12.8.09

Modernos contra Antigos, a querela do século XVII

Modernos contra Antigos, a querela do século XVII

Aparentemente foi uma controvérsia entre cortesãos. Intelectuais franceses pertencentes à Academia de Letras debateram, por vezes asperamente, se deviam exaltar o rei Luis XIV, o rei-sol, recorrendo às citações dos clássicos do mundo greco-romano ou se deveriam inspirar-se em obras mais próximas, da história do cristianismo ou do presente. Esta discussão - conhecida como a Querela dos Antigos e dos Modernos - iniciada em Paris no ano de 1687, abriu caminho para a crescente valorização do Moderno como oposto ao Antigo.

A nostalgia do Antigo


Quase toda literatura clássica, poética ou filosófica, valorizava o Antigo, os bons tempos que já haviam passado, a Idade do Ouro na qual somente os heróis e alguns afortunados viveram, cabendo aos homens e mulheres do presente condenar-se aos dissabores da Idade do Ferro. Tão forte era, e ainda é, este sentimento de que se viveu melhor bem antes do que no presente, que ele é um componente permanente da estrutura psicológica dos homens e das mulheres das mais diversas culturas.


Tanto assim, que a maior parte do pensamente filosófico, religioso e político sempre visou tentar fazer o passado renascer. Para Hesíodo, por exemplo, o estudo das idades mostravam a decadência do Homem ; para o cristão tratava-se de recuperar o passado adâmico, de retornar ao Paraíso (perdido devido à sedução da serpente); durante o Renascimento Italiano o que importava era restaurar os padrões estéticos de Fídias, a veemência e correção do latim de Cícero e o esplendor do Trono Romano caído; na doutrina do democrata Jean-Jacques Rousseau devíamos reativar o convívio com a natureza em busca de uma pureza primitiva extraviada há séculos em meio à falsidade da civilização; na historiografia iluminista de Edward Gibbon a destruição do Império Romano representou a desgraça de um longo período dominado pelo papado e pelos bárbaros, época do atraso, ignorância e fanatismo, legando ao presente o predomínio do Mal; para Karl Marx o objetivo final do movimento socialista, ao lutar para superar o capitalismo, era restabelecer a fraternidade humana original que existira no pretérito remoto, época do Comunismo Primitivo quando não havia propriedade privada nem a desigualdade social.


Ainda que no extremo oposto ideológico de Marx, o filósofo Martin Heidegger seguiu-lhe mais ou menos na mesma linha enaltecendo ‘ o homem do bosque’, o camponês e o aldeão como lídimos representantes do ‘sangue e da terra’ da antiga Germânia. Gente que ainda vivia sem eletricidade e cuja sabedoria ancestral, no entender dele, era bem superior a do homem urbano


Quase todos eles se enquadram no que Arnold Toynbee denominou como ‘salvadores da máquina do tempo’(in
Estúdio de História). Nada melhor representava esta atitude de desvalorização do agora frente ao passado do que o famoso e tão citado dito do teólogo medieval Bernard de Chartes:‘nous sommes des nains juchés sur des épaules de géant‘(« Nós somos como anões presos nas costas do gigante »)


Portanto, até recentemente, para qual lado se voltasse predominava o discurso nostálgico e antimoderno que sempre fazia a exaltação da idade perdida. (*)


Exatamente contra tal atitude um tanto derrotista e pessimista frente às conquistas do presente é que devemos entender o papel que o escritor Charles Perrault desempenhou ao desencadear a celebre Querela dos Antigos e dos Modernos, quando enviou um poema seu a Acadêmica Francesa de Letras, em 1687.


(*) Como exemplo poético desta ‘perda do homem’ basta um dos versos de Hesíodo exaltando a Idade do Ouro:


Primeiro de ouro a raça dos homens mortais

criaram os imortais, que mantêm olímpias moradas.

Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava

como deuses viviam, tendo despreocupado coração,

apartados, longe de penas e misérias; nem temível

velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos

alegravam-se em festins, os males todos afastados,

morriam como por sono tomados; todos os bens eram

para eles: espontânea a terra nutriz fruto

trazia abundante e generoso e eles, contentes,

tranqüilos nutriam-se de seus pródigos bens.

[Hesíodo ‘ Os trabalhos e os dias’.Op. 109-19] (tradução é de Mary C.N. Lafer)

Em favor da liberdade

Luís XIV visitando a Academia de Letras (tela de Henri Testelin, 1667)
Na França, os primeiros reclamos a favor da liberdade de expressão da parte dos homens-de-letras ocorreu no reino de Luis XIII (1610-1643). No de Luis XIV, coube a Charles Perrault, excluindo-se de polemizar sobre religião e política, reivindicar o direito de escrever sobre o que quisesse. Em parte, isto se deveu à melhoria do status dos escritores frente à Coroa (reforçado pela fundação da Academia Real de Letras apoiada pelo cardeal Richelieu em 1635). Como pano de fundo, pairava naqueles primeiros decênios do que os franceses vieram a chamar de Idade Clássica, o dito emancipador de Descartes que associava a existência ao pensamento Cogito ergo sum (eu penso, logo existo!).


O filósofo abrira caminho para a desconfiança com aquilo que passava por conhecimento baseado apenas no parecer de uma autoridade (a de Aristóteles, por exemplo) e não pela prova empírica. Nisto foi acompanhado pelo outro notável nome do pensamento francês da Era Clássica Blaise Pascal que se aliou a Descartes no sentido de esterilizara autoridade dos antigos superando-a pela Soberania da Razão.

Estava lançado o primado da dúvida – a dúvida cartesiana - sobre o legado da ciência antiga. Como exemplo desta desqualificação do que vinha de tempos anteriores basta o que ele escreveu certa vez: ‘... quando dedicamos tempo demais a viajar, acabamos nos tornando estrangeiros em nosso próprio país, de modo que aquele que é por demais curioso das coisas do passado, só valorizando o que já foi, na maioria das vezes torna-se muito ignorante das coisas presentes’.


Um pouco anterior a ele, Galileu Galilei (in Diálogo sobre os dois grandes sistemas do mundo, de 1632) já colocara em suspeição as contribuições de Aristóteles e de Ptolomeu à cosmologia e, por conseqüência, ao que era tido como exato para os gregos e alexandrinos. No adentrar do século XVII, o clima intelectual mostrou-se fértil aos questionamentos. Abrira-se um cenário favorável a desconfiar-se da suma sapiência e da excelência da obras dos antigos se comparada a dos modernos.


Charles Perrault inaugura a querela

La belle Antiquité fut toujours vénérable ;

Mais je ne crus jamais qu’elle fût adorable.

Je voy les Anciens sans plier les genoux,

Ils sont grands, il est vray, mais hommes comme nous ;

Et l’on peut comparer sans craindre d’estre injuste

Le Siècle de LOUIS au beau Siècle d’Auguste

“A bela Antiguidade foi sempre venerável/ Mas não creio jamais ter sido ela adorável/Admiro os antigos sem me por de joelhos/Eles sãos grandes, é verdade, mas homens como nós/ Sem provocar uma injustiça podemos comparar o Século de Luís ao belo Século de Augusto.”


(Charles Perrault, Parallèle des anciens et des modernes , 1688)

Para enaltecer ainda mais o império do Rei-sol, o escritor Charles Perrault (famoso autor de contos de fadas tais como a ‘Cinderela’, ‘O Gato de Botas’, o ‘Chapeuzinho Vermelho’, e de tantas outra mais) , decidiu entregar ao padre Lavau para leitura a ser feita na seção do dia 27 de janeiro de 1687 um curto poema dedicado à Sua Majestade na seção da Academia Francesa de Letras cujo título era Le Siècle de Louis le Grand.


