Por RICARDO CORRÊA PEIXOTO
A discussão aqui proposta trata-se do pleonástico tema sobre as formas de ensinar e aprender história, que por muitos anos temos debatido sobre os métodos que possam consubstanciar essa até então utopia pedagógica que é fazer a conexão entre texto e contexto, aluno e cidadão, acabar com essas dicotomias, esses hermetismos. Amalgamá-los é o cerne dos nossos debates alusivos aos ranços positivistas, factuais, episódicos. Onde a história se apresenta de forma teatral e, o que é pior num teatro onde os papéis já foram pré-estabelecidos, nos restando apenas a introjeção do papel que nos foi outorgado.
É sintomática uma aversão quase unânime pelo conhecimento histórico. Eis aí uma afirmativa verossímil, óbvia, mas, que espeta nosso intelecto e, temos nos perguntado se esse mal sistêmico que é a indiferença, a passividade dos alunos frente à história e as demais ciências humanas, cuja corolário, ou conseqüência, tem engendrado verdadeiros “autistas sociais” que, por conseguinte, fá-los “bestializados”, espectadores de um país ou mundo alienígena, feito a sua revelia.
[...] o povo que pelo ideário republicano deveria ter sido protagonista dos acontecimentos, assistia tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez umaparadamilitar [...] Na república que não era, a cidade não tinha cidadãos. Para a grande maioria dos fluminenses, o poder permanecia fora de alcance, do controle e mesmo da compreensão. Os acontecimentos políticos eram representações em que o povo comum aparecia como espectador ou, no máximo, como figurante.[1]
Tudo isso se torna muito sério se pensarmos que um aluno que sumariamente despreza a história, não conheça e, não se perceba nela, logo, inviabiliza a construção da cidadania e conseqüentemente de um país mais justo e mais humano. Quantos de nós se mobiliza, diante das escolas públicas vilipendiadas ou ainda do das mazelas da saúde pública, é muito mais cômodo pagarmos uma escola particular, ou pagar por um plano de saúde, enfim, nos enclausuramos dentro de nosso egoísmo covarde, porque o que é público é dos outros, pensamentos assim que tornam perenes nossa triste realidade.
Não estamos querendo dizer que a história é a única responsável pela construção da consciência cidadã, mas é parte integrante, inalienável desse processo, que por uma deficiência crônica tem dado cria a mentes masoquistas, que se regozijam com seu próprio espólio, se divertindo com os“mensalões” e “mensalinhos”, achando lúdico, bem a moda brasileira, que não sabemos bem se é fruto de nossa práxis política peculiar, que se reveste de humor, ou se é puramente pela incapacidade e covardia de intervir, de nos agrupar e lutar por nós mesmos, de vociferar nossa reprovação e exigir uma existência digna.
A metodologia utilizada como um mapa, como uma representação cartográfica que nos orienta a fim de que consigamos completar o percurso do saber, que como tesouro escondido precisa ser desenterrado e como nos filmes e nas literaturas essa descoberta nunca se dá de maneira fácil, sem disputas ou obstáculos, mas, trata-se de uma aventura que desafia nossos limites. Sem o método desorientamo-nos somos entregues aos infortúnios da ignorância. Entretanto, a metodologia não deve trabalhar hermética, dissociada dos conteúdos, deve antes proceder em uníssono com as abordagens, a fim de permitir a estruturação desses conteúdos.
Vale ainda ressaltar a questão que define a escola como um mero local de mimeses, de reprodução, de mímica das leis indeléveis, inelutáveis, emanadas do conhecimento científico, cuja presunção em determinar e delinear todas as engrenagens que movem esse mundo, suas conjeturas cristalizam-se em meio às pretensões de onisciência. A metodologia que a ciência usa diverge daquela aplicada na escola, que de maneira circunscrita não tem levado os alunos a decifrarem os caminhos que possibilitaram esses conhecimentos, ou essa teoria e, principalmente apreender as proposições admitindo sua falibilidade. A escola relegada, imaginada apenas como espaço de informação, de cabide de teorias cientificas, torna-se pueril, em seu propósito, insignificante em sua importância. Essa antinomia entre as metodologias cientificas e escolar que deveriam ser indissociáveis, tem proporcionado a impressão, ou a sensação de que o saber é alienígena, inexcedível para os simples, só sendo possível aos cientistas, seres superdotados, os únicos capazes de desvelar os enigmas universais.
