31.3.11

Japão contra China: o massacre de Nanquim

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ciclicamente os chineses manifestam nas ruas o seu profundo descontentamento com o Japão. Reclamam, no geral, que os japoneses até hoje não manifestaram a eles as devidas desculpas pela invasão de 1937, ocorrida durante a IIª Guerra Sino-japonesa ( 1937-1945).

Queixam-se ainda de que o governo nipônico, ao editar os manuais escolares para os seus estudantes, procura esconder ou minimizar a responsabilidade do exército do Sol Nascente nas inúmeras atrocidades cometidas contra a população civil naquela ocasião. Particularmente omitindo-se sobre o Massacre de Nanquim, ocorrido na ex-capital da China Nacionalista entre de dezembro de 1937 e fevereiro de 1938.

Antecedentes do Massacre de Nanquim
Um conflito entre soldados japoneses e chineses, ocorrido na cidade de Tsientsin, no verão de 1937, exatamente num local denominado de Ponte de Marco Polo, serviu como pretexto para que o Império do Sol Nascente desencadeasse uma guerra de agressão à República da China, na época sob a ditadura do marechal Chiang Kai-shek, líder do Kuomintang ( Partido Nacionalista).

Fazia tempo que os nipônicos se esparramavam para as proximidades da China central. Desde 1885, quando dividiram com Pequim o controle sobre a península coreana, eles não paravam de arrancar pedaços do antigo Império do Centro, então em contínua decadência.

No final da Primeira Guerra Sino-japonesa, o Japão vitorioso, pelo Tratado de Shimonosequi, de 1894, além de forçar uma vultuosa indenização ( 200 milhões de taels), obrigou o imperador chinês a entregar-lhe o controle das ilhas de Taiwan ( Formosa), dos Pescadores e a região de Liaodong na Manchúria. Em maio de 1905 foi a vez do Império Russo, derrotado na batalha naval de Tsushima pelo almirante Togo, ter que ceder Port Arthur ( situado numa baia chinesa) aos japoneses.

Quer dizer, bem antes do ataque de 1937, o Império do Sol Nascente já exercia sua soberania sobre extensas áreas do sudeste e do nordeste da China. Um tanto antes, em julho de 1931, a pretexto de um conflito ferroviário - o Incidente de Mukden - os nipônicos transformaram toda a Manchúria num estado títere: o Manchuquo ( colocando no poder como seu governante-fantoche o ex-imperador chinês Pu Yi, antes destronado pelo movimento republicano de 1911, e que aceitou o título de "executivo-chefe").

Assim, pode-se dizer que a invasão de 1937, iniciada em 7 de julho, foi o resultado lógico de uma política crescentemente expansionista que mobilizava o governo de Tóquio desde os finais do século 19. Todavia, para os estrategistas do estado-maior nipônico, a guerra contra a China tinha que ser rápida.

As enormes extensões do país ( 9.583 mil km²) e sua imensa população só poderiam ser submetidas por meio de uma manobra relâmpago que sufocasse instantaneamente qualquer possível resistência. Para tanto, para submeter de vez os chineses e fazer o regime do general nacionalista Chiang Kai-shek capitular, era preciso executar uma demonstração exemplar da determinação dos invasores: uma operação de choque e pavor que fizesse a China inteira tremer diante da bandeira guerreira do Sol Nascente e dos seus soldados-samurais.

De Xangai a Nanquim
Para encurtar a guerra, os estrategistas de Tóquio executaram um plano de desembarque, vindo do mar da China, que tinha como meta um ataque direto ao coração da nação: a região que abarca a importantíssima Xangai, situada na beira do mar, até a cidade-capital de Nanquim localizada mais adentro, na margem direita do rio Yangtse. Dominando o eixo Xangai-Nanquim, numa só grande operação militar, o Japão submeteria o principal porto da China como também sua sede política. Controlando a embocadura do Yangtse ( 5.525 km de extensão), toda a economia do interior da China capitularia frente aos invasores. Com a posse do coração (Nanquim) supunham que a cabeça (Pequim) e os pés da China ( Cantão) seriam reduzidos à inércia.

Ainda assim, iniciada em novembro de 1937, não foi fácil a ocupação de Xangai. A previsão inicial de que os chineses não resistiriam mais do que três meses não se confirmou. Apesar de inferiores em equipamento e treinamento, os defensores ofereceram uma inesperada barreira à força expedicionária japonesa, lutando de casa em casa na grande cidade portuária. Tomado o porto naquele mesmo mês de 1937, os nipônicos destacaram então três grande colunas militares para avançarem para o interior para irem submeter Nanquim.

