Documentos inéditos reconstituem os passos de Josef Mengele na América do Sul e mostram como ele usou a identidade real na Argentina, no Uruguai e no Paraguai. A morte do carrasco, no litoral paulista, volta a gerar polêmica
Eduardo Szklarz
*Com reportagem de Tiago Cordeiro
Como exigia a lei no Uruguai, em 1958, um singelo proclama de casamento foi publicado no jornal do povoado de Nova Helvécia, a 120 km de Montevidéu. O oficial Pedro Izacelaya anunciou o nome dos noivos e recomendava: quem soubesse de algum impedimento contra a união deveria denunciá-lo durante os oito dias de divulgação do registro, a contar de 17 de julho.
Casariam-se Marta Maria Will e Josef Mengele. Ela, viúva e dona de casa. Ele, divorciado, médico, nazista e torturador sádico, responsável direto pela morte de ao menos 3 mil pessoas em experimentos bizarros no campo de extermínio de Auschwitz.
Josef Mengele, em 1945. (Imagem: GettyImages)
Ninguém apresentou obstáculos. E Mengele retomou a rotina tranquila de empresário bem-sucedido em Buenos Aires. Até que a Alemanha pedisse a sua extradição, em 1959, o homem que mereceu ser chamado de Anjo da Morte sobreviveu nas barbas de autoridades alemãs, argentinas, uruguaias e paraguaias incólume. E feliz.
Günzburg é um vilarejo ao sul da Alemanha. Parece pintado a mão. Ali, a família Mengele é reverenciada. Em 1907, Karl Mengele comprou uma fábrica de máquinas agrícolas e faria dela uma das maiores da Europa. Sob novos donos, existe ainda hoje, batizada Mengele Agrartechnik. Boa parte dos moradores está empregada lá.
Há 100 anos, em 16 de março, Karl e a esposa, Walburga, tiveram o primeiro de três filhos, Josef. "Karl esperava que o primogênito assumisse os negócios e perpetuasse a dinastia", afirmam Gerald Posner e John Ware em Mengele: The Complete Story (sem edição no Brasil). Mas o ambicioso Josef queria construir a própria fama. "Dizia que todos ainda veriam seu nome na enciclopédia."
O rapaz estudou medicina e antropologia nas universidades de Munique e Frankfurt. Em 1937, já formado, descolou uma vaga no Instituto para Hereditariedade, Biologia e Pureza Racial da Universidade de Frankfurt e filiou-se ao Partido Nazista. No ano seguinte, ingressou na SS, que administrava os campos de extermínio. Casou-se pouco depois com Irene Schoenbein, mãe de seu único filho, Rolf. Entre 1939 e 1942, Mengele lutou no front oriental e recebeu cinco medalhas por bravura.
O emprego que, enfim, o colocaria na enciclopédia veio em 1943: um posto de médico em Birkenau, parte do complexo de Auschwitz, na Polônia. O sempre elegante doutor ganhou o sinal verde para realizar atrocidades "em nome da ciência". Era parte de sua função selecionar os presos recém-chegados. Em segundos, analisava as feições de cada um e mandava-os às fileiras da direita ou da esquerda: trabalho escravo ou a morte. Assim, teria determinado a execução de 200 mil a 400 mil pessoas.
Um terceiro destino era reservado a certos prisioneiros, sobretudo os gêmeos: servir de cobaia em testes cruéis (leia na pág. 36). O jornalista Ben Abraham, 86 anos, lembra-se muito bem daquele homem de macabra imponência. "Mengele liderava a junta médica que fez a seleção do meu grupo. Era o Anjo da Morte mesmo. Ele decidia com um levantar de polegar quem iria para os fornos crematórios e quem seria usado nas experiências. Nunca vou esquecer." Abraham conseguiu escapar e mora no Brasil. Perdeu a mãe ali. Outros sobreviventes recordam como ele, à primeira vista, muito bem educado e galante, "desarmava" suas vítimas.