O ensino de história que privilegia uma abordagem memorialista, narrativa, unilinear que preestabeleça os percursos humanos, que afirme categoricamente ao invés de supor e duvidar das certezas, uma história emoldurada pouco diz, mesmo querendo dizer muito, é o que ocorre com os volumosos conteúdos despejados nas aulas, que só enfadam os alunos, causando-lhes aversão, comprometendo enfim, toda uma vida.
[...] A busca do saber é o caminho para perfeição humana, dizia introduzindo na história do pensamento a discussão sobre a finalidade da vida. [...] O papel do mestre é, então, o de ajudar o educando a caminhar nesse sentido, despertando sua cooperação para que ele consiga por si próprio “iluminar” sua inteligência e sua consciência. Assim, o verdadeiro mestre não é um provedor de conhecimentos, mas alguém que desperta os espíritos. Ele deve segundo Sócrates, admitir a reciprocidade ao exercer sua função iluminadora, permitindo que os alunos contestem seus argumentos da forma que contesta os argumentos dos alunos.[2]
É de responsabilidade do professor de História, compreender e explicar os percursos das sociedades humanas, bem como clarificar para os alunos a dinâmica dessa caminhada, as sinomias e antinomias, fazê-los entender que sua realidade não é e nem sempre foi assim e que ele é co-participante dessa aparente ordem que é estabelecida pelo caos. “O conteúdo da História não é o passado, mas, o tempo (...)”[3]. Seu imaginário seria assim explorado para armá-lo de instrumentos que criem nele uma consciência histórica até então hibernada.
[...]espera-se muito mais de um professor. Sua “interpretação” na sala de aula é pouco. Seguir a partitura é escravizar-se ao autoritarismo de um livro. Ele tem a obrigação de criar atividades, inventando maneiras de levar o aluno a construir o próprio mundo intelectual.[4]
A história deve mudar sua postura, cujo aspecto proeminente seria a questão da linearidade do tempo, a identificação da marcas das diversas temporalidades ao invés de compreender como essas marcas foram impressas e por quais motivos, enfim, o processo é muito mais valioso do que o fato, o acontecimento em si, porque o desenrolar nos revela a genealogia, os embates, as intrigas, o imaginário. As idiossincrasias de uma época respondem pela forma com que as pessoas vão trabalhar, cultivar, escrever, se relacionar, enfim, o imaginário e a realidade interagirão e construirão a face de um tempo, essa perspectiva deve ser o objetivo a ser perseguido pelos docentes que pretendem estabelecer uma verdadeira simbiose com seus alunos.
O ensino de história como parte dessa regra deve promover um pensar, dar liberdade intelectual para que os alunos singrem as águas turvas e agitadas de sua realidade social, “Ensinar História é aprender com o plural e o singular”[5]. Dando inteligibilidade as diferentes temporalidades, estabelecendo a conexão entre o imaginário e a realidade objetiva, como forma de desmistificar pela compreensão um mundo aparentemente desconexo, alheio, sendo, portanto, muito mais cômodo o desdenho, a inconsciência, a leviandade, perpetuando assim, muitos que preferem essa atitude a sua condição de apêndice social.