Pelo norte, marchando pelas margens do rio Yangtse, partiu a 16ª divisão comandada pelo tenente-general Nagajima Kesago. Pelo centro, seguindo na direção da estrada de ferro Xangai-Suzhow-Zangzhou-Tanyang-Nanquim, partiram as divisões 9ª, 10ª e 13ª, lideradas pelo general Matsui Iwane, e, por último, seguindo mais ao sul, apressavam-se as divisões 6ª, 18ª e 114ª, obedientes ao general Yanagawa Heisuke, cuja função era ocupar a estação ferroviária de Wuhu, bloqueando assim qualquer possibilidade da capital receber algum reforço vindo do sul. Não demorou para o tridente nipônico formado pelos generais Nakajima-Matsui-Yanagawa cercasse os muros da velha cidade que fora outrora uma das sagradas capitais imperais do Reino Celestial.

A marca da fidelidade
No comando geral da conquista de Nanquim, o imperador Hirohito nomeou no dia 7 de dezembro de 1937 um tio seu, o principe Asaka Yasuhiko ( que havia se atritado com a casa real num incidente grave de insubordinação militar ocorrido em Tóquio , em 1936). Este, desejoso de mostra fidelidade, quis deixar sua marca de samurai implacável na luta contra os inimigos de Hirohito. Entrementes, o enorme exército chinês, calculado em 300 mil homens muito mal comandados, que tinha a função de proteger a capital, pareceu ter perdido o espírito de combate que um pouco antes alguns regimentos haviam demonstrado na defesa de Xangai.

Negociações tiveram inicio entre os emissários japoneses e os comandantes chineses que optaram pela capitulação. Mal sabiam eles que estavam assinado a sentença de morte que logo seria executada sobre a massa dos pobres soldados capturados. Os militares nipônicos, educados na cultura do bushidô, a ética do guerreiro que os obrigava a lutar até a morte, desprezaram o inimigo que entregou-se a eles sem maiores esforços. Porque, indagaram eles, os recrutas chineses não sangravam até o fim, porque decidiram render-se às levas sem esboçar qualquer reação mais séria?

Milhares de chineses, cada um deles tendo um trapo branco a mão, acorriam às linhas dos inimigos para prostrarem-se frente aos pelotões japoneses. Meia dúzia deles controlavam centenas e centenas de rendidos. Repugnou aos vencedores "estarem lutando contra aqueles escravos ignorantes", identificados apenas pela sua covardia coletiva.

Decisão fatal
A decisão sobre o que fazer deles, reduzidos então a uma manada passiva que perdera totalmente a capacidade de reagir, não tardou: os prisioneiros chineses deviam ser mortos. Todos eles! A ordem que partiu do quartel-general do principe Asaka, no dia 13 de dezembro de 1937, determinou ao comando do 66º batalhão: "Todos os prisioneiros de guerra devem sem executados pelo seguinte método: dividam os prisioneiros em grupos de dúzias e fuzilem-nos separadamente...as execuções devem começar às 5h e devem ser encerradas às 7h30m"( Iris Chang The rape of Nanking, pag. 41).

Duas razões os levaram aquela terrível decisão: não serem detidos na ofensiva por aquela multidão sem fim de gente a quem teriam que vigiar e alimentar e não permitir que eles, em caso de desmobilização, se transformassem em guerrilheiros acossando a retaguarda japonesa em movimento.

Teriam também entrado em ação, - como elemento psicológico que contribuiu para a fúria homicida que se seguiu - ódios mais profundos, de antigas desavenças e rancores culturais que opunham por séculos os dois grandes povos asiáticos. Fator este que colaborou para que os generais invasores planejassem uma humilhação completa, arrasadora do que restara da fibra chinesa, tendo como alvo da demonstração a população da histórica Nanquim. Seja lá o que for, o alto-comando japonês chefiado então pelo principe Asaka foi o responsável único pelo massacre que se seguiu.

Um dos locais escolhidos para as execuções em massa que se seguiram foi o Montanha Mufu, situada ao norte de Nanquim que serviu de palco para a morte de 57 mil soldados e civis. Quando os demais soldados chineses ainda vivos perceberam qual seria o destino deles, trataram de abandonar seus uniformes buscando refugiar-se dentro da cidade. Esperavam misturar-se à multidão de civis que de algum modo tentava escapar para a outra margem do rio Yangtse. Isto serviu de pretexto para que as tropas de ocupação realizassem caçadas-monstro pelos bairros de Nanquim atrás deles, detendo e fuzilando na hora quem lhes parecia um ex-soldado fugitivo.

