16.8.09

Configuração Social, Política e Econômica da Civilização Egípcia



Configuração Social, Política e Econômica da Civilização Egípcia

por Cláudio Umpierre Carlan

Sobre o autor *

Introdução

Não é de hoje que a civilização egípcia influencia o nosso imaginário. Desde a Antiguidade, assírios, persas, gregos, romanos entre outros, demonstravam além de um interesse político e econômico, certa curiosidade sobre essa região. Grande parte dos conquistadores teve de se adequar a essa realidade, numa tentativa de legitimar o seu poderererer[1].

As fronteiras do Egito eram bem definidas: o mar mediterrâneo ao norte; a Núbia (Primeira Catarata) ao sul, de onde vinham às matérias primas; o deserto da Líbia a oeste e o Arábico a leste. Uma estreita faixa de terra, cercada pelo mar e o deserto, tem no Rio Nilo, como já citaram Heródoto e Hecateu de Mileto, o grande motor dessa civilização[2].

O Nilo e seus afluentes, Nilo Branco (nasce no lago Vitória, atual Uganda) e o Nilo Azul (Planalto da Etiópia), cortavam, aliás, ainda cortam, esse estreita faixa de terra, que na Antiguidade provocavam uma série de inundações (entre julho e agosto). Com as inundações, desapareciam as demarcações de terras. Anualmente, uma equipe de aldeões e/ou funcionários marcavam novamente as bordas das terras que, a partir de então, poderiam ser utilizadas pelos camponeses.

Atualmente esse fenômeno foi bastante reduzido, principalmente após a construção da Barragem de Assuã, na década de 1960, ao sul do Egito.

Aspectos Políticos: a dinastia faraônica

O início da História Política do Antigo Egito apresenta uma questão problemática sobre a unificação dos dois reinos.

Entre o VII e VI milênio a.C., tribos começaram a se fixar às margens do Nilo. Com o tempo, observaram e aprenderam a controlar as cheias do rio, iniciando uma série de atividades agrícolas (principalmente o trigo) que auxiliaram na sedentarização[3]. O que era comum nas primeiras civilizações era a fixação ao solo, próximo a grandes rios, como o Tigre e o Eufrates na Mesopotâmia, o Ganges ao norte da Índia, Huang He ou rio Amarelo na China, entre outros.

O desenvolvimento entre essas tribos, mais tarde chamado de nomos (serat), sendo governadas por um nomarca, não foi contínuo ou coerente. Segundo a Arqueologia, o norte, conhecido também como Delta ou Baixo Egito era mais rico e, tecnologicamente, mais avançado que o sul, conhecido como Vale ou Alto Egito. Porém, no sul existiam dois nomos a mais que o norte. Era apenas uma questão de tempo para um reino tentar anexar o outro.

Segundo o sacerdote e historiador Manethon, que viveu no século III a.C., Menés teria sido o primeiro faraó, portanto o unificador do Egito. Séculos mais tarde, o arqueólogo inglês James Quibell, em 1898, encontrou a Paleta de Narmer[4], no templo de Neklen (Hierakompolis), Alto Egito, capital religiosa entre os anos de 3200 – 2800 a.C. As escavações em Neklen continuaram com Hoffmam (década de 1980) e Bárbara Adams em 2000.

Pouco depois, Quibell encontrou a clava do rei escorpião, hoje no Oxford Asmolean Museum. Nesse objeto, o Rei Escorpião é identificado como Hórus – Serek, rei do Alto Egito. Narmer ou Menés é identificado como seu sucessor, Hórus – Aha. Sendo Hórus um deus do Norte / Baixo Egito (Set, do sul) seria politicamente correto o conquistador adotá-lo como deus. Por que o rei do sul, adotaria em sua titulatura um deus rival ? A menos que tivesse conquistado esse rival. Apesar de toda essa conjectura, os egiptólogos defendem a idéia que Narmer foi o sucessor do Rei-Escorpião.

No topo dessa estrutura política – administrativa estava o faraó. Ele era associado ao deus Hórus, enquanto que o antecessor era identificado como Osíris, pai de Hórus, independente da relação familiar entre os dois governantes. Ainda no Antigo Império, mais precisamente a partir da V Dinastia (2562 – 2423), os governantes também são apresentados como filho de Amon – Rá (deus solar)[5]. Assim sendo, foram acrescentados mais nomes a titulatura real: Hórus, Nome das Duas Senhoras, Hórus de ouro.

Durante o primeiro intermediário, lutas políticas e sócias, querelas religiosas, os nomarcas adquirem uma autoridade maior e rivalizam com o poder central, ataque das tribos nômades, ajudam a desestruturar o sistema.

