5.8.09

Nietzsche, o gênio entre a loucura e o crime

O tema do Grande Homem, do que Jean-Jacques Rousseau chamava de o Legislador Perfeito, fascinou o Movimento Romântico. Era um gênio que por um ato da sua suprema vontade e pela fortaleza da sua personalidade fenomenal mudava as leis, os hábitos e os costumes e impunha aos seus e à nação uma outra situação, inusitada. Não se importando com suas intenções, Dostoievski o considerava inevitavelmente um Grande Criminoso, pois ele matava as antigas coisas para impor as novas. Nietzsche, por seu lado, viu-o necessariamente como um Louco.

O culto ao gênio

Produto do romantismo literário e do idealismo filosófico alemão (*), a exaltação do Gênio, uma energia irracional e incontrolável, ‘ com uma força capaz de reconhecer o mais alto’ (expressão de T.A.Hoffman), foi a maneira de o mundo intelectual germânico combater o racionalismo cartesiano e iluminista que vingava na vizinha França. As mudanças profundas que ocorrem no mundo não resultavam de uma determinação lógica, de uma ação consciente da razão, mas sim do arbítrio da Vontade de Poder de um ser extraordinário que, como um homem-deus, movia-se apenas pela formidável Lei do Coração (ver ‘A Lei do Coração e o delírio da presunção’ in ‘A Fenomenologia do Espírito’, V- B.b., de G.W.F. Hegel).


O gênio não apenas é dotado de um talento exageradamente desenvolvido, mas alguém sobre-humano capaz de revelar uma Verdade Fundamental até então oculta aos demais seres comuns. Erguendo-se na mais elevada das alturas, somente ele, percebendo as vastas dimensões do horizonte, descortina o devir. Assim, contra o Racionalismo, o romantismo opunha o Personalismo (que irá gerar mais tarde o super-homem de Nietzsche).

Kant e as particularidades do Gênio

Nietzsche (tela de E.Munch)
Coube a Immanuel Kant, nome maior do idealismo alemão, no seu compêndio sobre estética, expor com precisão metódica o que ele entendia por gênio. Na Critik der urteillskraft, a ‘Crítica da Faculdade de Juízo’, de 1790, (*) associa-o fundamentalmente à arte, para ele ‘ belas artes necessariamente têm que ser consideradas como artes do gênio’. E o que vem a ser um gênio?


1 – Originalidade: é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada – a originalidade tem que se sua primeira propriedade, por conseguinte ele é totalmente hostil à imitação.

2 – Servir como Modelo: desde que afastados da extravagância, seus produtos têm que se prestar como modelo, isto é, serem exemplares, não surgidos por imitação, servindo ‘aos outros como padrão de medida... ou regra de ajuizamento’.

3 – Intuição: o gênio não pode indicar ou descrever cientificamente como ele realiza a sua criação. Como autor do produto ele não sabe como as idéias agiram nele e por igual não tem condições de transmitir aos demais quais foram as prescrições seguidas no exercício da sua habilidade. Se um cientista como Newton ainda poderia expor os passos por ele percorridos da Geometria até suas descobertas maiores, o mesmo não seria possível entre poetas como Homero e Wieland, impedidos de ‘indicar como suas idéias ricas de fantasia e densas de pensamento surgem e reúnem-se em sua cabeça’ (Critica da Faculdade do Juízo, pag. 154). Os engendros da ciência podem ser transmitidos, mas o mesmo é impossível na arte poética e na estética.

4 – A Prescrição da Regra: a natureza prescreve a regra por meio do gênio não à ciência, mas sim à arte. Para Kant o verdadeiro gênio exercita-se fundamentalmente na arte, na procura pelo belo. Alertando, porém, que sem o gosto do gênio não há o belo.

(*) Na exposição de Kant sobre o gênio contida na Crítica da Faculdade de Julgar, apresenta-o como ‘ a unidade supra-sensível das faculdades”, ou ainda como o gênio é a “expressão mais radical da atividade reflexionante”. Ele é a expressão harmoniosa do encontro entre a Imaginação e o Entendimento.

Nietzsche, o gênio e a loucura

Prometeu, o titã que rompeu com os deuses
‘ é a loucura que abre alas para a nova idéia, que quebra o encanto de um uso e de uma superstição venerados. ’

Nietzsche – Aurora, prólogo, 14


Retomando o interesse sobre o gênio – assunto que ele retirara das leituras que fizera de Schopenhauer – Nietzsche inclina-se para outra inflexão que não as que diziam respeito às artes e à estética. Até que ponto, indagou, o gênio (percebido como o Grande Inovador em qualquer área de atuação humana) não resulta da
Wahnsinn, a loucura ou de uma necessária imitação da loucura? (ver ‘Aurora’,1880-1)

E o motivo disso se deve a que a humanidade encontra-se submetida a uma enorme pressão imposta pela Moralidade dos Costumes e pela Mediocridade que se alimenta do conformismo e se move pela rotina do dia-a-dia, promovendo assim uma ‘mentalidade de rebanho’. Qualquer proposta de alteração deste quadro gera resistências e desconfortos de toda ordem. É um tanto como os atores do Mito da Caverna de Platão onde todos estão presos por algemas e correntes (que para Nietzsche seriam os Valores Morais que pelos séculos aferrolham o homem), sem que eles tenham consciência disto. Evidentemente que o rompimento com este status quo comum e banal, de sistemática repressão aos instintos naturais para a preservação das instituições, não pode ser feito por um temperamento normal, por alguém prudente e paciencioso. Um Geisteverwandlungen, ‘transmudador de idéias’, é uma força da natureza, um fenômeno praticamente extra-humano que se revolta contra a fraqueza da humanidade.


Portanto, somente a loucura – ‘voz e gesto assustador e imprevisível como os demoníacos humores do tempo e do mar’ - poderá causar a ruptura. Na defesa de uma idéia revolucionária ou transformadora não basta o ‘ardor e o entusiasmo’, exige-se apaixonada convicção. Exclusivamente assim se atrai, se empolga e se conquista os outros para as Grandes Mudanças.


Paradoxalmente, é pela máscara da demência que se esconde a intenção dos deuses em alterar as coisas entre os homens. Ela assume a função de porta-voz daquilo que os Poderes Superiores pretendem fazer, daí se entender como entre os antigos os loucos eram vistos como portadores de mensagens secretas e códigos sibilinos, sendo associados a algum tipo de conluio com o sobrenatural e do terrifico mundo dos espectros e das sombras.


Por tanto, os homens superiores que desejavam ‘quebrar com o jugo da moralidade’ então imperante para instalar novas leis - ‘os assassinos das leis’ - ‘não tiveram alternativa...senão que tornar-se ou fazer-se de loucos."(
Aurora,Livro I §14). Para Nietzsche isso se aplicava a todas as circunstâncias, não somente na esfera do sacerdócio ou da política – até com os poetas inovadores isto por igual se dava.


Nele, no gênio, não há um grão de sal, mas sim de transtorno psicológico. Acomete-o ein Blitz, um relâmpago inesperado, uma faísca energética que provém do inexplicável impulso interior, senão que do sagrado, e que por segundos ilumina e aponta para uma nova direção ou situação. Evidentemente que seguindo-se esta concepção antiiluminista e antipositivista, a humanidade inteira está por assim dizer inteiramente sujeita aos elementos da irracionalidade e do acaso e não da razão evolutiva.

Bibliografia

Hegel. G.W. F – Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Editora Vozes, 1992.

Kant, I. -
Crítica da faculdade de juízo. Rio de Janeiro-São Paulo: Forense Universitária, 1993.

Nietzsche, F. –
Aurora. São Paulo: Cia das Letras,

Nietzsche, F – A Vontade de Potencia. Porto Alegre: Editora Globo, 1945.

Fonte: História por Voltaire Schilling