22.8.09

Goethe e as duas almas de Fausto

O cientista, o homem sábio, não é um homem comum. Parte dele é como um qualquer, com desejos e sensações, mas a outra é bem mais ambiciosa: almeja o saber. Quer o conhecimento das coisas do mundo. Exatamente sobre isto é que o alquimista Fausto, frustrado, se exalta, pois sua inteligência quer abarcar o universo. Esta é a essência da tragédia do herói de Goethe, cuja primeira edição surgiu em 1808.


Confraternizando com o povo


Saindo do laboratório para uma caminhada na sua cidadezinha, o sábio doutor Fausto e seu assistente Wagner deparam-se com uma multidão nas ruas. É o primeiro dia da primavera e todos se manifestam felizes ao voltar ao ar livre depois de terem ficado por longos meses presos em suas casas e fazendolas açoitados pelo rigoroso inverno.


Em bando, jovens aprendizes misturam-se às moças domésticas em dúvida para onde se dirigirão por primeiro. Ao moinho ou ao pavilhão de caça? Outro, mais audaz propõe até uma incursão a uma vila vizinha onde a cerveja é boa, as raparigas são mais bonitas e até uma boa briga poderá se arrumar. Ricos e remediados, homens e mulheres, caem na algazarra, enquanto uma garota burguesa censura os rapazes correrem atrás das pobretonas.


A eles se juntam os camponeses vindos das cercanias felizes. Trazem jarros de cerveja e levantam brindes a todos. Logo, em meio à ruidosa alegria, identificam o doutor Fausto e pedem que ele tome um gole e saúde o bom tempo recomposto e a beleza dos dias retomados. Lembram que ele atuou com desprendimento por ocasião da peste negra que devastou a região. Então ainda jovem médico, junto com seu famoso pai, disseram os camponeses, os dois doutores salvaram muitos arriscando a própria vida tentando dar cura ou sepultando os pestíferos.

Em meio a eles, surge um mendigo implorando caridade, pois ‘quem dá sente a alma satisfeita’. Vozes se cruzam. Um cidadão, em regozijo, vibra por as guerras estarem sendo travadas bem longe, lá para os lados da Turquia ou mais adiante ainda, deixando os vilarejos em paz.
Outro, ainda, lamenta a inoperância do burgomestre que pouco faz pela cidade a não ser aumentar os tributos de todos. Uma velha alcoviteira tenta angariar para o seu redil duas belas jovens que a repilam por não gostar de serem vistas ao lado de uma bruxa, além delas acreditarem já estarem destinadas para algum pretendente no futuro próximo. Em seguida, um soldado exulta com as possibilidades de novas conquistas de ‘castelos e donzelas’, que cairão para ele como um prêmio nas campanhas que se seguirão na primavera.


Fausto, emocionado, não se contem frente ao burburinho e a exuberância da vida que a chegada da boa estação trás consigo:


‘Descongelou arroio e fontes/o vivifico olhar da primavera/ Verde esperança o vale gera; debilitado, em rudes montes/o velho inverno se encarcera/ de lá, a fugir, tão só envia de grãos de gelo inócuas rajadas sobre as verdejantes valadas/Mas o Sol toda alvura repudia/Em tudo há formação e vida ativa/Tudo quer alentar em cores/Se na várzea há falta de flores/Toma, ao invés, gente festiva/ (...)

Cada um procura o Sol e a Luz/Festejam a ressurreição de Jesus/Porque eles mesmos estão redivivos/ (...)

Da aldeia já ouço o canto e o riso/Do povo é isto o paraíso/De cada um soa alegre o apelo: ‘Aqui sou gente, aqui posso sê-lo!’

O aprendiz censura o Mestre

Quem não gosta desta aproximação do sábio com o povo é Wagner, o seu aprendiz. Afirma que um grande homem como Fausto não deve se misturar com a plebe que o cerca. O aprendiz é um pitagórico para quem a ciência deve manter-se à distância do povo ‘brusco e tosco’, e o Mestre afastado de todos. Ainda que tal aproximação revele bons sentimentos da parte do sábio, bem pouco ele pode auferir: nem em honra nem em proveito. O pensador deve mostrar-se como um pai distante, pois senão o transformam em ‘hóstia sagrada’.