Nesse foco político, o rei, em teoriaia[6], é autoridade máxima e incontestável. Máxima autoridade judicial, comandante supremo das forças armadas[7], seus súditos poderiam recorrer a ele sobre qualquer decisão judicial. Como deus vivo era o sumo-sacerdote, a ligação entre homens e deuses, o mundo natural e o sobrenatural. Como não era possível estar presente em todos os cultos ao mesmo tempo, delegava o seu poder a outros sacerdotes, muitas vezes um irmão mais novo ou primo.

A rainha (hemet nesu, esposa do rei), geralmente era de origem real, podendo ser irmã do Faraó, mas de outra mãe. Durante o longo período da História Egípcia, várias rainhas desempenharam um papel político importante junto ao monarca. De uma maneira geral o filho mais velho da principal esposa sucedia ao rei.

Outra figura política importante era o tijati[8]. Ele possuía poderes judiciais, inspecionava as construções reais. Era uma espécie de conselheiro. O mais famoso, até por causa de Hollywood, foi Imhotep[9], tijati do faraó Neterierkhet – Djeser (ou Djoser), da III Dinastia. Em alguns períodos houve dois tijati, um para Alto Egito e outro para Baixo.

Politicamente, os nomos ou províncias eram divididos. 20 no Baixo Egito e 22 no Alto, dando um total de 42. Inicialmente o governante do nomo, nomarca, era nomeado pelo rei. Com o avanço da burocracia estatal, passou a ser hereditário. O que explica o fato de, durante alguns períodos, tornarem-se praticamente independente, como um Estado dentro do próprio Estado Faraônico.

Aspectos sociais: uma sociedade hierarquizada

A sociedade egípcia possuía uma estrutura fortemente hierarquizada. Geralmente dividida em três níveis bem definidos: faraó, familiares, sacerdotes e altos funcionários (corte); escribas e militares; agricultores, artesãos, camponeses, ou seja, a maioria da populaçãoãoãoão[10].

Os cargos da administração permaneciam dentro da própria família do governante, pelo menos no Antigo e início do Médio Império. Mas tarde essas funções tornam-se hereditárias, surgindo uma elite burocrata. Também existia a possibilidade de promoção por mérito. Porém, de uma maneira em geral, os antigos egípcios esperavam que seus filhos seguissem os passos dos pais.

Do ponto de vista legal, a mulher era igual ao homem. Teoricamente seus papeis eram de mãe, esposa ou amante. Mas na prática, muitas rainhas tiveram uma atuação importante no complexo Estado faraônico[11]. Como por exemplo, podiam assumir a regência durante a menoridade do filho ou na falta de um sucessor masculino.

Um importante foco de ação feminina, principalmente durante o Novo Império, foi o de esposa ou adoradora de Amon, em Tebas (Uaset). Geralmente filhas ou esposas reais ocupavam o cargo (como Nefertari, principal esposa de Ramsés II), mas essa função denotava uma dose de poder e riqueza.

O casamento, em geral, era monogâmico. Não existia, ou pelo menos não conhecemos, uma cerimônia oficial, entre a maioria da população. Bastava um casal querer coabitar e a união era aceita. Como a expectativa de vida era muito baixa, os homens casavam entre 16 ou 18 anos e as mulheres entre 12 e 14. A infidelidade feminina era punida com a separação.o.o.

Na corte faraônica existiam casos de poligamia ou bigamia. Entre a elite, os homens poderiam ter mais de uma esposa. A principal, nebet – per, senhora da casa, e outras concubinas (segunda esposa). Os egípcios valorizavam muita a harmonia familiar: o homem deveria tratar com justiça a sua esposa e essa ter vários filhos.

O rei possuía sua própria estética. Eram roupas, insígnias, objetos que legitimavam seu poder. Como a barba postiça, o nemes (pano que colocavam na cabeça, com a cobra protetora, uraeus). Além das coroas branca (hedjet) e vermelha (decheret), que juntas formavam a coroa dupla, o pschent, existiam ohekat (báculo) e nekhakha (látego), espécie de cetros reais que indicavam o poder do faraó sobre o Alto e Baixo Egito.

Aspectos econômicos: Egito, o grande celeiro da Antiguidade.

O grande motor da economia egípcia estava concentrado na agricultura. Apesar de todas as terras pertencerem ao governante, como vimos anteriormente, existia a propriedade privada. A partir da IV Dinastia (2723 – 2863) a privatização do solo foi uma realidade. Provavelmente por causa das constantes doações do Faraó para seus funcionários, como pagamento, ou aos templos.s.s.s.

