes individuais são o sustentáculo do regime; que Estado e Igreja devem ser separados.
Bastante reveladoras são também as primeiras exibições dos dois quadros. Pedro Américo expôs “IndependênciaouMorte” pela primeira vez em Florença, em 1888, em “uma inauguração solene”, com a presença de D.Pedro II e da imperatriz, das rainhas da Sérvia e da Inglaterra e de vários membros da aristocracia europeia. O tom solene da cerimônia se adequava ao lugar escolhido para a exposição, a Academia Real de Belas Artes de Florença. Já Blanes expôs seu quadro pela primeira vez em seu próprio ateliê, no dia 31 de dezembro de 1877, com a presença do presidente da República e de outras autoridades. O quadro ficou disponível por um mês para a visitação de todos os cidadãos que desejassem contemplá-lo, provocando “uma comoção pública sem precedentes”, comprovada pelo impressionante número de 6.237 visitantes.
Além de simbolizarem as independências dos dois países, as duas pinturas históricas foram elaboradas por homens envolvidos com as discussões de seu tempo sobre arte, nação e política. As telas revelam as escolhas de cada um e demonstram que as afinidades com o regime monárquico, no caso do Brasil, ou com o regime republicano, no caso do Uruguai, indicam percepções diferentes sobre a independência de cada país.
É certo que o conhecimento sobre a História do Brasil pode ser enriquecido nas salas de aula quando direcionamos o olhar dos alunos para o horizonte ampliado da América Latina. E cruzando as fronteiras, descortina-se o rico – muitas vezes inimaginável – panorama da circulação de pessoas, de ideias, de livros, de proposições políticas e de projetos econômicos pela região.
Maria Lígia Coelho Pradoé professora da Universidade de São Paulo e autora de América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos (Edusp, 1999).
Saiba Mais - Bibliografia
CAPELATO, Maria Helena Rolim. “O ‘gigante brasileiro’ na América Latina: ser ou não ser latino-americano”. In: Mota, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta: A experiência brasileira. A grande transação. São Paulo: Editora Senac, 2000.
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PRADO, Maria Lígia Coelho. “O Brasil e a distante América do Sul”. In: Revista de História, nº 145. São Paulo: 2001.
SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G. O Brasil entre a América e a Europa. O Império e o Interamericanismo (do Congresso do Panamá à Conferência de Washington). São Paulo: Editora Unesp, 2004.
20.7.12
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