É então que Fausto lhe confessa o fracasso na luta contra o mal que assolara o lugarejo e seus arredores em tempos idos. Revelou-se totalmente inútil o seu pai meter-se no laboratório e com muitos ajudantes lançar-se a preparar fórmulas e remédios mágicos. Na verdade, eles não funcionaram. O Pai Celestial também não se comovera com o sofrimento dos aldeões e pouco fizera para ajudá-lo a descobrir o elixir da cura. Todo o trabalho deles fora em vão, senão que pior ainda. O Mestre diz então a Wagner que ele de fato dera ‘a milhares o veneno’. Os pobres camponeses, uns ignorantes, não se deram conta de que muitos deles morreram das receitas de Fausto e do seu pai e não da doença. Em vista da terrível confissão, o aprendiz procura minimizar a responsabilidade do então jovem doutor dizendo-lhe que ele não fizera por mal visto que apenas seguira as experiências malfadadas do pai.

Em busca do saber

Num monólogo anterior, Fausto lamentou que seus estudos nada rendessem. Abrira-se à filosofia, à medicina, à jurisprudência, e mesmo à teologia, e de bem pouco aquilo tudo servira. Por dez anos eles e seus discípulos enfiados em pesquisas só ficaram é com a ‘ mente amargurada’. ‘Nem bens nem ouro’ possuía. Sequer esplendor e fama alcançara sendo que a teimosa natureza se negava a mostrar seus mistérios a ele. Por isso ele recorria à magia.


Talvez, a força de tanto tentar, o império do sobrenatural lhe facilitasse a passagem às coisas ocultas. Como ele gostaria de saber algo real e profundamente. Implorava para que alguma luz celeste penetrasse no seu quarto gótico e o compensasse daquela existência infeliz de sábio fracassado que levava cercado por pilhas de livros comidos por traças, por resíduos sujos das experiências mal sucedidas, de vidros, de latas, de coisas velhas cheias de trastes. Continuava na mesma, ignorando o que mais fazia falta e o que tinha conhecimento era de pouca utilidade.
O imundo era o seu mundo.

O desejo de ter asas

Olhando o sol se pondo no horizonte, Fausto então, continuando o diálogo com o aprendiz, manifesta a ambição de ter asas para poder acompanhar a grande estrela em seu trajeto. Ver, lá das alturas, ele abrasando outras terras, contemplar o universo tranqüilo, voltar-se para os riachos de prata que correm aqui em baixo, embevecer-se com os cumes e o vale imerso em paz, mais adiante o mar, as quentes baias, perseguindo sempre o ‘imortal farol’, e deste modo testemunhar o momento em que a treva se separa da luz, e ir assim seguindo sempre para o alto e sempre para frente.


Bem que o seu manto de doutor alquimista poderia, por magia, se transformar nas cobiçadas asas que lhe permitiriam vagar pelos céus. Todavia, ele se sente dividido. Se uma das partes da sua alma deseja que ele se livre dos freios que o prendem a terra, a outra é mais singela, liga-o à matéria, ao dia-a-dia do homem comum que ele não é e que jamais vai ser. Mas o que mesmo deseja é que os deuses responsáveis pelo trânsito entre o céu e a terra o arrebatassem e o conduzissem a estranhos climas, a ver coisas jamais vistas. Um manto assim ele não o trocaria por veste de rei nenhum.

O cão negro



História por Voltaire Schilling

O doutor Fausto assina o contrato com Mefistófeles

Fonte:
É então, levantando-se para seguirem para casa, que Fausto e Wagner notam que estavam sendo seguidos por um cão negro. Observam que a fera faz estranhas riscas no chão a medida que se aproximava deles. O aprendiz achava que se tratava de um pobre animal perdido do dono.


Fausto faz sinais para que o cão se aproxime deles. Já estão na porta da casa. Entram, e o cão negro os segue. Era Mefistófeles, o representante das trevas que a distância escutara tudo o que Fausto dissera. Vinha encarregado pelo supremo Demônio a propor um pacto com o doutor. Em pouco tempo o Mestre assinaria um contrato firmado com o seu próprio sangue, dando a sua alma em troca da promessa da sabedoria eterna que o príncipe das trevas lhe ofereceria. Então ali, naquele laboratório abarrotado de frascos e malogros, Fausto deu começo a sua voluntária perdição.

Bibliografia

Citati, Pietro – Goethe. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Goethe – Fausto. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Villa Rica Editoras, 1991.