[...] formar é muito mais do que puramente treinar [...] Significa reconhecer que somos seres condicionados, mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidades e não de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e não inexorável.[...] não há docência sem discência [...] Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. [...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou construção.[6]
Por tudo isso, podemos afirmar que tem ocorrido uma incongruência entre a maneira que nos propomos ensinar já há muito tempo antiquada frente a um mundo múltiplo, amorfo, implacável, que classifica friamente quem pode e quem não pode participar do processo produtivo. Por isso mesmo, todas as nossas iniciativas pedagógicas devem confluir a fim de trazer a lume o tão sonhado conhecimento, que preferimos chamar aqui de entendimento, que possibilite a quebra dos monopólios do saber, que ao longo de nossa história tem condenado uma grande parcela do nosso povo a servidão e a miséria.
Fora preciso muito menos do que o equivalente desse discurso para arrastar homens grosseiros, fáceis de seduzir, [...] Todos correram ao encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade [...] Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram doravante todo gênero humano ao trabalho, à servidão e a miséria.[7]
Nosso desafio é quebrar esse paradigma que torna a história uma disciplina desprestigiada, sendo sua utilidade questionada, uma vez que é dada tanta importância a datas, números, heróis, enfim, há uma distancia abissal entre texto e contexto imprimindo a disciplina uma caracterização enfadonha e desestimuladora. É preciso levar a história para mais perto dos alunos, ou mesmo levá-los para mais perto da história, fazê-los perceber parafraseando Ferreira Gullar, “que a história humana não ocorre apenas nos gabinetes presidenciais ou nos campos de batalha, mas, também nos quintais entre plantas e galinhas, nos prostíbulos, nas escolas, nas casas de jogos e nos namoros da esquina”. Ou mesmo como Carlo Ginsburg que dizia que “a história de uma nação nada mais é do que uma análise integrada das histórias regionais”, ora o que é a história do Brasil? Ou a do mundo? Da humanidade? Nada mais é do que os erros e acertos, das vitórias e dos fracassos, dos sorrisos e das lágrimas, do abrir de uma rosa ou do esterco que a alimenta, da opulência e da escassez.
Enfim, a história não obedece ao tempo cronológico, ou mesmo a lógica, não tem as virtudes da precisão matemática, sendo simultaneamente a imperfeição a fonte de sua maior força e maior fraqueza, logo, Aplicar a história com inteireza significa fundir o micro e macro, onde o negro, o branco, o índio, o pobre e o rico, os vencedores e os vencidos, tenham seus espaços salvaguardados, e suas contradições sejam observadas porque irrevogavelmente eles são co-participantes do processo histórico. Nós professores de história e educadores de todas as áreas, temos inelutavelmente o dever de mostrar aos alunos que o mundo não foi e não é, mas, está sendo e que ele é parte inalienável dessa grande confusão.
_________________________
Notas
* Graduado em História e autor do ensaio, “Crioulos Pretos”: um ensaio sobre a práxis social urbana e o cotidiano dos desclassificados da ordem imperial, na passagem para a republicana no Rio Janeiro, de1888 a 1904. Publicado pela Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a distância do Estado do Rio de Janeiro - CECIERJ.
[1] Carvalho, José Murilo de. Os Bestializados: Rio de janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia da Letras, 1987, p. 40.
[2] LUCITA, Briza. O Mestre que desafiou o homem a se conhecer. Nova escola, a revista do professor, São Paulo, ano XX, n. 179, p. 36, jan./fevereiro. 2005.
[3] Sônia L. Nikitiuki (Org.), Repensando o Ensino de História. São Paulo: Cortez, 2001, p. 16.
[4] CASTRO, Cláudio de Moura. Professores e pianistas. Nova escola, a revista do professor, São Paulo, ano XVIII, n. 159, p. 16, jan./fevereiro. 2003.
[5] Sônia L. Nikitiuki (Org.), Repensando o Ensino de História (São Paulo: Cortez, 2001), p. 21
[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 17-22.
[7] ROUSSEAU, Jean-jacques. Os Pensadores. (tradução de Lourdes Santos Machado).São Paulo: Abril Cultural, 1973., p. 45.