Os japoneses então se descontrolaram. A indiferença dos oficiais pelo destino dos civis açulou os instintos mais baixos da soldadesca. Milhares de mulheres chinesas foram então violentadas e mortas a tiros ou a golpes de baionetas em caso de resistência.

Os pelotões de extermínio armados de metralhadoras concentravam suas vítimas ¿ geralmente ex-soldados que haviam debandado - num determinado local, preferencialmente junto aos velhos muros da cidade, e abriam fogo.

Aos que ainda agonizavam, um certeiro golpe de lâmina punha fim aos seus tormentos. Poucos dos chineses que tentaram atravessar o rio Yangtse para a margem esquerda tiveram sucesso devido as correntezas traiçoeiras. Não demorou para que as suas margens acolhessem pilhas de mortos, como deu-se em Hsiakwan, um embarcadouro ao norte de Nanquim.

Latões de óleo ou de querosene eram então derramados sobre os montes de cadáveres enchendo os céus da cidade com aquela fumaça preta e com um fortíssimo odor de carne carbonizada. Exemplo de um dos tantos desmandos foi a noticia publicada num jornal de Tóquio, o Japan Adviser, de 7 de dezembro de 1937, que registrou haver uma competição entre dois decepadores de cabeças. Eram eles os suboficiais Mukai e Noda, que apostaram qual deles alcançaria a primeira centena de cabeças de prisioneiros decapitados: um deles celebrou 106 e o outro 105.

Assinale-se em honra das melhores tradições do exército imperial nipônico que tudo isso foi cometido aproveitando-se do afastamento temporário do general Matsui, que ficara um bom tempo acamado vítima da tuberculose. Quando ele recuperou-se o suficiente para celebrar com suas tropas a vitória sobre Nanquim, aos gritos de Banzai! Banzai!, numa parada militar realizada no dia 17 de dezembro de 1937, é que ele tomou conhecimento da extensão da matança. Não deixou então de repreender seus generais e demais oficiais pela atitude conivente com aquele horror.

Mas naquela altura o furor homicida da soldadesca adquirira uma dinâmica própria e o roteiro de roubos, saques, torturas, raptos e estupros seguidos de assassinatos teve continuidade ainda por seis semanas, estendendo-se de 13 de dezembro de 1937 até os finais fevereiro de 1938. Os japoneses, como se fossem uma matilha de lobos famintos e desordeiros, percorriam as ruelas e praças da cidade em bandos de seis a doze soldados, disparando ou trespassando a quem quisessem ou desejassem.

O segundo-tenente Tominaga Shozo espantou-se como os seus comandados, antes com ares de inocência, num zás se transformaram em máquinas de matar. Assustou-se com "os olhos maus deles". Eles não tinham olhos humanos, mas sim "os olhos de leopardos ou de tigres" ( Iris Chang, Op.cit. p. 57).

Controvérsia
O número das vítimas do Massacre de Nanquim, como não poderia deixar de ser, é controverso. A população da capital naquela oportunidade, inflada com a chegada dos fugitivos e dos soldados em debandada, provavelmente oscilava entre 630 a 700 mil pessoas. Os pesquisadores chineses apontam as vítimas entre 260 a 300 mil; os japoneses por seu lado, quando aceitam ter havido um massacre, reduziram-nas para 38 ou 42 mil (*). Os estrangeiros que lá estavam, europeus e americanos, indicaram de 40 a 50 mil mortos. A Chun Shan Tang, uma antiga e honorável sociedade caritativa chinesa, por sua parte, contabilizou os sepultados em 112.267 corpos.

(*) No Qin-Hua Rijun Nanjing, o memorial erguido em Nanquim em homenagem aos caídos, esta gravado na pedra externa a cifra de 300.000! Todavia alguns indicam que este teria sido o total de baixas fatais chinesas apresentado pelo marechal Chiang Kai-shek desde o começo da invasão do país, ocorrida cinco meses antes do massacre. Quando realizou-se o Tribunal dos Crimes de Guerra de Nanquim, em 1947, durante o julgamento do tenente-general Tani Hisao, comandante da 6ª divisão, concluiu-se que 190 mil haviam sido executados ilegalmente em operações de liquidação em massa e outros tantos 150 mil foram mortos individualmente ( The Nanking Atrocities).

A Zona de Salvação
Em meio aquela verdadeira catástrofe humana que se transformara a ocupação militar de Nanquim, coube a um pequeno grupo denodado de estrangeiros, europeus e americanos, liderados por Johannes Rabe, o diretor geral da empresa Siemens China Company, uma corporação alemã responsável pelo sistema elétrico e telefônico da capital, assegurar um santuário para a população civil. Criaram eles uma Zona de Segurança numa área próxima à Universidade de Nanquim, onde também estavam o Colégio Feminino Ginling, a embaixada americana e a outros prédios público chineses.

Rabe, na ocasião com 55 anos, que também era representante do partido nazista junto ao govenro de Chang Kai-shek, procurou assegurar-se junto ao comando japonês que aquele território neutro não seria violado pelas tropas invasoras, servindo apenas como um refúgio humanitário para as massas foragidas, cada vez mais desesperadas com o desencadear da tragédia ( Rabe, numa carta a Hitler, datada de 27 de novembro, chegou a pedir a intervenção pessoal do ditador alemão em favor do respeito dos japoneses à Zona de Segurança, aberta exclusivamente para os que não estavam envolvidos nas batalhas).

Não demorou para que o local acolhesse uma onda humana de 250 mil pessoas apavoradas com o bombardeio japonês da cidade, o que obrigou a que os integrantes do Comitê Internacional de Nanquim despendessem esforços gigantescos no sentido de garantir-lhes as condições mínimas de sobrevivência, com alimentação e higiene adequadas.

A multidão, agradecida por estar viva, espalhou-se por tudo. Famílias inteiras dormiam ao relento naquelas noites frias de dezembro, enquanto os prédios da Zona de Segurança logo se transformaram em superlotados formigueiros humanos. Para abastecê-los com arroz e farinha foram necessárias várias e complicadas operações de transporte, nas quais o próprio Rabe cedeu o seu automóvel. Não só isso, aproveitando-se do fato da Alemanha nazista ser aliada do Japão, ele começou a circular pelas ruas de Nanquim ocupada para evitar que os soldados cometessem atrocidades ainda maiores.

Para deter as baionetas e as pistolas dos nipônicos, apontadas e engatilhadas contra os civis chineses, Rabe recorria à suástica, a cruz nazista que trazia na braçadeira ( provavelmente foi um dos raros, raríssimos casos em que o símbolo nazista serviu para impedir uma brutalidade e não para cometê-la ou referendá-la). Esta foi uma das razões que a escritora chinesa Iris Chang denominou Johannes Rabe como "o Oskar Schindler da China" ( I. Chang, Op.cit. p. 109).

A Comissão Internacional que salvou milhares de chineses(J.Rabe está no centro) O Pomo da Discórdia
Desde então, desde o pavoroso Massacre de Nanquim, também chamado de o Estupro de Nanquim, tal episódio tem sido o principal pomo da discórdia que tem protelado uma aproximação mais intensa entre chineses e japoneses. Para a China o corrido assumiu a mesma dimensão trágica da explosão das bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroxima e Nagasaqui. Daí entender-se a insistência das autoridades de Pequim em acentuarem o número dos em 300 mil mortos ( que seria superior às vitimas nipônicas do bombardeio nuclear de 1945).

A Segunda Guerra Mundial já encerrou-se há muito tempo mas o desacerto entre Pequim e Tóquio volta e meia alcança as manchetes dos jornais, chamando a atenção da mídia internacional, devido à fúria dos chineses irritados com a arrogância japonesa em não lhes pedir sinceras desculpas. Sempre se mostram exasperados com as inúmeras meias-confissões das autoridades nipônicas que nunca lhes parecem ser autênticas, "do coração".

Para muitos japoneses, como foi o caso de então Ministro da Justiça Nagano Shigeto, a Guerra na Ásia ( 1937-1945), que envolveu a ocupação da China, foi travada para libertar o continente do colonialismo euro-americano, sendo assim justificável uma ou outra operação desastrada. Outros simplesmente negam ter havido o Massacre de Nanquim, nada mais sendo do que uma montagem, uma "fabricação contra a honra do Japão". Além por igual que nenhum país do mundo expões aos seus estudantes as coisas negativas que ocorreram no passado. Porque haveria de ser o Japão o único a fazê-lo?

Fonte: VOLTAIRE SCHILLING