A Normandia, região situada no noroeste da costa atlântica da França, graças ao recorte das suas margens, por muitos anos serviu como uma plataforma natural. Dela se lançaram pelo Oceano, desde o fim da Idade Média, incontáveis navegadores em busca das correntes e ventos que os levassem a Cathai, no outro lado do mundo. A Normandia histórica
Situada ao redor do estuário do Rio Sena, quando ele desemboca no oceano, a Normandia serviu como base para as mais diversas operações navais. Bem antes dos Descobrimentos, ainda no tempo da ocupação romana, foi dela, mais precisamente do atual porto de Boulogne (então Portus Itius), que as duas legiões de Júlio César, num total de dez mil soldados, embarcaram para fazer a primeira incursão nas ilhas da Bretanha em 55-54 a .C. .Jacques Cartier desembarca em Quebec, em 1542.
Trajeto idêntico percorrido quase um século depois pelo general romano Aulus Plautius que conquistou o arquipélago dos bretões em caráter definitivo, integrando-o ao domínio dos Césares.
Por motivos geopolíticos, era impossível para os romanos manter a Armórica (como parte daquela região então era então denominada), sem romper com os laços que mantinham unidos os bretões de ambos os lados do Canal da Mancha (então denominada pelo geógrafo Ptolomeu como "Oceanus Britannicus").
Quando o grande império de Roma por fim se desfez no século V, a região foi incorporada ao reino dos Francos. Carlos o simples, monarca carolíngio, impossibilitado de defende-la contra as incursões predadoras dos povos vindos do mar, cedeu-a ao chefe dos seus inimigos. Os bárbaros vindos do norte, os normandos, saquearam Rouen por seis vezes em 861, e , entre 885-886, foi a vez de Paris ver-se sitiada. Impotente, o rei aceitou entregá-la ao líder deles chamado como Rollon (que veio a ser o primeiro conde de Rouen, sendo que seus sucessores se tornaram duques da Normandia). Pelo tratado de 911, firmado em Saint-Clair-sur-Epte, o rei da França abdicou da sua autoridade sobre a região, dali em diante denominada de Normandia (terra dos normandos).
Um dos principais desdobramentos da formação do ducado da Normandia foi que um dos seus senhores, Guilherme o bastardo, duque desde os sete anos de idade, completados em 1035, a pretexto de reclamar direitos de sucessão ao trono dos bretões, decidiu invadir a Inglaterra em 1066.
Partindo de Saint-Pierre-sur-Dives com 900 navios e 12 mil homens, ele bateu o rei Haroldo na famosa batalha de Hastings, travada em outubro de 1066. Dali abriu caminho para que, aos poucos, ele e seus guerreiros normandos viessem a controlar grande parte da East Anglia. Guilherme, desde então conhecido como o Conquistador, foi sagrado rei da Inglaterra na Abadia de Westminster no natal daquele ano mesmo.
O fato de um duque da Normandia sagrar-se soberano da Inglaterra teve conseqüências duradouras sobre a história dos dois países (ainda que o rei Felipe Augusto tivesse reintegrado o ducado depois de ter tomado o Chateau-Gaillard em 1204, retomando-a das mãos do rei inglês João-sem-terra).
A Guerra dos Cem Anos
Guilherme navega para conquistar a Inglaterra (tapeçaria de Bayeux) |
A Normandia então, com menos de 30 mil km², virou objeto de um cabo-de-guerra. De um lado era puxada por Londres e do outro por Paris. Durante mais de cem anos (de 1337 a 1453) ela foi devastada pelas batalhas e pelo saque das propriedades,vilas e cidades, entregue ao desmando dos príncipes e barões de ambos os lados do canal da Mancha. A situação somente começou a mudar com o surgimento da jovem Joana D´Arc (heroína queimada na fogueira pelos ingleses em Rouen, em 1431, acusada de heresia), que inoculou nos franceses de todas as partes, fossem normandos ou não, um profundo sentimento nacionalista e antibritânico terminou definindo o destino do reino.
Depois da batalha de Castillon, travada em 1453, a Normandia voltou então, desta feita em caráter definitivo, a fazer parte do corpo político da França. Ainda assim, o ducado estava totalmente exaurido.