"Morte" antecipada
Não há consenso sobre onde Mengele viveu logo após o fim da Segunda Guerra. O Exército Vermelho invadiu Auschwitz e libertou 7,6 mil prisioneiros em 27 de janeiro de 1945. Segundo Posner e Ware, pouco antes, o médico foi transferido ao campo de Gross Rosen. Depois, escondeu-se em uma floresta. Chegou a ser capturado pelos aliados, mas, sem ser reconhecido, acabou liberado em agosto de 1945. Embora o nome Mengele constasse na lista de nazistas procurados desde maio, ele foi dado como morto pelos aliados. Passou três anos numa fazenda em Rosenhein, na Bavária, com falsa identidade. Seu medo maior provavelmente era dos soviéticos, que matavam nazistas sem muita burocracia. Em 1948, voltou para Günzburg, decidido a fugir. Outros pesquisadores acreditam que o médico simplesmente abandonou Auschwitz e, à custa de propina paga pela famíla, encontrou abrigo na cidade natal.
Numa rota via Áustria e Itália, o carrasco escapou da Europa, em 1949. Usava um passaporte da Cruz Vermelha em nome de Helmut Gregor. Ele desembarcou em Montevidéu e seguiu para Buenos Aires. Em junho, foi acolhido pelo governo de Juan Domingo Perón, que mantinha, sabidamente, fortes laços com os seguidores de Adolf Hitler.
Nazistas como Adolf Eichmann e Erich Priebke seguiram rotas semelhantes, mas Mengele tinha um diferencial. "Ele sempre viveu como um milionário", diz o historiador argentino Carlos De Nápoli, que investiga a trajetória do carrasco há 30 anos. O médico se amparava na fortuna do pai - multiplicada durante o nazismo graças à mecanização da agricultura e depois na reconstrução do país. Para ajudá-lo, Karl entrou em contato com Jorge Antonio, braço direito de Perón e homem de confiança dos alemães no rio da Prata. Argentino de origem síria, El Turco enriqueceu nos anos 1950 usando seus vínculos com o poder, a ponto de se tornar presidente da filial argentina da Mercedes-Benz e sócio de dezenas de outras empresas. A Mercedes ajudou vários nazistas, a exemplo de Eichmann. Mengele, porém, não precisou de emprego. Criou suas próprias empresas com o dinheiro paterno. Os investimentos foram feitos por meio do empresário alemão radicado na Argentina Roberto Mertig, dono da fábrica de fogões Orbis. Uma das firmas que ele montou foi a Tameba (sigla em espanhol de Oficinas Metalúrgicas de Buenos Aires). "Ele fabricava hastes de torneiras e as vendia para Eichmann, que, nessa época, trabalhava na indústria de sanitários FV, do alemão Franz Viegener", diz De Nápoli. Ele calcula que, enquanto viveu na América do Sul, o doutor alcançou o patrimônio de cerca de 10 milhões de dólares. "É difícil precisar porque ele usava muitos testas de ferro."
O carrasco levava uma vida social "regular" na capital do tango (onde está, curiosamente, a maior comunidade judia da América Latina). A ponto de "fazer parte de um grupo que jogava bridge no qual havia judeus", relata Gerald Astor em Mengele: O Último Nazista. "Ele se sentia tranquilo sabendo que havia uma rede de proteção para si no Estado. E ela continuou mesmo após o golpe contra Perón, em 1955", afirma Sergio Widder, diretor do Centro Simon Wiesenthal.
Identidade revelada
Em 1956, ele abriu um novo negócio, o laboratório Fadrofarm (Fábrica de Drogas Farmacêuticas). E voltou a ser Josef Mengele. Na embaixada alemã, deu o nome e endereço e pediu uma cópia da certidão de nascimento. Com ela, obteve uma cédula de identidade argentina.
O nazista saiu do armário (teve até o nome na lista telefônica) para garantir sua participação na herança da família. A essa altura, seu pai estava à beira da morte e ele precisava recuperar o nome. "Se continuasse como Helmut Gregor, não receberia nada. Assim, o segundo passo foi retomar a identidade", diz De Nápoli. O seguinte seria se casar com a viúva do irmão mais novo, Karl Jr. Sim, Marta Maria era sua cunhada. Chegara à Argentina com o filho, Karl Heinz, em 1956. Como divorciados não podiam se casar no país, Mengele foi com ela ao Uruguai. Com as bênçãos de Karl pai, ambos garantiram que os bens da família não se dispersassem.
