15.10.12

O diabo no confessionário

Mary del Priori relata os incríveis casos de clérigos sem pudor que durante o período colonial usaram a privacidade das igrejas para seduzir fiéis


As mulheres eram mantidas sob intensa vigilância social, que exigia recato sempre que estivessem em público. Uma senhora indo à missa numa cadeirinha, aquarela, Jean-Baptiste Debret, 1820-1825


Assim como a água cedo ou tarde encontra um caminho por onde escoar, o ser humano, movido pelo desejo, descobre formas de satisfazê-lo. Seria exagero dizer que, quanto mais intensa a proibição, maior a motivação para alcançar esse objetivo? Se o cerne do desejo é o impulso sexual, parece que a criatividade não tem limites. Sob a vigilância permanente de uma sociedade guiada por rígidos códigos de conduta impostos pela Igreja, que tornavam o templo um dos poucos lugares em que o contato social era permitido, a repressão acabou por dar lugar à permissividade em solo consagrado.

Os séculos ditos “modernos”, do Renascimento, por exemplo, não foram tão modernos, assim. Um fosso era então cavado: de um lado os sentimentos e, do outro, a sexualidade. A concepção do sexo como pecado, característica do cristianismo, implicava a proibição de tudo o que propiciasse prazer. Desde as carícias que faziam parte dos preparativos do encontro sexual aos mais singelos galanteios. Na verdade, os casamentos contratados pelas famílias deixavam pouco espaço para as práticas galantes, uma vez que os noivos eram submetidos a constante vigilância. Apesar de, para a realização desses casamentos, ser irrelevante a existência ou não de atração entre os noivos, a repressão social tornava imperativo adaptar os jogos de sedução às regras impostas. Mensagens e gestos amorosos esgueiravam-se pelas frinchas das janelas ou sobrevoavam o abanar dos leques.

Tanto controle transformava as cerimônias religiosas (uma das únicas ocasiões em que os jovens podiam se encontrar sem despertar suspeitas e reprimendas dos pais ou confessores) em palco privilegiado para o namoro. Não foram poucos os amores que começaram num dia de festa do padroeiro ou de procissão, havendo até os que esperavam a Quinta-Feira Santa e o momento em que se apagavam as velas, dentro da Igreja, em respeito à Paixão de Cristo, para aproximar--se um do outro. E no escurinho choviam beliscões, pisadelas e gestos eróticos. O intuito não era levar os amantes para a alcova, mas marcar encontros nas soturnas capelas.

As igrejas paroquiais foram convertidas, nesse tempo, em espaço para namoricos, marcação de encontros proibidos e traições conjugais. Moleques corriam de um lado ao outro da nave levando recados. Não foram poucas as ordens dadas por bispos setecentistas exigindo a separação de homens e mulheres no interior das capelas. O clero temia os encontros e suas consequências. Compreende-se, assim, o porquê de uma carta pastoral como a de Dom Alexandre Marques, de 1732, proibindo a entrada nas igrejas de “pessoas casadas que estiverem ausentes de seus consortes”. Nas igrejas, brotavam romances sem limites. Não por acaso, um manual português de 1681, escrito por Dom Cristóvão de Aguirre, continha as seguintes perguntas: “Se a cópula tida entre os casais na Igreja tem especial malícia de sacrilégio? Ainda que se faça oculta-mente?”. Lugar de culto, lugar público, a Igreja seria também um lugar de sedução e de prazer. Onde, vez por outra, Deus dava licença ao diabo...













As cerimônias religiosas eram raras ocasiões em que os jovens podiam se encontrar sem despertar suspeitas nem reprimendas, tornando-se palco privilegiado para o namoro. Missa na igreja de Nossa Senhora da Candelária em Pernambuco, gravura, Rugendas, século XIX



No Brasil, as missas do século XVIII eram animadas por toda sorte de risos, acenos e olhares furtivos, transformando as igrejas, para desgosto dos bispos, em concorridos templos de perdição. Mal iluminadas, suas arcadas e colunas e os múltiplos altares laterais ofereciam recantos, resguardados da curiosidade alheia, onde se podia até mesmo tentar gestos ousados: do beijo ao ato sexual propriamente dito. A costumeira reclusão das donzelas de família e a permanente vigilância a que estavam expostos todos os seus passos tornavam missas, procissões, ladainhas e novenas ocasiões sedutoras, para as quais contribuíam os moleques de recado e as alcoviteiras, ajudando a tramar encontros. Abrigo de amantes, a Igreja logrou converter-se, em certas circunstâncias, num dos raros espaços privados de conversações amorosas e jogos eróticos, nos quais se envolviam nada menos que os próprios confessores.

Tais jogos eram perpetrados até mesmo no refúgio dos confessionários. Tal foi o sucedido com Marciana Evangelha, moça solteira de 29 anos que, no Maranhão, denunciara o jesuíta José Cardoso ao comissário do Santo Ofício em outubro de 1753. Ela o acusara de pedir-lhe “seu sêmen”, de dizer que “a desejava ver nua” ou ainda de lhe pegar “nos peitos no confessionário”. Sobre as relações do padre e a moça, sabia-se, por exemplo – e é o comissário quem anota –, que esta “o trazia doido e fora de si e que por ela perdia muitas vezes o sono da noite, o que nunca lhe sucedera com outra mulher alguma” e, ainda, que “por amor dela havia de sair fora da religião”. Seduzida por declarações ardentes e promessas, a moça se atrapalhava nos depoimentos. Tanto que, passados mais dois dias, voltou novamente à presença do comissário para declarar que o padre lhe garantira que, “se consentisse com ele lhe daria remédio para que ficando corrupta parecesse virgem e que para não conceber lhe daria também remédio”.

Pior sorte teve certa Luzia de Souza Vieira, casada com um pedreiro na Paraíba. Doente, de cama, mandou chamar para confessá-la um franciscano, frei Raimundo de Santo Antonio, que a solicitou para atos torpes, além de forçar e ter cópula carnal com a pobre doentinha. Muitas tiveram o atestado de confissão recusado por padres, pois não consentiam em pecar com eles. Ou, conhecedoras da malícia de certos confessores, negavam-lhes a informação correta sobre pecados que cometessem. Caso, por exemplo, de certa Maria da Silva, viúva sergipana, amancebada havia anos com um baiano useiro e vezeiro na “prática do pecado nefando de sodomia”, que declarava não admiti-lo ao confessor. Temia dar-lhe ideias.


A repressão social tornava obrigatório adaptar os jogos de sedução. Mensagens e gestos de amor passavam furtivamente pelas janelas ou sobre o abanar de leques. Uma História, água-tinta e aquarela sobre papel, Henry Chamberlain, 1822



Românticos não eram raros. E havia alguns como o padre Francisco Xavier Tavares, capaz de uma súplica cavalheiresca a Maria Joaquina da Assunção, mulher casada: “se queria ter com ele uns amores e se consentia que ele fosse a sua casa”. Outros confessores chegavam a requintes galantes, ofertando flores às suas escolhidas em pleno confessionário ou fazendo como padre Custódio Bernardo Fernandes, que, no Recolhimento das Macaúbas, em Minas Gerais, dissera a Catarina Vitória de Jesus que lhe queria bem. Mais, perguntando se ela era sua, meteu na boca um raminho, pedindo a ela que o puxasse com seus dentes.

Mas havia também o avesso da história. O confessionário era tido como espaço ideal para abordagem de mulheres diabolicamente sedutoras. Na Bahia, ao receber “um escrito” amoroso da parda Violante Maria, o pároco João Ferreira Ribeiro mandou-lhe um recado “por um mulato seu confidente” para que fosse à igreja de Santo Antônio e, acabada a missa, ter com ele no confessionário. Marcaram então um encontro no caminho que ia para o lago e “lá entraram ambos no mato e teve ele acesso carnal a ela”. É dela que parte a iniciativa da conquista. Não à toa, o pregador frei Antônio das Chagas, renomado franciscano, costumava admoestar: “Confessar e conversar com mulheres me custa... pois ainda que sejam santas, é mais seguro fugir delas”!

Essas atitudes parecem surpreendentes, sobretudo por virem de indivíduos que deveriam atuar como agentes de reforma católica dos costumes. Chocante? Não. As pesquisas têm demonstrado que as ideias reformadoras de católicos e protestantes só lentamente se traduziram em efetivas mudanças de comportamento por parte da população cristã. O processo variou em seu ritmo conforme as regiões atingidas, mesmo se considerarmos apenas o continente europeu. A exportação da Reforma Católica para o além-mar multiplicou as dificuldades normalmente impostas a uma tarefa dessa natureza.

Basta lembrar fatores como as grandes distâncias, a falta de clérigos, a precária estrutura paroquial frente a um imenso território de ocupação populacional dispersa; as peculiaridades culturais de uma sociedade híbrida, na qual se despejavam continuamente, por meio do degredo, indivíduos desviantes da metrópole; os vícios inerentes à escravidão e ao desmedido poder local concedido aos senhores. Isso tudo atrasou a efetivação da Reforma – entendida como projeto da aculturação – na colônia. E retardou a possibilidade de os padres serem homens acima de qualquer suspeita. Como todos os outros, eram feitos de carne e osso.

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