25.1.11

COMO O BRASIL FOI (RE) INVENTADO

Até 1808, os brasileiros comiam com as mãos e viviam numa terra sem universidades, imprensa ou médicos. Com a chegada da corte ao Rio de Janeiro, a colônia começou a ficar com cara de país
por Reinaldo José Lopes
Naquela manhã quente, seu Barroso levantou cedinho. Próspero comerciante carioca, ele tinha de ir até o Valongo, na zona portuária, examinar mercadorias recém-chegadas. Mandou um escravo enrolar as esteiras onde havia dormido, enquanto outro colocava uma tábua em cima de dois cavaletes e trazia as gamelas com o almoço. Entre um bocejo e outro, Barroso mergulhava os dedos na papa de farinha e feijão-preto. Terminou de comer limpou as mãos na roupa de algodão e, antes de ir para a rua, deu uma chinelada na ratazana que tentava invadir sua casa.
O comerciante precisou aplicar um golpe de bengala para atravessar a esquina – um bando de urubus estava distraí do demais para lhe dar passagem, banqueteando-se com um cachorro morto na véspera. Numa rua estreita, Barroso passou por seu barbeiro, o mulato Sebastião, e se deteve um instante. Suas hemorróidas estavam de matar. Seria o caso de pedir ao velho homem uma rápida aplicação de sanguessugas? Talvez uma outra hora. Mais alguns minutos e Barroso finalmente chegou ao Valongo, onde trocou uma bela quantidade de carne-seca e couro curtido por alguns negros trazidos da África.
Embora a cena descrita acima seja fictícia, ela traça um retrato fiel do que era o Brasil no começo do século 19. O pedaço mais lucrativo do império português também era um local tosco, desprovido de saneamento básico, educação superior, hospitais e até de moeda circulante (nosso Barroso não era um adepto do escambo à toa). A fuga do príncipe regente dom João e de todo o aparato estatal português para cá, entre o fim de 1807 e o começo de 1808, deu os primeiros passos para acabar com esse marasmo (o que colocaria a colônia, sem querer, no caminho da independência). E tudo graças a um certo Napoleão Bonaparte, que tinha decidido acabar com o sossego de Portugal e ocupar o pequeno país ibérico.
Deus-nos-acuda
Portugal tinha virado alvo de Napoleão por causa da sólida aliança do país com a Inglaterra. Enquanto expandia seus domínios pela Europa, o imperador da França enfrentava uma guerra prolongada com os britânicos e queria expulsá-los dos portos da Europa. Como Portugal era um dos poucos países ainda abertos à Marinha inglesa, Napoleão pressionava dom João a abandonar seus velhos aliados.
O indeciso príncipe regente adotou por meses sua tática favorita: enrolar. Mas a pressão britânica foi mais forte que a francesa, em especial porque a Inglaterra ameaçava ocupar o Brasil caso o monarca não concordasse com o plano de fugir para a colônia. Quando dom João finalmente aprovou a retirada estratégica, a situação logo virou um deus-nos-acuda. Os cerca de 40 navios carregavam um amontoado de cerca de 11500 pessoas. A frota, escoltada pelos britânicos, deixou Lisboa em 29 de novembro de 1807, quando o Exército francês já estava entrando na capital.
A comitiva aportou em Salvador em 22 de janeiro de 1808. Antes de rumar para o Rio de Janeiro, dom João ficou pouco mais de um mês na Bahia. Foi apenas o tempo estritamente necessário para se recuperar da travessia e emitir a famosa ordem de abertura dos portos brasileiros às “nações amigas” – leia-se Inglaterra –, acabando com o monopólio naval português por aqui. Era a primeira prestação devida aos britânicos por seu papel de cães de guarda do império lusitano. E a primeira mudança de peso a afetar uma colônia que estava, sob muitos aspectos, parada no tempo.
Tigres e bandoleiros
Os que estudam a situação brasileira em 1808 são quase unânimes: chamar a América portuguesa de “Brasil” seria quase força de expressão. A unidade estava longe de ser clara. “Os habitantes do Brasil se auto-identificavam como portugueses, sentimento que convivia com identidades particularistas, como ‘ser das minas’ ou ‘ser bahiense’”, diz Ana Rosa Cloclet da Silva, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Estima-se que o Brasil da época tivesse 3 milhões de habitantes – incluindo 1 milhão de escravos e 800 mil índios.
Cerca de 60 mil pessoas viviam no Rio de Janeiro, contra 46 mil em Salvador e 20 mil em São Paulo. Embora os paulistas já tivessem parado de falar tupi – que, durante séculos, chegou a ser mais usado que o português em São Paulo –, eles ainda tinham muito de índio, dormindo em redes, vestindo imensos ponchos que hoje nos lembrariam os gaúchos e usando, para cortar a carne no almoço, a mesma faca que manejavam em duelos.
Os paulistas com jeitão de bandoleiros eram só uma faceta da vida urbana caótica que dom João encontraria no Brasil. As ruas das principais cidades só poderiam ser definidas como uma zorra total. Estreitas e mal iluminadas, eram lotadas de vendedores ambulantes cuja gritaria não deixava ninguém em paz, bichos (principalmente porcos e galinhas) e lixo. Sem falar nos urubus, que se esbaldavam com tanta fartura.