Logo após as inundações do Nilo, aldeões demarcavam novamente a terra, sendo a partir de então, cultivada pelos camponeses. As sementes eram fornecidas pelo palácio e o plantio ocorria em outubro. O trigo e a cevada eram à base da produção agrícola, pois faziam o pão e a cerveja. O vinho, geralmente guardado em ânforas, com nome do fabricante e ano (semelhante as nossas garrafas atuais), era de uso exclusivo da elite (CARLAN: 2007, 9).

Além de lavrar a terra com arados puxados por bois, os camponeses construíam diques e abriam canais, controlando as cheias do Nilo. Geralmente a colheita acontecia em abril. Os grãos, uma vez separados, eram levados para os celeiros reais e templos. Esses celeiros redistribuíam e armazenavam os grãos.s.s.

Quem não trabalhava na agricultura, dedicava-se a outras tarefas como a produção do mel, a tecelagem, olaria, pesca, artesanato e comércio. Também produziam, o linho e papiro.

O subsolo do Egito era rico em materiais de construção e pedras preciosas. Dos desertos do leste e oeste vinham ametista e o quartzo, enquanto no Sinai eram extraídas as pedras preciosas.

Os contatos comerciais com Biblos e a região Síria / Palestina datam do antigo Império. Importavam a madeira, escassa no Egito, utilizada para fabricação de caixões e móveis. Da Núbia vinha às plumas de avestruz, incenso, peles de leopardo, marfim, ébano e o ouro. Todo o comércio era baseado na troca de bens, já que a moeda surgirá no reino da Lídia, no século VI a.C., segundo Heródoto.

Considerações Finais

A civilização egípcia não é apenas exótica ou misteriosa como narra Hollywood. Ela está viva em nossa sociedade. Desde o século XIX, quando Champolion decifrou os hieróglifos ela se tornou mais presente. Descobrimos que os egípcios possuíam um calendário com 12 meses, 365 dias e o dia em 24 horas.

Algumas palavras da língua portuguesa têm sua origem no Egito como química, papel, girafa entre outras. O papiro, provavelmente “antepassado” do nosso papel. Quem não conhece a expressão o anos de vacas magras, referentes à passagem bíblica de José, confundindo muitas vezes com Imhotep, a religião, a espiritualidade, seus mitos também estão no nosso dia a dia. Alguns estudiosos identificam semelhanças do Hino a Aton, versos escritos por Akhenaton (XVIII Dinastia), com as passagens bíblicas do salmo 104.

Na arquitetura, os obeliscos, adotados por várias nações imperialistas como símbolo do seu poder, como romanos, ingleses ou norte-americanos, a pirâmide de cristal do Louvre.

Na década de 1970, quando a múmia de Ramsés II foi exposta no Museu do Louvre, o presidente da França, Giscard d´Estaing, ministros de Estado, direção do museu, guarda de honra, estavam presentes na recepção, no aeroporto Charles de Gaule. Mais de 3000 mil anos após sua morte, Ramés foi recebido com honras de Chefe de Estado, algo que os governantes da América do Sul não conseguiram, em visita a França durante a década de 1980.

Agradecimentos

Este artigo foi escrito no dia 15/10/2008, das 08:30 às 12:30, como prova escrita, em concurso público na Universidade Federal de Alfenas / MG e aqui está reproduzido a partir do rascunho. As notas e referências foram acrescentadas depois. Agradeço aos professores colegas e amigos Pedro Paulo Abreu Funari, André Leonardo Chevitarese, Margarida Maria de Carvalho, Júlio César Gralha, Rachel dos Santos Funari, Ciro Flamarion Santana Cardoso pelo apoio e auxílio dispensado. A responsabilidade pelas idéias é apenas do autor.

Referências

HISTÓRIA DE UMA NAUFRÁGO OU A ILHA DA SERPENTE. Papiro são Petersburgo número 1115, atualmente em Moscou. Data do século XX a.C.

BAKOS, Margareth. Egptomania no Brasil (séculos XIX e XX). Porto Alegre: Projeto Integrado de Pesquisa do CNPq, 2002.

CARLAN, Cláudio Umpierre. Vinho, sete mil anos de idade. IN: Sete Mil Anos de Vinho. Revista História Viva, Grandes Temas. Edição temática n. 17. São Paulo: Duetto Editorial, 2007.

CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. O Egito Antigo. Coleção Tudo é História. São Paulo: Brasiliense, 1982.

CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Deuses, Túmulos e Ziguratts. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

FUNARI, Rachel dos Santos. O Egito dos Faraós e Sacerdotes. 3ª ed. São Paulo: Atual, 2004.