Somente com a paz que então se seguiu é que seus principais portos, como Dieppe, Rouen, Hanfleur e Chebourg, deram sinais de vida. Retomaram então suas históricas ligações comerciais com a região de Flandres, da Holanda e mesmo da Inglaterra. Até mesmo o distante continente africano começou a ser desbravado pelos marinheiros de Dieppe (hoje se pode ver no castelo da cidade, os objetos de marfim esculpidos pelos hábeis artesãos locais com matéria-prima trazida da Costa da Mina).
Jean Angot, o armador do rei
Francisco I (1494-1547) e seu protegido Jean Angot |
Ficou famoso o comentário dele afirmando que gostaria de ver qual era a cláusula do testamento de Adão que o excluía do direito de navegar pelos oceanos e mares do mundo. Com sua posição de desafio aos príncipes ibéricos, Francisco I marcou um tento no direito colonial internacional da época ao defender que os franceses poderiam instalar-se em terras desocupadas do Novo Mundo. Inclusive o Brasil, cujo litoral sistematicamente começou a ser percorrido pelos capitães normandos e bretões ávidos atrás do pau-tinta que por aqui vicejava.
Coube ainda a Angot contratar o navegador florentino Giovanni da Verrazzano para encontrar uma passagem para a China contornando a parte setentrional do Novo Mundo, o que fez com que ele descobrisse a Terra Nova, no Canadá.
Típico homem do Renascimento, Angot, ao mesmo tempo em que amava as leituras clássicas e o convívio com os humanistas, dirigia com sua prodigiosa fortuna uma incansável guerra corsária contra os espanhóis e contra os portugueses. Em 1521, uma das suas frotas chegou a por Lisboa sob cerco. Em 1534, patrocinou e financiou, sempre sob orientação de Francisco I, a viagem de Jacques Cartier que, contornando a Terra Nova, descobriu a embocadura do rio São Lourenço navegando até a localidade de Hochelaga, que viria se tornar o sítio de onde cresceu a cidade canadense de Montreal.
Proveitoso foi o apoio dado por ele, uns anos antes, em 1529, à grande aventura ensejada pelos irmãos Jean e Raoul de Parmentier. Partindo de Dieppe a bordo da nau “La Pensée” em direção ao Oceano Índico, eles mantiveram contanto com o sultão de Sumatra, feito náutico que entusiasmou Francisco I fazendo com que enviasse uma outra expedição em 1531, firmando desde então a presença da França na Ásia.
Para as coroas iberas, ainda que empreendedor e letrado, Angot nada mais era do que um chefe de piratas. Para Francisco I, bem ao contrário, tratava-se de um herói que conseguira carrear para a França, por meio de um dos seus capitães, um tal de Jean Fleury, parte dos tesouros de prata mexicana expropriados por Cortés durante a conquista do Império Asteca e que estava a caminho da Espanha, em 1523, a bordo de três galeões
Todavia, ao longo do século XVI, o apoio à expansão náutica começou a sofrer de acentuadas interrupções. Por vezes, o próprio rei, ainda que entusiasta das façanhas marítimas, teve que suspende-las em vista da guerra que travou contra o imperador Carlos V. Todavia, o principal fator do esmorecimento deveu-se aos problemas internos que a França padeceu. E o motivo foi o acirramento do ódio teológico decorrente dos efeitos da reforma protestante, eclodida por Lutero na Alemanha, e que cindiu o país.
Crescentemente dividida entre os partidários da Liga Católica e os huguenotes (como os protestantes franceses eram denominados), o reino da França mergulhou por quase quarenta anos (de 1561 a 1598) numa guerra civil religiosa, o que absorveu a maior parte dos recursos públicos e privados impedindo assim a expansão da marinha francesa, pelo menos no mesmo ritmo da dos seus adversários.
A Normandia não conseguiu ficar de fora daquilo que infelicitou o reino, fazendo com que Caen, capital do Calvados, na baixa-Normandia, se tornasse um baluarte dos huguenotes, enquanto que Rouen, capital histórica da alta-Normadia, permanecesse fiel a velha fé, isto é, ao catolicismo. A bela região atlântica viu-se então arrastada para dentro da voragem sanguinária provocada pela sucessão de oito guerras intestinas que abalaram profundamente a França, sepultando a época de ouro das navegações que até então encabeçara.
Bibliografia
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Havard – Vidal – Histoire de l´Amerique Française. Paris:Champs – Flammarion, 2003.
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Margry, Pierre - Les navigateurs français et la revolution maritime, Paris, 1867