18.3.11

Em 1504, o navegador Binot Paulmier de Gonneville contatou os índios Carijó que viviam no Norte de SC

Pouco depois de Pedro Álvares Cabral ter dado com a ‘terra brasilis’, um capitão francês, Binot Paulmier de Gonneville, içou velas em sua pátria na cidade de Honfleur (24/06/1503), e foi, margeando a costa da África, em busca de territórios a serem explorados nas Índias. Para tanto, os marinheiros haviam até contratado dois lusitanos secretamente, os quais conheciam bem a rota. Mas uma tempestade, na altura do Cabo da Boa Esperança, fez com que Gonneville perdesse o rumo e fosse aportar em terras incógnitas.

Mesmo sem ter clareza sobre a região onde estava, Gonneville e sua tripulação desembarcaram da avariada nau L?Espoir (A esperança) e toparam com índios: silvícolas hospitaleiros que os auxiliaram nos reparos da embarcação e no restabelecimento depois de tão penosa viagem. Tal convivência iria se prolongar por seis meses, marcada antes por harmonia e cordialidade. Gonneville estava, com sua tripulação, sem saber, no Sul do Brasil. A agradável convivência entre os franceses da L?Espoir e os índios Carijó (ou, possivelmente, segundo levantamentos do arqueólogo Francisco Silva Noelli, os Jê) constitui-se, conforme Leyla Perrone-Moisés (Vinte luas, Cia. das Letras, 1992), numa página diferente da colonização, pois não foi marcada por agressões. Com efeito, os Jê não eram canibais, portanto não teriam aterrorizado os franceses. Na Páscoa de 1504, o capitão de Gonneville fez, inclusive, que se plantasse uma cruz numa colina, com a ajuda dos índios.

Após seis meses de coabitação, os franceses decidem retornar à Europa. Como todos os descobridores, obedecendo ao costume da época, desejavam levar peças do Novo Mundo consigo, sobretudo a fim de mostrar à corte o que encontraram. Assim, navios partiam cheios de animais, plantas e outras coisas. E até pessoas. Gonneville, por exemplo, obteve autorização do cacique Arosca para levar o mais novo de seus filhos, um índio adolescente de 15 anos, cujo nome era, provavelmente Içá-mirim (Formiga pequena) e que, na pronúncia francesa, transformou-se em Essomericq. Junto dele foi um pajem, Namoa. Arosca via no traslado a oportunidade de seu filho instruir-se na ‘civilização’ dos amigos brancos e o capitão Gonneville prometeu devolver-lhe o filho em ’20 luas’, de acordo com a contagem dos tribais.

Mas o retorno foi marcado por desastres: margeando provavelmente Porto Seguro, os franceses toparam com Tupiniquins. Estes eram canibais e acabaram por devorar alguns desavisados que arriscaram descer do navio. Uma segunda parada, mais acima, fez com que vissem, decerto, os Tupinambás, já mais habituados à presença europeia. Os franceses foram, então, mais prevenidos, mas conseguiram abastecer o navio com pau-brasil e algumas riquezas.

Quem, no entanto, dizimou a frota de Gonneville foram piratas no Canal da Mancha. A L?Espoir foi saqueada e naufragou; dos 60 tripulantes iniciais, somente 31 se salvaram. Entre eles, o índio Essomericq. Àquelas alturas, o índio já fora batizado durante o traslado com o nome de seu padrinho, Binot Palmier de Gonneville, pois ficara doente. Seu pajem, Namoa, morrera a bordo.

Pelo trauma dessa viagem, o capitão Gonneville, comerciante, armador, não conseguiu organizar um retorno às longínquas terras tropicais. No entanto, pela palavra empenhada ao cacique Arosca, o capitão viu-se obrigado a dar um destino próspero a seu afilhado. Fez dele, então, herdeiro de suas armas e bens, casando-o com uma parenta. Da possivelmente primeira união oficial entre europeus e índios brasileiros nasceram 14 filhos. E Essomericq chegou a contar 95 anos de vida.

O naufrágio de Binot Paulmier de Gonneville levou-o a fazer uma relação de viagem, dando conta do prejuízo que sofrera e de alguns detalhes do que encontrara. Tal relação só foi encontrada no século 19, em Paris, na Biblioteca do Arsenal; tratava-se de uma cópia autenticada pelos tabeliães de Ruão, respondendo a um pedido compulsório do rei Luís XIV. Esse pedido fora feito para atender a um de seus colaboradores, o influente abade Jean Paulmier de Courtounne, bisneto do índio Essomericq. Explique-se: em 1658, o ilustre cônego fora surpreendido pela cobrança de um imposto, o chamado droit d?aubaine, que os estrangeiros deviam ao rei de França. Somente a relação de Gonneville poderia prestar esclarecimentos à então nobre família que se dizia, sim, descendente de um ‘príncipe’ (lembre-se que Essomericq é filho de um cacique).