O que levou Mengele a se sentir seguro o bastante para viver às claras em Buenos Aires? Além da rede de proteção, pesava o fato de que ele era pouco conhecido. Seu nome não figurou nos julgamentos de 1946, o Tribunal de Nuremberg e o Julgamento dos Médicos, que condenou sete doutores nazistas à morte. A Alemanha Ocidental foi criada em 1949 e começou a buscar Mengele em meados dos anos 1950 - mas lenta e atabalhoadamente.
As autoridades alemãs sabiam do paradeiro do médico desde 1954, quando sua primeira mulher, Irene Schoenbein, se separou dele. Ela se recusou a seguir com ele para a Argentina e formalizou o divórcio. Fiel ao estereótipo de ex-mulher, entregou seu esconderijo. Também o denunciou à Universidade de Frankfurt, que lhe cassou o diploma de médico. "Os documentos provam que o governo alemão sabia exatamente onde Mengele vivia na Argentina: rua Sarmiento, 1875, Buenos Aires", diz De Nápoli. Em 1959, a Alemanha finalmente enviou um pedido de extradição ao país, que só o tornou público em 1960. A partir daí, foi como se os oficiais "descobrissem" o carrasco na capital. "Houve muito encobrimento, já que a embaixada alemã interveio em todo tipo de certificado, até o último momento. E nada disse aos tribunais que o buscavam", afirma o historiador. "Com a Polícia Federal argentina, aconteceu a mesma coisa."
A imprensa internacional também só descobriu o Anjo da Morte (ou Doutor Morte, Açougueiro e Anjo Exterminador, como já foi chamado) nessa época, após Eichmann ser levado da Argentina pelo Mossad, o serviço secreto de Israel, e Mengele ter escapado por pouco. Segundo o ex-agente Rafi Eitan, o governo israelense tomou a decisão de sequestrar um criminoso nazista e levá-lo à Justiça em 1958. Havia quatro possíveis alvos: Mengele, Eichmann, Heinrich Müller (ex-chefe da Gestapo) e Martin Bormann, braço direito de Hitler. O primeiro a ser encontrado foi Eichmann, por isso, o Mossad decidiu se concentrar nele. A análise das datas, contudo, sugere que não foi exatamente o medo dos israelenses que o motivou a sair da Argentina. Mengele deixou o país em 1959, antes da captura de Eichmann, em maio de 1960.
Para onde foi Mengele após deixar a Argentina? A pergunta ainda intriga os pesquisadores. De Nápoli afirma que ele voltou para Günzburg - cita documentos da polícia argentina sobre a autorização que ele solicitou para viajar à Alemanha em 12 de fevereiro de 1959, meses antes da chegada do pedido de extradição. Os papéis revelam que Marta saiu de Buenos Aires em 1960, com o filho, provavelmente depois de se desfazer dos negócios do marido no país. Ela tomou um voo da Swissair de Montevidéu para Zurique e, de lá, poderia ter se reencontrado com Mengele na Bavária.
Conexão Paraguai
Outros pesquisadores, como o argentino Jorge Camarasa, dizem que Mengele viveu no Paraguai para depois se estabelecer no Brasil. Ele teria se instalado em 1960 na cidade de Hohenau, de colonização alemã, com passaporte em que se lia o nome José Mengele. Desde o ano anterior, obtivera a cidadania do governo paraguaio. Vários habitantes de Hohenau relataram a Camarasa ter boas recordações do nazista. "Tive o prazer de ser seu vizinho durante anos", disse o ex-prefeito da cidade, Bonibaldo Junghanns. "Ele se fazia chamar doutor Fischer. Era um homem nobre, que cantava em alemão canções de sua terra." Em entrevista no fim dos anos 1970, o famoso caçador de nazistas Simon Wiesenthal afirmou que ele costumava jogar bocha no Clube Alemão de Assunção, dirigir um Mercedes 280 e navegar um iate pelo rio Paraná. Não há provas disso.
