2.3.11

Cauim

AS CAUINAGENS

Nos primeiros anos do século XVI, tribos indígenas do Novo Mundo, especialmente os Tupinambás, apreciavam o cauim, um tipo de bebida fermentada à base de mandioca, milho e frutas, elaborada pelos próprios nativos.

"Numa fogueira ao lado da maloca, um grupo de nativos, postados ao redor das chamas, estavam à espera das mulheres indígenas que traziam, em grande quantidade, a bebida branca e espumante, servindo assim, os guerreiros ávidos de comemoração." As cauinagens estavam presentes como um dos mais tradicionais festejos dos Tupinambás - era uma espécie de "combustível" para comemorações sobre vitórias frente ao "inimigo do outro lado da montanha". Estes inimigos, quando derrotados, eram capturados e tidos como principal ingrediente da antropofagia indígena.

Costumeiramente, o processo de colonização européia no Brasil apresentou confrontos culturais e lutas, por parte dos recém chegados, contra várias manifestações dos nativos. As cauinagens também faziam parte das "manias" que, segundo os colonizadores, precisava ser eliminada.

A forma com que os Tupinambás consumiam bebidas era muito diferente dos europeus, que encaravam as cauinagens como um processo de embriagues voluntário e, sobretudo, pecaminoso. Vendo os nativos cambaleando, alegres e proferindo discursos "iluminados" - os europeus não tiveram dúvidas em afirmar que os índios estavam possuídos por uma força demoníaca, que alias, provinha dos jarros que abrigavam a "maldita" bebida. Isto era um desafio inesperado para quem pretendia colonizar corpo e mente dos Tupinambás.

O fato é que os índios possuíam pleno entendimento com respeito ao que seria uma bebida de qualidade. Basta lembrarmos da oferta de vinho proferida pela esquadra de Pedro Álvares Cabral aos nativos que, sem pensar, recusaram de imediato, como relatou o escrivão Pero Vaz de Caminha, "trouxeram-lhes vinho numa taça, mal lhe puseram a boca, não gostaram nada, nem quiseram mais". Não é de se entranhar a determinação dos índios em recusar a bebida. Muito provavelmente, a qualidade e o sabor do vinho, a esta altura, já tenham sido sensivelmente alterados pela longa viagem dos portugueses.

O cauim era mais suave em comparação com as iguarias etílicas dos portugueses. Muitos viajantes estrangeiros aportados no Brasil, e também descendentes nascidos em terras tupiniquins, não enxergavam problemas com respeito ao sabor do cauim, muito pelo contrário, demonstravam satisfação ao experimentar a bebida. O padre francês Yves d´Evreux, estado no Maranhão entre 1613/1614 disse ser muito saborosa à cerveja nativa devido seu continuo calor, comparada ao vinho e aguardente.

Ainda sim, não podemos nos ater aos elogios mencionados. Os europeus ficaram estarrecidos ao conhecer o processo de elaboração do cauim - a massa, de milho ou mandioca - era mastigada pelas mulheres e depois, cuspida nos jarros para posterior fermentação. Um dos opositores das cauinagens, José de Anchieta, deixou claro sua aversão à iguaria nativa, descrevendo assim em 1584, sua fabricação, "este vinho fazem as mulheres, e depois de cozidos as raízes ou o milho, os mastigam porque com isso dizem que lhe dão mais gosto e o fazem ferver mais".

Mesmo diante deste cenário, há depoimentos favoráveis, e um tanto quanto irônicos comparando o processo de fabricação do cauim ao do vinho - visto que os vinhateiros se utilizavam dos pés, muitas vezes calcados de botas, para "esmagar" as uvas. Sabe-se lá o que se passou por estes pés durante o referido processo...

O impacto negativo causado pelo processo de elaboração do cauim foi pequeno em comparação às conseqüências de seu consumo por parte dos Tupinambás.

A embriagues resultante das cauinagens incomodava demais os colonizadores europeus, vindos, em sua maioria, do mundo católico. A falta de controle causada pela bebida aos nativos causava pânico. Segundo os europeus, este tipo de comportamento era um incentivo a pecados graves como a luxuria e a antropofagia.

Os colonizadores perceberam (há algum tempo) que os índios, quando bebiam não comiam e vice - versa, diferentemente do costume europeu que, sempre bebiam durante as refeições.

Perceberam também - o comportamento sexual presentes nestes festejos - visto que as mulheres participavam das cauinagens. Por outro lado, muitos missionários ficaram mais impressionados com a embriagues do que com a antropofagia ali praticada.

Era extremamente comemorada a morte do inimigo e, a degustação de seu corpo. Tudo bem regado a cauim. O jesuíta Fernão Cardim logo percebeu a associação contida entre as cauinagens e os rituais antropofágicos. Não demorou muito para os jesuítas entenderem esta expressão cultural dos nativos como algo que precisava ser combatido. Rituais como o casamento poligâmico, antropofagia e as cauinagens eram ameaças para os colonizadores. Os festejos regados a cauim eram tidos como uma excessiva expressão cultural dos nativos e, sobretudo, incontrolável.

Horrorizados com tal situação, os padres traçaram uma estratégia para extirpar o grave pecado da embriagues voluntária causada pelo cauim e, como conseqüência, os rituais de antropofagia.


Para se obter sucesso, os padres contavam com uma ajuda fundamental: as mulheres. Sim, pois eram as mulheres quem plantavam as raízes (milho ou mandioca), eram as mulheres que forneciam saliva para fermentar a massa, eram as mulheres que colhiam as frutas, eram as mulheres que fabricavam as cuias, jarros e talhas que abrigava a bebida. Eram elas também, que serviam os bebedores.

As nativas cristianizadas contribuíram eficazmente para o fim desta manifestação cultural dos Tupinambás. Elas destruíam as talhas e outras "ferramentas" utilizadas na elaboração da bebida. Algumas também proferiam discursos contra a bebedeira, etc.

Outra medida adotada foi a de estimular os meninos nativos, desde cedo, a não praticar as cauinagens. Mas como se tratava de um pecado difícil de vencer, nem sempre resultava em sucesso. Por fim, depois de muitos esforços, conseguiram eliminar as cauinagens dos Tupinambás.


Referencia Bibliográfica:
FERNANDES, João Azevedo - Revista de História - (Guerreiros em Transe), Ed BN, nº 04, Outubro de 2005, RJ.

Escrito por:
CRISTIANO CATARIN