28.8.09

Lei da Anistia ajudou em recuperação moral, diz brasileiro preso na ditadura

Relatos de brasileiros que foram anistiados em 1979.
Anistia foi mais ampla do que era esperado, diz exilado.


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O presidente João Batista Oliveira Figueiredo assina o projeto de anistia do governo, em junho de 1979 (Foto: Adão Nascimento/AE)

Há 30 anos, quando foi sancionada, a Lei da Anistia permitiu a volta para casa de muitos brasileiros que viviam no exterior, banidos ou exilados pela ditadura militar. Embora já tivessem com suas vidas estabelecidas em outro país, alguns ainda sentiam falta de sua pátria e nunca abandonaram a esperança. Há, entretanto, quem nunca mais conseguiu se sentir em casa no Brasil.

Mesmo quem não chegou a ser exilado ou banido diz que a anistia serviu para que deixasse de se sentir um estranho no ninho. “Senti-me moralmente recuperado como pessoa depois da anistia. A legislação reestabeleceu minha auto-estima, possibilitou minha recuperação moral. Eu me sentia excluído, o olhar da sociedade sobre você era o ponto”, afirma o advogado Marcio Campos. Ele foi preso em 1975 e já estava em liberdade quando a lei foi sancionada, mas ainda se sentia moralmente perseguido.

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Movimentação de policiais, repórteres e curiosos na Rua Conde de Baependi, bairro de Laranjeiras, Rio, local onde ocorreu o seqüestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, em 1970 (Foto: Arquivo/Agência Estado)

Vitória

Parte do grupo de presos que foram trocados pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher – seqüestrado em dezembro de 1970 –, o presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) à época, Jean Marc von der Weid, foi banido do país e chegou ao Chile em 14 de janeiro de 1971.

Após quase nove anos fora do Brasil, parte deles “mundo afora” em atividades políticas contra a ditadura, alguns no exílio em Paris, Weid voltou ao Brasil em 8 de outubro de 1979, aos 33 anos. Pisou no chão do Rio, vindo do Galeão, com um sentimento de “vitória”.

“A gente não tinha essa expectativa de que fosse conseguir [a anistia]. Na verdade, pelos nossos planos e pela avaliação política no exterior, a gente achava que ia levar dois ou três anos até conseguir conquistar essa Anistia”, relata. Segundo ele, o processo foi acelerado com manifestações que “destamparam panela de pressão”.

Parte do sentimento de “vitória”, citado por Weid, veio pela amplitude da lei. “Essa anistia foi muito mais ampla do que militares tinham intenção de dar. (...) Queriam fazer uma coisa bem mais rasteirinha.”

Hoje, 30 anos depois da lei, ele comanda uma organização não-governamental de agroecologia e agricultura familiar, a AS-PTA. Ele avalia que o país não passou por uma “mudança radical”.

“Foram arrancando concessões aos poucos. Do ponto de vista do processo democrático, acho que houve um avanço espetacular. Ganhamos a legalidade plena de todo tipo de opinião, de partido político, de forma de organização, etc . [A anistia foi] Uma fase quase inusitada na história política brasileira, teve poucos momentos na história do Brasil em que tinha tanta liberdade de expressão sem restrição”, diz. “Do ponto de vista das mudanças sociais ainda estamos muito longe. A democracia avançou, mas as transformações sociais avançaram pouco.”

Medo, consciência e luta

Na época jornalista e com 27 anos, Luiz Alberto Sanz foi banido do país no mesmo grupo de Weid, à meia-noite do dia 14 de janeiro de 1971. “O medo convive com quem luta. Quem é consciente sente medo”, diz. Ao voltar para solo brasileiro em dezembro de 1979, à época da Lei da Anistia, ele contou ter sentido o mesmo medo. “Nós queríamos voltar, sempre acompanhamos o desenrolar do avanço democrático no país mesmo de longe, mas sabíamos que não conhecíamos mais o Brasil.”


A primeira parada de Sanz foi o Chile. “Quase que imediatamente consegui trabalho porque tinha um amigo refugiado que estava lá e me abrigou”, conta. Mas a rotina sofreu novo impacto e a corrida por outro lar recomeçou após o golpe militar que o então governo do Chile sofreu em 1973. Pouco mais de dois anos depois de chegar ao país latino, contando sempre com a ajuda de amigos, Sanz e a mulher pegavam as malas e partiam para a Suécia, onde conseguiram entrar oficialmente naquele mesmo ano.

“Chegamos a pedir asilo na Argentina e me lembro que a embaixada estava lotada. Entre brasileiros e gente de outras nacionalidades, umas 700 pessoas pediam asilo político. Mas o país não queria dar”, conta.

Sanz relembra um episódio que reforçou a tensão daquele momento. Diz que alguns pulavam o muro para entrar na embaixada argentina, mas ele e sua esposa não podiam fazer o mesmo. “Nós não podíamos fazer isso porque nosso filho havia acabado de nascer. Não dava para pular um muro com um bebezinho, entramos porque um amigo nos ajudou”. Sem conseguir o exílio na Argentina, o casal ficou entre ir para Cuba, Suécia ou Argélia e optou por entrar oficialmente em terreno sueco. “Era mais fácil manter contato com o Brasil”, afirma Sanz.

A volta ao Brasil aconteceu pouco depois de começar a vigorar a Lei da Anistia. “Eu já realizava filmes para a TV sueca e para o cinema. Mas minha esposa queria voltar, mais do que eu”, conta. “Esperança de voltar eu sempre tive.”

Outro motivo importante eram os dois filhos de seu primeiro casamento – na época do banimento com dois e três anos de idade – que ficaram no país. “Quando voltei a vê-los no Brasil já eram pré-adolescentes. Perdi a melhor fase, quando se constitui a essência de uma pessoa. E eu perdi esse momento, infelizmente.”

‘Um estranho’

O professor aposentado Lucio Brito também encarou o exílio entre outubro de 1974 e o final do ano de 1981, na Alemanha. “Fui preso em outubro de 70. Eu era de confiança da executiva do PCdoB. [..] Mas alguém disse que eu era terrorista, fui preso e tratado como tal. Perdi 25 quilos e tive que fazer tratamento neurológico durante três anos e meio após os meses que fiquei preso em Guararema, no Espírito Santo”, relata.

“Fui salvo no Hospital Central do Exército por um habeas corpus do Sobral Pinto [advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto], que era um humanista. Uma assistente dele teria me visto no hospital, nem sei os detalhes. Fui salvo por um milagre”, conta.

Mesmo depois de absolvido por falta de provas em 72, Lucio diz que não viveu em paz após a prisão, continuou a ser perseguido até sair do Brasil em 1974. Na época, o professor tinha 29 anos e partiu com a família – esposa e dois filhos de dois e quatro anos de idade – para a Europa.

A família voltou logo no ano da anistia, em 1979, mas Lucio só fez o mesmo em 1981 – após concluir doutorado na área de economia e ciências sociais. Embora diga não guardar rancores e que foi importante – sobretudo para a sua família – a volta para o Brasil, ele nunca mais se sentiu a vontade.

“Ainda sou um estranho nesse país até hoje”, diz o professor aposentado. “Não tenho mágoas, mas apenas um resíduo de intolerância em relação aos ‘dedos duros’ da época”, diz ele, que afirma ter sido citado em dez processos em funções de delações.


Fonte: G1