FUNARI, Rachel dos Santos. Imagens do Antigo Egito. Um estudo de representações históricas. São Paulo: ANNABLUME / UNICAMP, 2006.

GRALHA, Júlio César. Deuses, Faraós e o Poder. Legitimidade e Imagem do Deus Dinástico e do Monarca no Antigo Egito. Rio de Janeiro: Barroso Produções Editoriais, 2002.

HASSAN, F. Memorabilia, archaeological, materiality and national identity in Egypt.IN: MESKELL, L (ed). Archaeology under Fire. London / N. York: Routledge, 1998.

PINSKY, Jaime. As Primeiras Civilizações. São Paulo: Atual, 1987.

PINSKY, Jaime (org.) Cem Textos de História Antiga. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 1988.

VERCOUTTER, Jean. O Egito Antigo. 3ª. Ed. Tradução de Francisco G. Heidemann. São Paulo: DIFEL, 1986.


· Doutor em História Cultural (Antiga) pela Unicamp e Professor-Adjunto de História Antiga da UNIFAL (Universidade Federal de Alfenas / MG), pesquisador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE / UNICAMP) e membro do conselho –consultivo dewww.historiaehistoria.com.br.

[1] Alexandre III ou Alexandre, o Grande (356 a.C – 323 a.C), se dizia descendente de Nectanebo II, último faraó da XXX dinastia. Segundo a lenda, Nectanebo ficou exilado na corte de Filipe II, despertando o interesse de Olímpia, esposa do rei Macedônio. Dessa suposta relação nasceu Alexandre. Em resumo, Alexandre pertenceria à linhagem dos faraós.

[2] Muitos estudiosos consideram etnocêntrica a tradicional frase de Heródoto “O Egito é uma dádiva do Nilo”. Como se o Egito só tivesse chegado a esse estágio, graças ao Nilo. Deixaremos esse debate para uma outra ocasião.

[3] Período conhecido como Neolítico Egípcio (VI ao IV milênio a.C.)

[4] A placa cerimonial votiva conhecida como Paleta de Narmer, atualmente no Museu do Cairo, descreve o processo de unificação do Antigo Egito. No anverso, Narmer, usando a coroa branca (hedjet) do Alto Egito, com Hórus (falcão) observando, agarra um inimigo (de joelhos) pelos cabelos, pronto para ser abatido pela sua clava. Junto a Narmer um escriba parece descrever a cena. No reverso da placa, o conquistador, utilizando as duas coroas, branca e vermelha (deshret, Baixo Egito), acompanhado de um escriba, passando em revista sua tropas. Abaixo, dois animais entrelaçados representa a união das duas terras (GRALHA: 2002, 99).

[5] Userkaf, primeiro faraó dessa dinastia mandou construir um templo em homenagem ao deus-sol. Existem algumas hipóteses que seu pai teria sido um alto sacerdote do templo de Rá em Heliópolis.

[6] Nem todos os faraós, ou dinastias, tiverem a mesma força política.

[7] Como hoje em dia, o chefe do executivo (caso do Presidente da República nos países presidencialistas), são os comandantes das forças armadas.

[8] Erroneamente Tijati é identificado com Vizir, espécie de Primeiro – Ministro. O cargo de Vizir só surge no Egito após a conquista islâmica, como é descrito nas Mil e Uma Noites.

[9] Médico, astrólogo, arquiteto, construtor e idealizador da pirâmide de degraus de Saqqara, sendo o primeiro a identificar as substâncias curativas do mel. Como sua múmia ainda não foi encontrada, serviu de modelo para os diversos filmes da Múmia desde a década de 1930. Seu interprete mais famoso foi o ator inglês Boris Karloff (1887 – 1969) no filme original.

[10] A escravidão não teve no Egito a mesma dimensão de outras sociedades antigas como a greco-romana. Durante a fase expansionista, no Novo Império (1580 – 1200 a.C.), ela foi mais expressiva. Os escravos eram praticamente assemelhados a trabalhadores livres, podendo trabalhar no exército, nos templos e palácios. Poderiam contrair matrimônio com mulheres livres (essas e seus filhos continuariam livres). Bastava uma declaração do senhor perante duas testemunhas e ele estaria judicialmente livre.

[11] A Rainha Ty, esposa de Amenhotep ou Amenófis III (1408 – 1372 a.C.) da XVIII Dinastia, que não era oriunda da nobreza, desempenhou importante papel no governo do marido. Seu nome e participações políticas estão descritos nos Escaravelhos Históricos de Amenhotep III. Sem falarmos em Hatshepsu (1505 – 1484 a.C.) regente durante a menoridade de Tutmés III.

Fonte: