2.3.11

Múmias revelam um passado sombrio da Sicília

Onde os mortos nunca dormem

Por A.A. Gill
Foto de Vincent J. MusiUm rosto ressecado olha para o firmamento em uma catacumba italiana.

Na Sicília, as múmias revelam detalhes sobre a vida e a morte de séculos atrás
O aeroporto de Palermo chama-se Falcone-Borselino. Soa como o nome de algum seriado policial dos anos 1970, daqueles estrelados por tiras com sobrenome italiano. Bem, não precisa se culpar por não saber que Falcone e Borselino foram bravos magistrados que tentaram pôr fim ao velho domínio do crime organizado sobre a Sicília. Ambos foram assassinados. O povo não gosta de falar da Máfia com estrangeiros ali. Trata-se de um embaraçoso assunto de família, uma tragédia particular, não é da nossa conta.A Sicília é um lugar cheio de segredos. Dá para sentir isso nas ruas sombrias e barrocas
de Palermo, a capital onde o estrago dos bombardeios que marcaram o desembarque dos Aliados, em 1943, ainda não foi totalmente sanado e palácios-cortiços são habitados por refugiados norte-africanos. É um lugar masculino, de gente arisca, belo e ao mesmo tempo oprimido por seu passado de crime e corrupção.

A história da Sicília é um novelão pungente sobre gente miserável e fatalista, do tipo que se encontra em qualquer parte da Europa. Até a década de 1950, os camponeses dali estavam entre os mais pobres do mundo ocidental. Durante séculos, eles cavaram uma esquálida existência, padecendo em vendetas e rixas, injustiça e exploração, crimes de honra e códigos homicidas, tudo envolto em perfume de flor de tangerina e incenso de igreja. Na Sicília, perdura ao longo das eras o hábito de lavar sangue com sangue.

O monastério dos capuchinhos em Palermo é um prédio discreto, anódino. Fica do outro lado da cidade, numa praça tranquila, vizinho a um cemitério, onde, em 1992, a Máfia acertou suas contas com o juiz Borselino. Na porta do monastério, num canto recuado, dois camelôs vendem cartões-postais e guias turísticos. Lá dentro, um frade atrás de uma mesa vende ingressos e mais postais, além de pequenos artigos religiosos. Ele lê seu jornal enquanto o dia se arrasta lá fora.

Descendo por um lance de escada e passando por uma estátua de Nossa Senhora das Dores, achamos a porta da catacumba, espécie de sala de espera dos mortos. É fresco e úmido lá dentro, com um odor acre de especiarias em pó e roupa apodrecida. Pelas janelas altas a luz do Sol se filtra difusa, num fulgor esmaecido. Lâmpadas fluorescentes zumbem no teto, adicionando uma luminosidade anêmica de sala de legista. Pendurados pelas paredes, assentados em bancos, descansando em caixões decrépitos, acham-se ali cerca de 2 mil cadáveres. Eles envergam suas melhores vestimentas, os uniformes de suas profissões terrenas. Não há mais ninguém lá.

Na Europa, o dessecamento e a preservação de cadáveres são um assunto de sicilianos. Há outros exemplos na Itália, mas a maioria dos casos está na Sicília, onde a relação entre os vivos e os mortos é forte. Ninguém sabe ao certo quantos são nem quantos já foram removidos de catacumbas e enterrados em cemitérios por sacerdotes incomodados com essa teologia dos corpos votivos. O fenômeno evoca de imediato uma questão: por que alguém faria isso? Qual a razão de exibir gente morta em lenta decomposição?

Percorro as fileiras de mortos experimentando certa confusão mental ao tentar definir o que estou sentindo. No Ocidente, a gente não costuma ver corpos mortos – a ausência de vida é escondida. Esses cadáveres exalam mistério, exibindo atitudes que parecem revelar convicções pessoais. Examinando os cadáveres com interesse mórbido – pois é isso que a morte evoca nesse lugar –, percebo que a grande diferença entre os vivos e os mortos é que você pode encarar estes últimos de perto, sem esconder sua intensa curiosidade, coisa que os vivos não tolerariam.