A história oficial diz que Mengele se mudou para o Brasil no fim dos anos 1960. Conseguiu abrigo com Geza e Gitta Stammer, imigrantes húngaros que tinham uma fazenda de café em Nova Europa (SP). Em depoimento à Polícia Federal, em 1985, eles confirmaram que deram guarida ao médico. Na versão de Gitta, Mengele se apresentou como um viajante sem destino certo, sob o nome Peter Hochbichler, que pedia abrigo por alguns dias. Acabaram dando-lhe um emprego.
"Essa história não bate. Mengele calculou muito bem cada mudança e não viria para o Brasil sem que tudo estivesse arranjado", diz Ben Abraham, autor de dois livros sobre o médico. No começo dos anos 1970, Mengele teria se aproximado de outro casal: o ex-cabo do Exército nazista Wolfram Bossert e Liselotte, professora do Colégio Humboldt. Os austríacos moravam no bairro do Brooklin, na capital paulista, onde Mengele teria estado várias vezes. Em 1974, a fazenda dos Stammer foi vendida e ele se mudou para uma casa de dois quartos, duas salas, cozinha e banheiro na estrada do Alvarenga, 5773, perto da represa Billings. Ali, era conhecido pelos empregados como Pedro. "Ele me pagava um bom salário e chegou a me fazer empréstimos algumas vezes", disse Elza Gulpian de Oliveira, que foi sua empregada doméstica, à revista VEJA em 1985. Vivia recluso, ouvia muita música e costumava servir-se de vinho nas refeições. Segundo ela, Pedro falava com carinho de um jovem "sobrinho" que morava na Alemanha. Em 1977, o rapaz hospedou-se com o "tio" por duas semanas. Era seu filho Rolf, segundo ele confirmaria à PF.
Todo esse relato deixa margem para dúvidas. Em 1967, por exemplo, o Brasil extraditou o nazista Franz Paul Stangl para a Alemanha. Por que Mengele decidiu se mudar para cá depois disso? Ex-chefe dos campos de Sobibor e Treblinka, Stangl foi condenado à prisão perpétua. "Mengele tinha aqui uma rede de contatos segura o suficiente para não se intimidar", diz a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da USP. "Tinha um lugar discreto onde viver e não trabalhava, como Stangl, que se expôs demais." É possível também que o carrasco tenha chegado antes ao Brasil ou, ao menos, tenha estado aqui várias vezes para preparar um novo esconderijo. Rafi Eitan alega que o Mossad o localizou em 1962. "Descobrimos seu endereço: uma fazenda perto de São Paulo. Estive lá com minha equipe e um grupo de habitantes locais que o conheciam", disse Eitan. "Não quisemos pegá-lo porque não estávamos suficientemente preparados. E logo depois houve uma troca de governo em Israel. A nova administração decidiu não capturá-lo. Depois disso, ele desapareceu."
Verdade ou conspiração?
Em maio de 1985, a polícia alemã fez uma busca na casa de Hans Sedlmeier, que havia sido procurador da empresa de máquinas dos Mengeles, em Günzburg, e encontrou cartas escritas por Josef e remetidas no Brasil pelos Bosserts. O delegado Romeu Tuma, superintendente da PF, foi informado e interrogou o casal. Eles disseram que encobriram Mengele entre 1970 e 1979. Em fevereiro daquele ano, já com a saúde debilitada, o médico foi a convite deles passear em Bertioga, no litoral paulista... E teria se afogado, talvez, vítima de um derrame. No boletim de ocorrência, o morto é o austríaco Wolfgang Gerhard. Na verdade, esse era o nome do sujeito que apresentou Mengele aos Bosserts. Ele teria usado a identidade do protetor por vários anos. Gerhard morreu em 1978 e está enterrado na Áustria.
A tumba de Mengele, revelaram os Bosserts, estava no cemitério do Rosário, em Embu, Grande São Paulo. Uma equipe de legistas exumou os restos do corpo, em junho de 1985, e concluiu que eram do nazista. Em 1992, um exame de DNA confirmou a descoberta. A análise utilizou uma amostra de sangue de Rolf, filho do carrasco, e foi conduzida pelo geneticista britânico Alec John Jeffreys. Sete anos antes, Rolf dissera não ter percebido no pai, na visita a São Paulo, nenhum sentimento de culpa ou remorso. "Ele jurou que nunca, pessoalmente, machucou ninguém."
Marco Antonio Veronezzi, ex-diretor regional da PF, recorda a expectativa mundial que havia em torno do cadáver achado em Embu. "No início, estranhamos o fato de conhecidos de Mengele aparecerem, anos após a morte, para falar da ossada. Mas os depoimentos eram coerentes e a perícia foi conclusiva", diz. "Com o exame de DNA, não restou dúvida." Hoje, a maioria dos pesquisadores considera o enigma resolvido. "Os estudos sobre Mengele foram sérios", diz o jornalista Uki Goñi, autor de A Verdadeira Odessa. Sérgio Widder, do Centro Wiesenthal, confia no resultado, assim como Rafi Eitan declarou à Folha de S.Paulo.
Ben Abraham sempre duvidou da ossada. Aponta há anos uma série de incongruências, inclusive entre o corpo e a ficha médica do nazista na SS. Para ele, o médico "fabricou" um sósia. "Rolf demorou anos para conceder uma amostra de seu DNA. Tenho informações de que Mengele morreu em 1992, nos Estados Unidos, mas não sei de detalhes."
Para Carlos De Nápoli, a "farsa" dos restos no Brasil foi criada, mais uma vez, para fins econômicos. Ele ainda procura as pegadas do doutor e não arrisca cravar onde e quando ele teria morrido: "A Fadrofarm não foi vendida e seus testas de ferro, Ernest Timmerman e Heinz Truppel, iam até a Alemanha prestar contas. Por isso, entre outros motivos, acredito que ele passou seus últimos dias perto de Günzburg." Rolf, diz o historiador, admitiu em 1985 que a ossada era do pai, já pensando na partilha dos bens do clã. Gerald Astor sustenta que o médico abriu mão de sua parte na herança do patriarca Karl Mengele, mas, de acordo com De Nápoli, trata-se de uma suposição que não se sustenta nos documentos identificados até agora. A empresa de máquinas agrícolas da família foi vendida em 1997.
É fato, de qualquer maneira, que o criminoso, agora centenário, não pagou por suas atrocidades. Seus ossos se encontram em poder do Instituto Médico Legal de São Paulo, em local não revelado para evitar peregrinações de neonazistas. A família nunca requisitou o corpo.
Clique na imagem para ampliar (ilustrações: Murilo Maciel)
Dúvida persistente
Perguntas sem resposta e pontos fracos da história oficial
- Por que a família não pediu de volta os restos de Josef Mengele, uma vez que nada na relação deles indicava sérios problemas?
- Por que Mengele teria escolhido viver no Brasil no fim dos anos 1960?
- A opção não seria temerária, uma vez que o nazista Paul Stangl foi preso aqui e extraditado à Alemanha em 1967, um caso de grande repercussão?
- É realmente válido o testemunho do casal Bossert, que tinha laços com o nazismo, atestando a morte do carrasco em Bertioga e identificando sua tumba em 1985?
- A tumba em que foi enterrado Mengele, no Embu, permaneceu intacta até a exumação, em 1985?
- Se não é do Anjo da Morte, como dizem alguns pesquisadores, de quem seria a ossada?
Saiba mais
LIVROS
La Fórmula de La Eterna Juventud y Otros Experimentos Nazis, Carlos De Nápoli, Grupo Norma, 2008.
Baseado em documentos do arquivo nacional, alguns, reproduzidos nesta reportagem.
Mengele - The Complete Story, Gerald Posner e John Ware, McGraw-Hill, 1986.
Uma das biografias mais respeitadas sobre o médico de Auschwitz.
Mengele - A Verdade Veio à Tona, Ben Abraham, Sherit Hapleita do Brasil, 1994
O autor explica por que acha que Mengele não morreu no Brasil.
Post-Scriptum
Entre mitos e verdades cruéis
A intenção final dos experimentos de Mengele e do ideólogo Walther Darré
De todo o material publicado sobre o criminoso nazista Josef Mengele - a partir de 1960, quando ele se tornou conhecido do grande público, após a chegada à Argentina do pedido de sua extradição feito pela República Federal da Alemanha -, destaca-se o enorme valor documental da autobiografia de Miklos Nyiszli, prisioneiro judeu que foi assistente de Mengele em Auschwitz. Médico, o autor realizava autópsias das vítimas mortas em vários experimentos e enviava os resultados a um endereço: "Berlin-Dahlem, Institut für Rassenbiologische und Antropologische Forschungen (...) Um dos institutos médicos mais famosos do mundo".
Em outro trecho, diz: "Os gêmeos morreram na mesma hora. Agora jazem aqui, sobre minha mesa, para dissecação dos cadáveres. Graças à sua morte, agora será possível analisá-los por meio de uma autópsia e descobrir o segredo da multiplicação humana. O grande objetivo dessas investigações é, de fato, a multiplicação da raça superior. Trata-se, exatamente, de colocar uma mãe alemã em condições de criar sempre gêmeos no futuro. Este plano é uma loucura! Foi promovido pelos loucos teóricos da raça do Terceiro Reich. E, para as pesquisas necessárias, encarregaram o doutor Mengele (...) Esse criminoso é capaz de passar horas inteiras comigo entre microscópios e fármacos, ou de estar em frente à mesa de anatomia, com o jaleco sujo de sangue, observando e tocando com as mãos, também sujas de sangue. Trata-se da multiplicação da raça germânica; o objetivo final é que haja alemães suficientes para repovoar os territórios chamados de Lebensraum, ou seja, espaço vital do Terceiro Reich, depois de deixá-los limpos da presença de checos, húngaros, poloneses, holandeses e outras populações". Nyiszli conseguiu obter, com os resultados das autópsias que podia analisar, uma aproximação bastante certeira dos planos finais dos nazistas. No entanto, como muita gente, nunca conseguiu compreendê-los em sua real extensão.
Isso se deve a que, por motivos políticos, o verdadeiro ideólogo racial do nazismo, o argentino Ricardo Walther Darré, passou como um fantasma pelas páginas da História. Darré foi a primeira pessoa a levar à prática as ideias raciais nazistas, impondo aos integrantes das SS, desde 1929, todo tipo de restrição para sua admissão. Eles não podiam ter sangue judeu nem outros sangues "estranhos" desde 1750 até a data de apresentação do pedido de admissão. Em seguida, Darré agregou requisitos similares para mulheres que quisessem se casar com um membro das SS. Também fundou e dirigiu a obra-prima sobre questões raciais dos nazistas: a RuSHA, sigla em alemão de Escritório Central de Raça e Reassentamento. Mais tarde, acrescentou outro requisito, a Higiene Racial. Ou seja: os futuros membros das SS não deveriam ter, entre seus ancestrais, pessoas com antecedentes de qualquer doença hereditária. O plano nazista visava estudar todos os meios e métodos para reproduzir a chamada "raça ariana" o mais rápido possível. A meta do ideólogo Darré era simples: que cada mãe alemã tivesse partos múltiplos. Nesse contexto, se explicam as experiências presenciadas pelo doutor Nyiszli. Outros experimentos buscavam prolongar a vida fértil das mulheres por meio de um coquetel de hormônios, entre eles o chamado "hormônio do crescimento", utilizado também na tentativa de obter partos múltiplos. Logo os nazistas notaram que mulheres maduras ficavam visivelmente rejuvenescidas com os hormônios e uma dieta estrita acompanhada de exercícios físicos. Trato desse tema no livro A Fórmula da Eterna Juventude - E Outros Experimentos Nazistas, editado na Argentina e, em breve, no Brasil.
No entanto, Darré pensou onde viveriam tantos loirinhos de olhos azuis? A resposta é simples: nas terras que os nazistas ocupariam. E o que fariam com os impuros, especialmente os judeus? Simplesmente, os exterminariam nas câmaras de gás. É por isso que a sangrenta RuSHA continha a palavra "Reassentamento" em seu nome. Devido ao delírio de um grupo de assassinos, milhões de pessoas morreram em experiências inenarráveis e criminosas.
*Carlos De Nápoli é assessor histórico do The History Channel e dos principais canais argentinos. É autor de várias obras sobre o nazismo. No Brasil, publicou Ultramar Sul (2010).
Fonte: Aventuras na História