No entanto, em termos de, digamos, saneamento básico, nada superava o sistema dos “tigres”, os escravos que desempenhavam o papel de carregadores de esgoto e lixo em cidades como o Rio, Recife e Salvador. Eles colocavam barris cheios de dejetos nas costas e os levavam para o mar. Com o passar do tempo, as substâncias que caíam em seus ombros deixavam listras brancas na pele negra – daí o apelido felino. As praias mais glamurosas do Rio moderno provavelmente eram um fedor completo no começo do século 19.
Os “tigres” eram só mais um lembrete de que, no dia 8 de março, dom João e sua corte tinham desembarcado no maior mercado de escravos das Américas, o Rio de Janeiro, cidade onde um terço da população de 60 mil pessoas correspondia aos cativos.
No olho da rua
O primeiro problema que o príncipe precisou resolver na chegada foi onde enfiar 11500 membros sem-teto da elite portuguesa. Simples: dom João mandava pintar as iniciais P.R. (oficialmente “Príncipe Regente”, mas interpretadas como “Ponha-se na rua”) nas casas desejadas para sua nobre trupe. Os donos originais tinham que deixá-las livres para os novos moradores e, supostamente, deveriam ter sido recompensados com uma espécie de aluguel, mas isso acabou acontecendo com freqüência bem inferior à necessária.
Dom João trouxe para o centro do Rio um novo tipo de música: a dos explosivos, pondo abaixo morros e rochedos que, segundo os urbanistas portugueses, atrapalhavam a circulação do ar e das águas e tornavam a cidade propensa a enchentes. Na base da pólvora, a região foi ficando mais plana e ampla. Era preciso expandir a cidade: em 1808, o Rio tinha apenas 46 ruas e um punhado de becos e travessas. Segundo cálculos do viajante inglês John Luccock, cada residência carioca espremia, em média, 15 pessoas.
Apesar do “Ponha-se na rua”, a elite carioca se mostrou mais que disposta a sustentar a corte nem um pouco austera de dom João. O maior exemplo disso veio com a fundação do Banco do Brasil, que iniciou um lucrativo sistema de toma-lá-dá-cá entre o rei e seus súditos brasileiros. O banco seria sustentado inicialmente pelos investimentos dos cariocas, que podiam comprar ações da instituição. Quem fosse generoso podia ser recompensado com títulos de nobreza e, melhor ainda, com dividendos bem superiores ao rendimento real do banco. Isso porque, como conta o jornalista Laurentino Gomes em seu livro 1808, o Banco do Brasil se pôs a emitir papel-moeda sem lastro correspondente em ouro – receita ideal para que a instituição quebrasse, o que aconteceu anos após a Independência.
A colônia não tinha autonomia completa nem para julgar seus próprios crimes. “Antes de 1808, o Judiciário do Brasil era composto essencialmente pelos Tribunais da Relação, com sedes no Rio de Janeiro, na Bahia e no Maranhão, mas a última instância ficava em Lisboa”, conta Márcio Antônio Ribeiro, consultor histórico do projeto Bicentenário do Judiciário Independente no Brasil, organizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Uma das medidas tomadas pelo príncipe regente foi criar a Casa de Suplicação no Rio, transformando a nova capital na última instância de todos os casos julgados em seus domínios. A Casa de Suplicação, após uma série de metamorfoses institucionais, daria origem ao atual STF.
Quase medieval
A verdade é que criar um banco e um tribunal ou abrir os portos era até a parte fácil do trabalho de dom João. Difícil mesmo seria cumprir o objetivo declarado de tornar o país “digno” da corte recém-chegada. O primeiro baque deve ter sido a diferença brutal de vestuário entre os fugitivos e os nativos. De um lado estavam as perucas empoadas, os sapatos de salto alto e os casacões bordados que Portugal copiara da corte francesa. De outro, os chinelos de dedo, calças leves e jaquetas de chita dos homens do Rio de Janeiro. Já as cariocas usavam rosários, camisas simples, saias curtas e mais chinelos.
Não demorou para que os brasileiros se pusessem a imitar o estilo da corte – até escravos libertos adotaram cartolas, bengalas e casacas. Mas estava na cara que esse tipo de vestuário não funcionaria direito num país tropical. Um diplomata da Prússia relatou o desastre de uma recepção de gala: “Às 8 horas, ombros e costas das damas, que trajavam vestidos decotados da moda, já tinham sido tão picados por mosquitos que, de tão vermelhos, assemelhavam-se a soldados após apanharem de chicote”.
Em vários aspectos do cotidiano, até mesmo os brasileiros mais ricos levavam uma vida quase medieval em 1808 (com a exceção do costume de tomar banhos regulares, impensável para os portugueses). Quem vivia por aqui em geral não sabia o que era usar talheres à mesa. Enquanto os homens utilizavam facas de cabo prateado para cortar carne – num almoço formal, cada convidado tinha de trazer a sua de casa –, mulheres e crianças mergulhavam as mãos na papa de comida.
O menu não era muito variado, incluindo em geral carne-seca, toucinho, feijão-preto, farinha de milho e, para beber, água. Vez por outra, as famílias comiam à mesa, embora o mais comum fosse fazer as refeições no chão, sentados em esteiras, com o prato no colo, enquanto ratazanas passavam correndo pelo aposento – se você queria saber se duas pessoas sentadas lado a lado eram íntimas, era só prestar atenção se uma delas enfiava a mão no prato da outra e pegava um pedaço do rango.