Eis que me ponho a pensar se eles não deveriam botar a música Thriller, de Michael Jackson, de fundo musical ali, visto que esses corpos evocam aqueles zumbis de filmes de terror com suas próteses cênicas. Mandíbulas abrem-se em gritos silenciosos, dentes apodrecidos sorriem ameaçadores, órbitas oculares vazias a tudo observam, mãos exibem os nós artríticos dos dedos. É uma turma de braços cruzados pendendo dos arames e pregos que os sustentam, a cabeça largada sobre os ombros, o corpo caindo em câmera lenta sob o esforço de imitar a vida passada.Os corredores abrigam de forma segregada religiosos e profissionais, tais como médicos, advogados e uma parcela de imponentes soldados de opereta em seus uniformes de carabinieri. Há um corredor reservado às mulheres, onde nosso guia salienta que podemos contemplar a moda do passado. Os esqueletos perfilam-se em seus andrajos encardidos. Uma capela lateral é devotada às virgens, algo chocante, uma cruel e patética pecha, pelos padrões liberais contemporâneos – a de ser virgem –, que elas têm de arrastar pela eternidade afora. Quando foram enterradas ali, essas virgens devem ter sido consideradas símbolos de pureza em meio à degeneração da carne que a vida e a morte implicam.

Depois, vem uma capela dedicada às crianças, que vestem suas roupas de festa, posicionadas como bonecos zumbis. Um deles se acha sentado na cadeira de ninar com um esqueletinho no colo, talvez seu irmão menor, compondo um quadro lamentável e risível, de tão grotesco.

Os mortos da Sicília não são como as catacumbas de Roma, uma escavação arqueológica. Os corpos foram colocados nesse lugar para serem vistos, prazer pelo qual você tem de pagar pequena quantia. Cartazes lembram ao visitante que ele deve se comportar de maneira respeitosa e não pode tirar fotos – que, no entanto, são vendidas pelos frades. Não está claro se estamos diante de uma experiência religiosa ou cultural, mas que é uma atração turística, isso é.

A primeira e mais velha múmia é de um frade: Silvestro da Gubbio, de pé em seu nicho desde 1599. (A palavra “múmia” deriva do termo árabe para betumem, substância assemelhada à resina enegrecida que os antigos egípcios usavam para embalsamar cadáveres.) A maioria dos corpos é do século 19. No começo eram apenas frades e outros sacerdotes ligados ao monastério. Com o tempo, os religiosos ganharam a companhia de beneméritos, dignatários e notáveis. Ninguém sabe ao certo o que deflagrou a onda de mumificação. Provavelmente por acaso, descobriu-se que um corpo deixado numa cripta de calcáreo poroso sob determinada temperatura fria acabava ressecando, em vez de apodrecer. Daí nasceu um método: os recém-falecidos eram levados a câmaras chamadas de escoadouros. Ali eram deitados num estrado de terracota sobre bueiros para onde escorriam os fluidos corporais, fazendo com que seus corpos se ressecassem feito presunto. De oito meses a um ano depois, os cadáveres eram lavados com vinagre e vestidos com suas melhores roupas para serem acondicionados em caixões ou pendurados nas paredes.

