História e geografia são frequentemente lembradas como áreas muito próximas, em especial quando se abordam assuntos como industrialização, urbanização e globalização. As duas disciplinas também são responsáveis por apresentar aos jovens a organização do homem em sociedade e o clássico problema da relação entre liberdade e condicionamento das ações. Questões já presentes no horizonte da primeira geração dos Annales, movimento historiográfico francês do início do século XX cuja “idade de ouro” se confunde com o apogeu da simbiose entre história e geografia.
Fugindo da importância positivista atribuída aos documentos, o historiador Lucien Febvre (1878 - 1956) foi buscar na geografia de Vidal de La Blache (1845 – 1918) as noções que permitiram à História incorporar a noção de estrutura como um fator de explicação dos fenômenos humanos. Fundador da escola conhecida como “possibilismo”, La Blache entendia o meio natural como um mero fornecedor de possibilidades. Assim, a vida dos grupos sociais não seria um resultado inevitável de condições ambientais, como queria o determinismo geográfico, mas de um “acervo de técnicas, hábitos, usos e costumes, que lhe permitiriam utilizar os recursos naturais disponíveis”. Não havia necessidades, apenas possibilidades.
Febvre foi um simpatizante de primeira hora desta visão, que se harmonizava com sua noção de historicidade da cultura e das mentalidades. Um de seus exemplos favoritos diz que um rio pode ser tratado por uma sociedade como uma barreira e, por outra, como um meio de transporte. Mesmo as atitudes religiosas aí se incluíam, pois Febvre não se esqueceu de discutir a importância dos rios nas rotas dos peregrinos na Idade Média e Moderna.
Herdeiro dos Annales, o historiador Fernand Braudel (1902 - 1985) levou adiante este projeto com o livro “O mediterrâneo e o mundo mediterrânico à época de Filipe II”. No título, os termos estão propositadamente invertidos. O mediterrâneo é o sujeito da história, restando ao monarca espanhol um papel secundário. O objetivo é demonstrar que todas as características geográficas são parte da história. Por exemplo, as montanhas como fato geográfico dão lugar a uma discussão sobre o conservadorismo dos montanheses ou as barreiras sócio-culturais que separam os homens da montanha e os da planície.
Braudel idealizou ainda uma tipologia dos tempos históricos com ritmos de evolução distintos, tal qual um edifício de três pisos. A parte mais alta seria o tempo das conjunturas, dos acontecimentos, da política e dos homens. A seguir, o tempo das estruturas, da formação da sociedade, da economia e dos impérios. Na base, o ritmo mais lento, uma “história quase imóvel”, chamada por Braudel de “geo-história”. Este é o tempo da civilização mediterrânica, do seu berço greco-romano à Europa da renascença e dos Estados nacionais. Braudel consagra ao “tempo geográfico”, com sua longuíssima duração, a primazia na hierarquia das causas.
Casamento doutrinário
No Brasil, a aproximação entre história e geografia reuniu outros ingredientes. A criação da Universidade do Brasil (atual UFRJ) em 1937 pretendia implantar em todo o país um padrão de ensino superior e estabelecer um sistema destinado a controlar sua qualidade. A exemplo da Universidade de São Paulo, criada três anos antes, a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil reunia as duas disciplinas em um único curso de “História e Geografia”. O objetivo inicial era preparar os professores para o exercício do magistério, relegando à pesquisa importância secundária.
A qualificação superior dos professores passava por um objetivo estratégico do Estado Novo: repensar o modelo pedagógico das duas disciplinas na escola. Juntas, elas deveriam incutir sentimentos patrióticos e virtudes cívicas nos alunos, tornando-os cidadãos ordeiros, conforme estabelecia o modelo pedagógico do Estado Novo. A centralização política do novo regime passava pelo enfraquecimento e cooptação das oligarquias locais. O ensino de história e geografia deveria prestar auxílio a esta missão, desestabilizando os pilares de sustentação simbólica dessas elites rurais. Assim, a história deveria reproduzir as narrativas da memória oficial, destacando a moral dos grandes personagens e silenciando conflitos sociais e movimentos separatistas. Já a geografia deveria estabelecer uma nova pedagogia do espaço, que eliminasse a referência aos estados como suporte da identidade territorial, consagrando em seu lugar a noção de macrorregião.
Não por acaso, a divisão do Brasil em macrorregiões que conhecemos hoje (norte, nordeste, sudeste, sul e centro-oeste) foi elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística neste contexto político, sendo oficializada em janeiro de 1942. O próprio Instituto editou várias publicações e promoveu cursos de aperfeiçoamento, destinados a atualizar os professores sobre os modos de utilização dos mapas didáticos, que traziam a noção da região como referência fundamental.
A composição do currículo da antiga disciplina compreendia com profundidade as metodologias das duas disciplinas e uma considerável iniciação nas ciências sociais. Segundo o geógrafo e professor emérito da USP, Aziz Ab´Sáber, solicitava-se muito dos alunos, já no vestibular: “todas as histórias, todas as geografias, língua portuguesa, princípios de ciências sociais, elementos de cartografia e desenho. Mas, ao se ingressar no curso, a tudo isso acrescentava-se antropologia cultural, etnografia, tupi-guarani e elementos de geologia. De um lado, aprendia-se a problemática dos contatos culturais e étnicos, em todas as suas conseqüências. E, de outro, adentrava-se no conhecimento da estrutura dos terrenos e idade das formações rochosas”.
A abrangência impressiona pela distância dos padrões atuais, em que uma matéria chamada “geo-história” avulta na grade de alguns cursos como um solitário vestígio desse passado remoto. Com a formação da primeira geração de historiadores e geógrafos pós-graduados no exterior, aumentou a pressão em favor da separação dos cursos, uma demanda que atendia às exigências de diversificação do perfil profissional. Em meados dos anos 1950, os dois cursos foram separados na Universidade do Brasil e de São Paulo. Era o início de um processo de quase-divórcio, acelerado pela criação dos programas de mestrado e doutorado no país, já no final da década de 1960. Historiadores se aproximariam cada vez mais da antropologia e da sociologia, além de campos antes pouco freqüentados, como a lingüística. Geógrafos se identificariam com áreas mais ligadas ao planejamento e às políticas públicas, como ambientalistas, ecólogos e urbanistas.
Quando pensamos nas dificuldades que hoje enfrentam os historiadores para manusear um mapa, é necessário refletir sobre o desaparecimento de alguns fundamentos de nossa profissão junto com a velha guarda dos historiadores universitários. Retornar às origens não é uma saída possível nem desejável. No entanto, é preciso alertar contra o erro de abraçar todas as novidades e, mesmo sem querer, ignorar o passado de nossa atividade.