O abade foi então solicitar em Ruão uma cópia autêntica da relação, o que lhe foi recusado, pois o documento era secreto já que tratava de descobertas de terras novas. Daí a intervenção do rei Luís 14. Aproveitando a ocasião, o abade escreveu um memorando a fim de obter financiamento para uma nova viagem às terras supostamente descobertas por seus ancestrais em 1504.

Vários empreendimentos foram feitos, mas não se sabia que aquelas terras eram as de Santa Catarina. Os navegantes tiveram de basear-se no que transcrevera o abade Paulmier, e este cometera um erro, dizendo que o capitão Gonneville dobrara o Cabo da Boa Esperança… Assim, todas as expedições malograram. A localização exata das terras descobertas pelo normando veio pelo historiador e geógrafo Armand d?Avezac, que publicou e comentou a Relação de Gonneville em 1869. Esta foi traduzida em português por Tristão de Alencar Araripe em 1886.

A despeito de todas as pesquisas e do bem-constituído livro de Leyla Perrone-Moisés sobre o assunto, levantou-se polêmica sobre a veracidade da viagem empreendida pelo capitão Gonneville e a descendência do índio Essomericq. Tratava-se do resultado de conclusões pessoais do senhor Jacques Levêque de Pontharouart, as quais foram rapidamente postas à prova por estudiosos franceses e vivamente contestadas e descreditadas, pois não possuíam bases sólidas.

No Brasil, o historiador catarinense Amílcar D?Avila de Mello, em sua obra sobre as origens quinhentistas do Estado, dedica um capítulo à viagem de Gonneville. Amílcar indica que haveria possibilidades de que as baías de Guaratuba e Paranaguá fossem o ancoradouro dos pioneiros franceses. Isso não desmente a possibilidade de que tenha sido, de fato, a Baía de Babitonga. Além disso, Amílcar explicita: ‘Embora ainda não possamos determinar com exatidão o lugar visitado por esses pioneiros, o que está acima de qualquer dúvida, é que eles tocaram um ponto da costa brasileira situado ao sul do trópico de Capricórnio. Nessa região ? que chamavam de ?Índias Meridionais? ? foram recebidos amigavelmente pelos nativos’ (Expedições – Santa Catarina na era dos descobrimentos geográficos, volume 1, pág. 159, Expressão, 2005).

A ida do jovem índio à Europa era uma oportunidade para que aprendesse as armas e outros artifícios. Segundo Amílcar D?Avila: ‘Para os europeus, convinha promover esse ?estágio? de indígenas na sua civilização para que a aprendessem bem a sua língua, fé e costumes. Preparados para atuar como mediadores culturais, os nativos ajudariam a relatar aos seus povos as maravilhas que existiam do outro lado do oceano e, dessa maneira, agilizariam a conquista pacífica de suas terras’. (Expedições, pág. 161)

Do lado dos índios, pouco se sabe. O último capítulo do livro de Leyla Perrone-Moisés, intitulado O silêncio de Essomericq, incita à reflexão acerca de porvir desse indígena quando radicado na Normandia do século 16. Aquilo que a pesquisadora denominara como ‘única página cor-de-rosa’ da colonização e que diz respeito ao primeiro índio levado à França é, realmente, ímpar. Nessa história de adoção e aculturação, nada se sabe sobre as impressões do silvícola. Com o tempo, a própria família descendente o incorpora como sendo um ‘príncipe’, filho de um rei, à sua maneira.
Do lado de cá do Atlântico, onde possivelmente Gonneville encontrou os selvagens, nota-se que a cidade de São Francisco do Sul comemorou os 500 anos de sua fundação em 2004, tomando como base sua descoberta pelos franceses em 1504. Um instituto local, ‘Binot Paulmier de Gonneville’, convidou, à época, o prefeito de Honfleur para as comemorações. Tem-se uma relação de encantamento mútuo, de um país e de outro, baseada, decerto, no exotismo de um remoto encontro entre índios e franceses que, sem saberem, davam início à globalização. Com suas vantagens e mazelas, sem dúvida.

* Doutora em Literatura Francesa pela USP

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