A preservação de corpos é realizada nos mais diversos lugares, mas é raro que eles sejam exibidos dessa maneira. Tanta gente aportou na Sicília com suas práticas e crenças que resquícios disso tudo acabam aflorando nos tempos modernos, mesmo estando suas origens há muito esquecidas. Já se sugeriu que talvez a prática da mumificação seja um eco residual de ritos muito antigos, pré-cristãos. Nem todos os defuntos ressecavam; alguns deviam apodrecer, levando à crença de que a preservação exprimia a vontade divina, uma intervenção da mão de Deus, mantendo certos indivíduos tais como eram antes da morte, espécie de marca distintiva de sua bondade em vida. Da mesma forma que as relíquias dos santos são utilizadas para reforçar orações e crenças, talvez se acreditasse que Deus preservava alguns corpos para reforçar a fé das pessoas. Ou, quem sabe, as catacumbas cumprissem o papel de grandes vanitas, palavra latina que significa “vazio”, apontando para a insignificância da vida terrena e o caráter transitório da vaidade humana. As catacumbas seriam ilustrações da vacuidade das ambições terrenas e da inevitabilidade da morte, apontando para a tolice que era acumular fortunas na Terra.

Em anos mais recentes, alguns corpos foram preservados de forma mais elaborada, por meio de injeções químicas, o que tirou a responsabilidade das mãos divinas e deixou a tarefa a cargo de agentes funerários. Numa das capelas, uma garotinha chamada Rosalia Lombardo repousa em seu caixão. Ele aparenta dormir sob um imundo lençol marrom. Ao contrário de muitas outras múmias ressecadas, essa mantém o próprio cabelo, apanhado num laço de seda amarela. Cachos de boneca tombam sobre sua fronte escurecida. Rosalia tem os olhos fechados, com cílios bem preservados. Se ela não estivesse cercada por crânios sorridentes e pela podridão reinante no lugar, Rosalia poderia passar por uma criança dormindo no caminho de volta de uma festa. O naturalismo e a beleza da cena são cativantes. O recado, inquietante e amedrontador, é de que a vida não passa de um breve sopro.Rosalia tinha 2 anos quando pegou pneumonia e morreu. Louco de dor, seu pai pediu a Alfredo Salafia, um emérito embalsamador, que a preservasse. O efeito é terrível, de uma vivacidade trágica, e o pesar parece ainda pairar sobre sua pequena cabeça loira. Em Palermo, Rosalia é citada como semidivindade, um anjinho mágico. O taxista diz: “Você viu a Rosalia? Bella”.

Savoca é uma aldeia silenciosa que escala em espiral a encosta de uma colina até atingir um ponto em que a vista se descortina até o mar. É um lugar retrancado em si mesmo, onde Francis Ford Coppola filmou O Poderoso Chefão. O bar em que os personagens Michael e sua trágica esposa celebram sua festa de casamento se encontra em uma pracinha acanhada com o mesmo aspecto que tinha há 37 anos nas telas.

No topo da colina há um convento que mais parece uma hospedaria para mochileiros do que uma instituição gótica da Idade Média. Só há duas freiras ali, ambas indianas, de Jharkhand, leste do país. Elas vestem malhas e jaquetas por cima do sári. Numa saleta lateral, dispostos em caixões provisórios de madeira compensada, veem-se pouco mais de 20 cadáveres, que estão sendo estudados por um trio de cientistas.

Eles formam um time improvável: Arthur Aufderheide, americano octagenário que começou como patologista até se transformar num dos maiores experts mundiais em múmias; Albert Zink, um alemão volumoso que dirige o Instituto para Múmias e o Homem do Gelo, no norte da Itália; e Dario Piombo Mascali, um jovem siciliano elétrico, nervoso, sempre encanado com alguma coisa, entusiástico e motivado.

Encontro Mascali inclinado sobre uma caixa, erguendo com delicadeza a batina de um padre do século 19. Ele procura por alguma amostra orgânica de qualquer parte íntima do padre para que o professor Zink possa realizar alguns testes. Uma bolsinha de pele fina e poeirenta sai em sua mão. Dela ele extrai uma amostra de meio centímetro, etiquetada. A reverendíssima múmia não vai sentir falta de seu escroto, imagino.