Nele assegurou que não via nada no tempo de Augusto, de mais de mil e seiscentos anos atrás, que fosse tão melhor do que ocorria na França sob o reinado do Rei Sol. Para qualquer lado que se olhasse, para qualquer oficio que se atentasse, observou ele irônico, nada indicava que os escritores, os cientistas e artistas seus contemporâneos fossem ‘inferiores’ a Virgilio, a Ovídio, ou a Horácio. O fato de serem autores ‘veneráveis’ necessariamente não significava que fossem melhores do que Racine ou Corneille. Dando seguimento a polêmica, Perrault elencou uma série de aspectos que asseguravam a soberania do presente sobre o passado:

Os argumentos pró-modernos

Charles Perrault, defensor dos Modernos (1628-1703)
- Debilidades dos Antigos; muitos autores antigos não produziam somente excelências. Havia muita coisa ruim e tediosa na obra de Platão ou na de Píndaro. Não só isto, as novas descobertas promovidas pela utilização do telescópio e do microscópio abriam as portas para milhares de outros mundos totalmente desconhecidos, tornando ridícula a física de Aristóteles (até então considerada a suprema autoridade nos meios culturas e científicos da época).

- Crítica ao Principio de Autoridade: os sábios devem libertar-se do que passava por ‘ autoridade dos antigos’ que, em inúmeras ocasiões ‘ cometeram erros grosseiros’. Devem, isto sim, estudar a física, a medicina e a astronomia diretamente na natureza e não nos livros de Aristóteles. Hipócrates ou Ptolomeu. Os artistas, por sua parte, estão obrigados a conquistar sua independência (respeitando, todavia, as questões religiosas e políticas), para assim permitir que a razão possa agir soberana e fazer uso dos seus direitos.


- a Idéia do Progresso – os antigos eram destituídos da idéias do progresso. Geralmente acreditavam que a Era de Ouro pertencera ao passado remoto e que o presente era decadente. Com os modernos a situação se alterou visto que se consideram a parte mais avançada de um processo de constante aperfeiçoamento do homem e da sociedade. O simples fatos dos artistas e cientistas pertencerem a uma geração a mais do que a dos antigos já os coloca numa posição de ampla superioridade frente aqueles a quem La Fontaine denominou de ‘deuses do Parnaso’, isto é os pensadores clássicos. A conclusão lógica era que até com uma obra medíocre de alguém do presente valeria bem mais do que a dos homens da antiguidade.


- Progresso Técnico – Os modernos são infinitamente melhores do que os antigos no domínio das Regras da Arte devido ao aperfeiçoamento técnico. A passagem dos séculos proporcionou avanços extraordinários tanto nas artes (como na pintura, por exemplo) como na literatura, fazendo do gênio moderno alguém bem mais dotado do que seus congêneres de outros tempos, assim sendo a superioridade dos modernos se estende a todos os campos.


A vitória dos partidários do Moderno não foi total, mas evidentemente que ampliou a simpatia de todos pelos Tempos Contemporâneos. Hoje o discurso nostálgico, a busca pela restauração da Arcádia feliz, praticamente desapareceu do cenário intelectual. A atual, como nenhuma outra geração anterior, ainda que reconhecendo os imensos problemas que afligem a humanidade, é a principal celebrante do presente.

Bibliografia

GILLOT, Hubert. 1968. La Querelle des Anciens et des Modernes en France. Genebra: Slatikine

NASCIMENTO, Roberta Andrade - GÊNERO CLÁSSICO, PROCESSO MODERNO: O USO DO PARALELO POR CHARLES PERRAULT, in Terra Roxa e outras terras, Revista de Estudos Literários.

PERRAULT, Charles.. Parallèle des Anciens et des Modernes en ce qui regarde les arts et les sciences.. Munique : Eidos Verlag. 1964
__________________..
Le Siècle de Louis le Grand.. Munique: Eidos Verlag

Fonte:História por Voltaire Schilling