Grande quantidade de informação pode ser coligida desses corpos sem vida sobre seu dia-a-dia no passado – dieta, doenças e longevidade. Saber mais sobre sífilis, malária, cólera e tuberculose séculos atrás pode nos ajudar a enfrentá-las melhor hoje. Os cientistas movem-se de forma metódica, aferindo a idade e a altura dos cadáveres, examinando crânios e dentes. Quase toda essa gente sofria de problemas dentários – depósitos de tártaro, gengivas encurtadas, cáries e abscessos. Alguns abdomens são examinados. Um dos corpos teve seu tecido mole removido e outros foram empalhados com trapos e folhas, inclusive de louro, talvez para mitigar o fedor ou, ainda, porque se supunha que tivessem valor conservativo. Rechear aquelas formas encolhidas era um jeito de lhes atribuir aparência vívida.

As peles têm o aspecto ceroso de pergaminho; as roupas estão úmidas e pegajosas; as caras, inchadas e bocejantes; as bocas, exibindo laringes encarquilhadas e mostrando línguas enrugadas para o médico examinar. Os cientistas demonstram respeito pelos corpos, sem perder de vista que são seres humanos – do mesmo jeito que nós –, embora se refiram a eles como “isso”, mantendo assim uma distância desapaixonada quando vão extrair um molar, por exemplo.

Alguns anos atrás essas múmias foram vandalizadas na cripta. Alguém entrou ali e jogou tinta verde nelas. Gerando um efeito lúgubre e humilhante, a tinta borrifou suas caras e seus casacos, dando a impressão de ainda estar pingando, o que as torna ainda mais parecidas com personagens de trem fantasma. As freiras que cuidam dessa estranha congregação olham a tudo com piedade e desagrado. Elas me confessam que aqueles corpos deveriam ser enterrados, permitindo que retornem ao pó de onde vieram. Uma delas afirma que não há nada espiritual ou edificante a se aprender com aquilo.Os defuntos borrifados de tinta logo voltarão às alcovas vazias. No momento, o espaço que ocupavam não guarda nada além de centopeias mortas. Algumas múmias ainda jazem em seus elaborados esquifes. Com jeitinho, ergo uma pesada tampa, que não deve ter sido movida por um século, e dou uma espiada lá dentro. O ar escapa com um suspiro espesso, e seu cheiro gruda no fundo de minha garganta. Não é odor de podridão, e sim de caldo de carne misturado com o aroma pegajoso de mofo seco e de camadas finas de gente em pó. É um cheiro dramático, inesquecível, com laivos de silêncio e melancolia, evocando preces incessantes ouvidas a distância, remorsos, saudade – um cheiro ao mesmo tempo repelente e familiar, algo de inédito, mas com estranho e intenso toque de déjà vu.

Nunca saberemos ao certo o que esses cadáveres significavam para as congregações que os prepararam e vestiram. Eles continuam sendo um dos mistérios da Sicília. Ficamos a sós com nossos conceitos e dúvidas ao nos confrontarmos com essas tragicômicas visões da morte.

É difícil discernir os sentimentos despertados pelos corpos imobilizados em sua jornada do nada ao nada – mistérios, medos, perdas e esperanças. As contradições da vida, eternas e universais.

A bela cidade de Novara di Sicilia tem uma catedral decorada com devoção. Diante do altar há uma porta secreta que conduz à cripta.

Ao pressionar um botão, o chão se abre, como num filme do James Bond. Descendo por um lance de degraus, topamos com uma série de nichos que contêm diversos corpos em ruínas de prelados. Sentados em assentos de pedra com furos redondos no meio – os escoadouros –, com suas fisionomias graves de múmias, eles conferem ao ambiente um jeitão de banheiro coletivo para onde todos vieram se aliviar juntos. Numa prateleira alta cheia de crânios vê-se também uma caixa contendo dois gatos mumificados naturalmente, a evocar sombras distantes do Egito Antigo. Os bichanos se viram presos na cripta, e nos mandam uma lembrança: mesmo com suas sete vidas, o fim é o mesmo para todos.

Fonte: National Geographic Brasil